Em busca do caminho de volta, grupo de indígenas Karapotó Terra Nova quer que escola seja construída dentro da Terra Indígena, e não no povoado

Comunidade habita em povoado junto a não-indígenas, em São Sebastião, e impasse envolve busca por territorialização e futuro dos povos.
Território dos Karapotó Terra Nova, em região conhecida como Salobro. Foto: cortesia/arquivo pessoal

Foi durante um protesto em frente à Secretaria Estadual de Educação de Alagoas (Seduc), que lideranças, educadores e estudantes do povo Karapotó Terra Nova, de São Sebastião, receberam a confirmação do Órgão do Estado de que, no dia 25 de julho, seria assinada a esperada ordem de serviço para o início das obras de construção da escola. Presenciar a possibilidade dos tijolos serem literalmente levantados na educação escolar indígena vem sendo um sonho histórico de quase duas décadas para toda a comunidade, em meio à urgência de uma formação escolar autônoma e que efetivamente proteja as crianças e os adolescentes, hoje condicionados às regras e formações de escolas não-indígenas.

Se a mobilização histórica pela escola é coisa comum para toda a comunidade, a divergência quanto à localização tem preocupado as lideranças e sinalizado um impasse proveniente de uma condição complexa imposta a comunidades indígenas que, sem uma terra efetivamente demarcada, mantém suas moradias em espaços mistos, entre não indígenas.

É no seio desta conjuntura que surge este embaraço sobre a escola do povo Karapató Terra Nova, e as distintas defesas de ser instalada no povoado em São Sebastião, onde a maior parte da comunidade reside entre não-indígenas, ou dentro da terra indígena conquistada, onde parte do grupo peleja por um caminho de volta à condição de aldeamento.

Foi assim que dois dias depois do ato divulgado pela Mídia Caeté,  a equipe de reportagem foi procurada pelo cacique Gilvan Karapotó Terra Nova, que apresentou preocupação com a localização da escola no povoado.

“Eu estava no setor religioso, onde ficamos isolados, e só soube do ato depois. Essa luta pela escola é uma luta que a gente vem desde o começo, mas temos um subgrupo que não concorda que ela seja em um terreno cedido pelo município, num povoado, quando a escola pode muito bem ser construída dentro da nossa base que conquistamos, de Terra indígena”, relata.

O território em questão trata-se de uma área conhecida como Salobro, comprada com recurso federal pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI). Na oportunidade, a comunidade já residia em um povoado junto a não-indígenas, de modo que poucas famílias decidiram mudar para dentro da Terra Indígena recém-conquistada. A região, junto à Estiva – cedida pelos Karapotó Praki-ô, vinha sendo ocupada de forma restrita para a religiosidade.

Entretanto, ao longo dos anos, a terra passou a ter outros usos também, como manejo de gado e- conforme as lideranças lamentam – até mesmo venda de lotes entre indígenas. A situação já foi comunicada e informada a órgãos como Ministério Público Federal e Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI), segundo cacique Gilvan, e a ideia de construir uma escola no local representaria uma possibilidade de resgatar o significado da terra.

Cacique Gilvan informa, ainda, que seu pleito por uma escola dentro da TI tem intuito de fortalecer a cultura e a tradição das crianças e dos jovens, ao tempo em que melhorará a condição da própria TI. “Ver as crianças crescerem dentro do território, resgatar o tupi, ter um contato direto com nossos anciãos. Hoje a gente vê como a invasão das cidades e povoados é preocupante, muitos botecos ao lado no povoado, e isso tudo vai iludindo indígenas. Se não tivéssemos um lugar para colocar a escola dentro da Terra Indígena, eu não ia dizer nada, mas a gente tem esse espaço”, afirmou. “A gente sabe também que, com a escola, as pessoas vão vir mais. Vão querer morar mais, a escola quando chega também traz outros benefícios para dentro”.

Para as lideranças que estavam na mobilização, e que têm no escopo a luta pela garantia da escola num terreno cedido pelo município para a construção da escola, todo esse resgate cultural é possível, ainda que com a escola instalada dentro do povoado.

“Não entendemos por que Gilvan está agora querendo a escola dentro da terra. Ele sempre esteve conosco nessa luta para a escola e só agora que mudou de ideia para ser lá dentro. É uma área que é muito pequena, e que foi comprada pela FUNAI, e não demarcada. Não daria para todas as famílias morarem lá, mesmo que quisessem. Além disso, o acesso é muito difícil quando chove. A escola aqui no povoado fica ao lado do posto de saúde indígena, perto de onde moramos, e seria específica para indígenas. Temos um bom relacionamento com a Prefeitura que já cedeu esse terreno antes, depois devolveu, e agora cedeu mais uma vez por tempo indeterminado. Além do mais, nós teremos sim toda a autonomia, e será exclusiva para estudantes indígenas”, afirmou um dos conselheiros.

Cacique Gilvan explica, entretanto, que sua mudança de ideia – que não é só sua, mas de mais de 186 famílias – está relacionada também à modificação das próprias condições.

