Professora vítima de racismo em colégio recebe comenda

Em vez do chicote - sugerido por diretora da unidade de ensino- Taynara recebeu Comenda Zumbi dos Palmares
Comenda foi entregue na manhã desta sexta-feira (13)/ Foto: Cortesia

Trinta e oito dias se passaram desde que a professora Taynara Silva denunciou ao mundo, por meio de uma rede social, o caso de racismo que sofreu no Colégio Agnes. O crime cometido em Alagoas ganhou repercussão nacional e, na manhã desta supersticiosa sexta-feira (13), em vez do chicote – acessório sugerido pela diretora da unidade de ensino – ela recebe uma honraria: a Comenda Zumbi dos Palmares. As lágrimas e expressão de desalento de cerca de um mês atrás ainda escorrem no rosto de Taynara durante discurso de encorajamento do movimento negro no estado.

Taynara falou com exclusividade à Mídia Caeté e contou o que aconteceu depois do ocorrido. “Saí do Colégio Agnes no mesmo dia do ocorrido e não mais voltei. Tive apoio significativo da comunidade alagoana, bem como do Brasil inteiro. Passei a dar palestras educativas sobre a importância do antirracismo-classista.” Atualmente ela é estagiária da Superintendência da Mulher (Semudh) e tem feito trabalho educativo pelo estado, junto ao órgão. “Depois do ocorrido, pude notar que pessoas, principalmente mulheres e a juventude, estão com ainda mais força. Notei que, de alguma forma, representei algo positivo para elas. Para o povo preto. Pude ver o incômodo das pessoas antirracistas e a garra da periferia em não se calar. Alguns dizem que me tornei a voz de pessoas silenciadas. Prefiro acreditar que estou mostrando que essas pessoas não são silenciadas e a partir de mim, perceberam a força de sua própria voz”, enfatiza.

Taynara tornou-se símbolo antirracista em Alagoas, desde que foi vítima do crime proferido pela diretora do Colégio Agnes/ Foto: Cortesia

Se a escravidão acabou em 13 de maio de 1888, o racismo – sobretudo o estrutural – tem um longo caminho a ser percorrido no Brasil até que possamos falar dele como algo que ficou para trás. Na concepção marxista, a revolução feminina é a mais longa da história, em decorrência da lentidão em que se dá seu processo. Mas questões étnicas, de gênero e sexualidade disputam, infelizmente e acirradamente esse lugar no pódio do que há de mais mesquinho e cruel no julgamento humano. Se viver em um mundo intolerante está “chato” ou difícil para você, imagine para Taynara: mulher, negra-classista, feminista, lésbica, pobre…

A jovem professora, de apenas 25 anos, é também estudante de Letras da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), e tornou-se um símbolo antirracista em Alagoas desde o fatídico episódio, daí a condecoração. Somente pessoas que se destacam na luta contra o racismo em Alagoas devem ser condecoradas com a Comenda Zumbi dos Palmares e o caso de Taynara, além da repercussão, do engajamento em favor da causa negra e da discussão ampla sobre o tema, fez também surgir a Frente Antirracista em Alagoas. “A Frente Antirracista de Maceió foi criada por membros de outros movimentos sociais e instituições (como a própria OAB). Ainda não temos uma sede, no entanto, isso já está em andamento. A proposta é ampliar para que a Frente receba mais membros e que possamos nos fortalecer ainda mais. Caso haja interesse de participação, em breve, anunciaremos uma reunião para organização de um ato antirracista, onde novos membros poderão manifestar interesse e somar conosco”, relata Taynara.

Ainda sobre o assunto, ela antecipa os próximos passos do movimento. “Dia 18 de março, a Frente estará unificando forças com os atos pela “educação” e “ditadura nunca mais”, mas queremos um ato em que a única pauta seja a luta antirracista em Alagoas. Assim que houver data para a reunião, divulgaremos,” informou.

Taynara Cristina da Silva nasceu na terra de Dandara e Zumbi dos Palmares, em 04 de fevereiro de 1995. Aos 16 anos, começou a lecionar e sempre abordou em sala de aula questões étnico-raciais, com o principal objetivo de empoderar meninas negras. Em sua família, ela foi a primeira pessoa a cursar o ensino superior. Como universitária, ela conheceu o movimento estudantil coletivo União das Letras, cuja maioria de integrantes é composta por mulheres negras.

