‘A Gente Foi Feliz Aqui’ expõe amor e fortalece “grito” dos ex-moradores do bairro do Pinheiro

Projeto foi idealizado pelo artista visual e curador Paulo Accioly e retrata as histórias e o sentimento de pertencimento através de colagem e depoimentos
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É triste sabermos que Maceió é palco de uma das maiores tragédias ambientais do país. A extração desenfreada de sal-gema pela Braskem resultou em tremores e rachaduras em quatro bairros da capital. Bairros que precisaram ser evacuados devido ao iminente risco de desabamento, obrigando famílias saírem de suas casas e deixarem para trás amor, lembranças e toda uma vida. Um desses bairros foi o Pinheiro.

Em meio a tudo isso, uma iniciativa surgiu com o objetivo de dar voz a pessoas que antes não tinham e que precisavam literalmente desabafar sobre seus sentimentos, sobre o desamparo sofrido e sobre a dor de abandonar seus lares. O projeto ‘A Gente Foi Feliz Aqui’ vem cumprido esse louvável papel. 

Bairro do Pinheiro, em Maceió. | FOTO: Arquivo pessoal.

Através de imagens coladas nas paredes dos imóveis e depoimentos de ex-moradores, a iniciativa resgata memórias e traz consigo uma importante força de apoio a quem sofre as consequências do ocorrido até hoje.

[ACESSE O PERFIL DO PROJETO]

O artista visual e curador Paulo Accioly – idealizador e membro – conta que o incentivo para dar início à empreitada foi a necessidade de se fazer ouvir, uma vez que o assunto não teve a repercussão que deveria. Além disso, a sensação de acolhimento e união que toda a região emanava não merecia ser simplesmente esquecida.  

“Eu morei no Pinheiro por aproximadamente 4 anos e foi muito marcante. É um bairro que abraçava todo mundo. Você se sentia parte da comunidade muito rapidamente. Era perceptível o sentimento de pertencimento, de que você pertencia àquele lugar, de que as pessoas pertenciam àquele lugar. Os moradores vivam ali há muito tempo e tinham um sentimento muito bonito e muito diferente do que eu já tinha visto até então. Eu nunca tinha presenciado uma paixão tão pura por um espaço”.

Logo quando o problema nos bairros foi revelado, Paulo estava na França, onde estudava Arte e Imagem. Ele conta que acompanhar o caso de longe foi angustiante e confuso.

“Acompanhar o caso de fora foi muito louco, porque existia um sentimento da minha mãe de querer rapidamente sair da casa. Quando tinham as chuvas, ela ficava aflita e ia dormir na casa do meu irmão. Já meu pai não queria sair e sempre foi uma batalha nossa para convencê-lo a se mudar, até que chegou um ponto que não tinha mais o que ser feito”, conta.

Imagens das famílias são coladas nas paredes e nos muros das residências. | FOTO: Arquivo pessoal.

 “Eu fiquei responsável por procurar um novo local e isso me trazia muita aflição. Aflição de não encontrar nada, de tudo já estar ocupado, de tudo ser mais caro só por sermos do Pinheiro. Foi uma época muito ruim, muito confusa”, completa.

Foi justamente nesse turbilhão de emoções que Paulo teve a ideia de fundar o ‘A Gente Foi Feliz Aqui’. Ele via o projeto como a chance de fazer algo pela sua família e por todas aquelas outras que também estavam sofrendo. 

“Eu tive a ideia do ‘A Gente Foi Feliz Aqui’ justamente durante o processo de busca por uma nova casa. Era o que eu poderia fazer para ajudar a minha família de longe. Eu estava estudando Arte e Imagem e tinha essa vontade de fazer alguma coisa para que as pessoas entendessem o que estava acontecendo em Maceió. Por estar estudando com o JR, artista visual e uma das maiores referências da prática da colagem no mundo, eu pensei em usar essa técnica para abordar o assunto”, revela.

O artista conta ainda que, inicialmente, o intuito era colar as imagens das famílias nos muros das residências e aguardar o dia em que tais muros fossem destruídos para filmar o exato momento. Com o tempo, essa ideia mudou. 