“Eu não durmo do mesmo jeito que acordo, e antes as condições eram outras, então não tinha o que se fazer. Antes não tinha ônibus escolar. Hoje a comunidade recebeu um ônibus, que foi uma compensação que o Estado deu por conta de uma rodovia. Esse ônibus, que hoje a Prefeitura usa para levar indígenas e não-indígenas para as escolas, pode muito bem levar e buscar os alunos até a escola do lado de dentro da nossa base. Antes não tinha essa possibilidade, mas agora tem. Então por que não mudar de ideia se pode ser para algo melhor?”.

Por algo melhor, cacique Gilvan representa um grupo que pretende retomar e preservar a tradição do povo Karapotó, com toda a tradicionalidade necessária –  um caminho de volta cuja busca por conquista de direitos de forma mais autônoma é pode ter muitos limites quando realizado com a interferência direta de órgãos estatais, e mesmo da população local não-indígena.

“Alguns parentes não entendem e estão pensando mais na comodidade, mas não estão pensando lá na frente, no futuro. Eu vim de uma história de muita luta e vejo hoje nossos parentes se perderem nas tradições de não-indígena, virarem a cabeça. Não desmerecendo as outras culturas, e que a gente conviva e possa aprender e ensinar, mas do jeito que está acontecendo nossas crianças e adolescentes vão se perdendo. Perdem as tradições, a cultura, a Língua”, comenta. “Além do mais, dentro da nossa terra indígena que foi conquistada também com muita luta, só cresce venda de terras, desmatamento, pecuária”.

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Presidente do Conselho diretor da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí), o professor universitário e antropólogo José Augusto Sampaio, contextualiza essa situação de impasse, diante da própria condição imposta a povos indígenas.

“Soube a respeito dessa situação delicada da luta pela escola em razão de não ter ainda uma Terra Indígena demarcada. E, quando não há Terra, qualquer outra política fica fragilizada. Política de saúde, de educação”, relata. “Conheci a comunidade dos Karapotó Terra Nova e a Terra Indígena que foi mencionada, trata-se de uma área de fato pequena, Salobro, que hoje é utilizada para fins de rituais. Já o povo Karapotó Terra Nova mora nos povoados, que tem indígenas e não-indígenas, e existe ainda uma relação de promiscuidade política. Presenciamos políticas públicas que deveriam ser exclusivas para indígenas e acabam sendo desviadas para o público não-indígena, que vive em condições de pobreza também, mas que deveria ter ações próprias”, relata o antropólogo – que costuma acompanhar a questão da educação indígena em diversas comunidades do Nordeste, incluindo Alagoas.

Antropólogo, professor universitário e coordenador da ANAI, José Augusto Sampaio. Foto: Arquivo Pessoal

“É assim que sabemos que a indenização pela construção da BR-101, que deveria ser para a comunidade indígena, ficou para o Município administrar”, conta.  “Neste sentido, entendo que é correto quando o cacique Gilvan pleiteia a escola dentro da Terra Indígena que, por pequena que seja, há espaço sim. É uma área de mata, mas existe um descampado, de modo que não prejudicaria a mata, e traria mais segurança para os estudantes, do que seria se fosse fora da terra indígena”, explica.

Na avaliação do coordenador da ANAI, a dispersão de indígenas no povoado, em termos de habitação e formação escolar implica em fragilizar a possibilidade das políticas públicas e direitos indígenas sejam efetivamente voltadas a esses povos.

“Com a escola fora da Terra Indígena, mesmo que formalmente seja específica de educação escolar indígena, não há como impedir suficientemente o risco de ser apropriada para atender estudantes não-indígenas, para o próprio acesso de emprego. Ela estará fora do controle indígena e, logo, seu fluxo também fica fora do controle indígena, e sim com administração do Município”, acrescenta. “Por isso entendo que o cacique Gilvan tem toda razão em reivindicar essa construção dentro da Terra Indígena”.

Em relação à distância, o professor José Augusto também acrescenta: “Sei que existe também o contra-argumento de que fica muito longe, mas verificando a mesma relação com escolas rurais, a diferença para um transporte que vai andar dois ou três quilômetros a mais não é um custo que se justifique a necessidade de que a escola fique no povoado por estar mais perto. Afinal, levando em conta as políticas indigenistas é altamente recomendável e desejável que a escola esteja na Terra Indígena”.

Diante da iminência da assinatura da ordem de serviço, já marcada para o dia 25, cacique Gilvan tem buscado esforços para reavaliar o local da construção, buscando uma conversa mais ampla com a comunidade de modo a levantar todas estas questões, e garantir que a autorização da ordem de serviço não resulte na obrigatoriedade da obra acontecer no terreno da Prefeitura.

Para o grupo que realizou o ato, a preocupação é de que estas movimentações terminem por suspender a ordem de serviço para aquela escola. “Eu quero muito que a escola seja construída, estive desde sempre nessa luta também e vou ficar feliz se essa for a vontade da comunidade. A única coisa que defendo é que aconteça dentro da nossa base, para gente ter nossa cultura protegida, e ocupar essa base que é nossa”.

À Mídia Caeté, a Secretaria Estadual de Educação (SEDUC) informou que disponibilizaria o contato com o setor de educação indígena para dialogar sobre o assunto.

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