“Esse era o intuito até o dia em que eu fiz a primeira entrevista e entendi que ela era muito mais forte do que qualquer muro sendo demolido. Um muro sendo quebrado é apenas um muro, é muito pequeno perto do depoimento de um ex-morador; do sentimento do primeiro relato da história de vida de alguém”.

Paulo Accioly é artista visual, curador e ex-morador do Pinheiro. | FOTO: Arquivo pessoal.

Por mais belos que os depoimentos possam ser, eles carregam uma melancolia que angustia Paulo. Ele menciona que ver a dor das pessoas é algo muito duro, pois são vidas que estão em jogo e que o sentimento de perda pode trazer consequências pesadas. 

“O que mais me angustia é ver a dor das pessoas observando as suas casas abandonadas, já parcialmente destruídas, saqueadas, em um bairro completamente fantasma. Muito mais forte do que o meu sentimento de ex-morador é o sentimento de um ex-morador que viveu 50, 60 anos no bairro. É algo muito duro. Geralmente, quando conversávamos com as famílias, éramos os primeiros a ouvir aquelas histórias, já que eles nunca tiveram a oportunidade de falar. Isso era muito pesado.”, diz.

Todo esse processo só consolidou em Paulo a sensação de que o tema não foi e nem é abordado da maneira que deveria. O curador teme que a volatilidade das informações de hoje acabem por afastar o foco do que vem acontecendo.  

“Esse caso não está tendo a repercussão que deveria. Tivemos recentemente buzz, mas nós somos muito rapidamente esquecidos. O Estado de Alagoas é muito rapidamente esquecido. Poderíamos ter vivido a maior tragédia ambiental da história do país [caso os bairros tivessem ruído antes da desapropriação] e ninguém fala sobre isso. É preciso falar muito mais. É preciso que isso tenha muito mais repercussão. São muitas histórias a serem contatadas”, afirma.

Porém, mesmo assim, há uma esperança fortalecida através do engajamento de ex-moradores, de artistas e da população de Maceió. O ‘A Gente Foi Feliz Aqui’ vem crescendo e hoje conta também com a produção de Renata Baracho, Ingrid Pontes Villar e Pedro Krull, além de outros colaboradores. 

Momento da aplicação da colagem. FOTO: Arquivo pessoal.

“É muito legal o engajamento dos ex-moradores e da população de Maceió de produzir filmes, projetos artísticos e documentários. Hoje, temos uma equipe maior, temos pretensões maiores. Temos ideias para seguir e que vamos colocar em prática. Podemos dizer que estamos no começo ainda”, adianta Paulo.

Recentemente, o perfil do projeto no Instagram saiu do ar – algo que soou estranho para o artista, logo em um momento em que o tema estava em evidência e a iniciativa ganhava visibilidade. Porém, a conta já foi recuperada e o ‘A Gente Foi Feliz Aqui’ segue firme e forte. 

Força que é cada vez mais necessária, segundo Paulo. Para ele, é crucial que a população “grite” mais alto, busque a responsabilização dos culpados e mantenha o assunto em evidência. 

“Eu acho que deveríamos gritar mais. Quando gritamos algo com sentido, nós somos ouvidos. Gritar é se mobilizar e encontrar uma forma de ser escutado pelas pessoas. O projeto é feito de colagens e de depoimentos porque, de alguma forma, essas duas ferramentas são suaves e legíveis. O nosso grito não é agressivo, o nosso grito é suave. Peço para quem tiver ideias que as coloque em prática. Quanto mais essas ‘pequenas’ iniciativas nascerem, mais elas crescerão juntas para assim lutar pela nossa causa”, frisa.

Não haveria outra forma de encerrar esse texto que não fosse ressaltando a coragem e a determinação dos ex-moradores dos bairros atingidos pelas rachaduras em Maceió. Não há outra forma que não seja encerrar com uma fala de Paulo Accioly.

“Quando uma história é contada pela primeira vez, ela é muito forte, pois não existe filtro, não existe nada que separe a verdade existente ali. Você só coloca pra fora. É um desabafo! Essa é a nossa missão: registrar, organizar e divulgar esses desabafos.”

 

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