Depois do episódio, Taynara foi procurada por vários veículos de comunicação e dela saiu frases icônicas como: “Não quero ocupar a casa-grande, quero a senzala no poder”; ou ainda “Sou feminista, negra-classista, pois acredito que a raça está intrinsecamente ligada à classe. Enquanto a maioria do povo preto ocupar as favelas e vielas, estarei na luta. Uso a perspectiva pedagógica como arma para educar e lutar indubitavelmente por equidade étnico-racial”; e também afirmações como: “A minha luta nunca foi ou será solo, afinal, além de ter em mim todos os sonhos do mundo, tenho pessoas incríveis como meus alunos e alunas, minha família, minha namorada, meus amigos e amigas e, sem dúvida alguma, minha gente preta sangrando comigo”.  

Hoje, trajando uma camiseta com a frase “Erguer-nos, enquanto subimos”, Taynara fez um belo discurso. Leia trecho:

“Estou aqui, não para ser a voz do povo preto. Ocupo o lugar de quem está correndo atrás, travando uma luta para que o meu povo preto tenha a própria voz. No estado de Acotirene, Dandara e Zumbi, quero ser resistência, a voz que ecoa e que educa, mas também os ouvidos que aprendem, que compreendem recortes necessários. Quero lutar para que mães de meninos negros parem de enterrar seus filhos. Quero que as empregadas domésticas, em sua grande maioria negra, não sejam vistas e tratadas como mucamas da senhora branca e objeto de assédio sexual para o senhor de engenho disfarçado de patrão.”

Do processo

Em terra de Zumbi, do Quilombo dos Palmares – o maior da América Latina, segundo historiadores – e de Taynara, sim, de Taynara também, racismo se paga com… cadeia? Não, ainda não. A passos lentos, o processo segue na Justiça e ainda é cedo para afirmar que quem ri por último ri melhor. Contudo, certamente Taynara tem sorrido bem mais do que a idealizadora do açoite, desde o ocorrido, e feito brilhar os olhos daqueles que têm sede de justiça e igualdade.

A acusada e diretora do Colégio Agnes, Suely Oliveira, segue respondendo a acusação de racismo. Embora ela siga em liberdade, a torcida para que a titulação seja o de crime de racismo é grande. Ocorre na sociedade civil uma confusão entre os crimes de racismo e injúria racial. O crime de racismo é previsto em Lei, a 7.716/89, e ocorre quando as ofensas praticadas pelo autor atingem toda uma coletividade, um número indeterminado de pessoa, ofendendo-os por sua ‘raça’, etnia, religião ou origem. O crime de injúria racial está previsto no artigo 140parágrafo 3º do Código Penal e ocorre quando o autor ofende a dignidade ou o decoro utilizando elementos de ‘raça’, cor, etnia, religião, condições de pessoas idosas e portadores de deficiência. Nesse caso, diferente do racismo, o autor não atinge uma coletividade e sim a uma determinada pessoa, no caso, a vítima. A pena prevista para racismo é a reclusão de um a três anos, multa e é inafiançável. Para injúria racial, a pena prevista é detenção de um a seis meses ou multa e é possível o pagamento de fiança.

“Abrimos duas ações contra ela, a trabalhista e a criminal. A trabalhista já tem audiência marcada, mas não será aberta. Só posso dizer que será ainda este mês. A criminal está em andamento, mas só será marcada após a primeira audiência trabalhista. As partes ainda estão sendo ouvidas. A luta é que ela responda por racismo – já que ela atingiu a todo um povo, quando faz apologia ao tempo da escravidão – mas não tenho como te dizer com precisão, já que o processo ainda está em andamento. No entanto, a luta é para que seja visto e tratado como racismo”, explica Taynara.

Os casos são tão raros e difíceis de judicializar que até pessoas famosas e influentes têm dificuldade. Nesta semana, duas vitórias judiciais em favor de casos envolvendo racismo foram divulgadas pela grande imprensa. Uma delas envolve o caso da menina Titi, filha dos atores Bruno Gagliasso e Giovanna Ewbank, que desde 2017 tentam na justiça a mudança de titulação na queixa-crime depois de ofensas proferidas à filha do casal na internet. A Justiça do Rio de Janeiro finalmente acatou o pedido contra Socialite Day McCarthy. Na última segunda-feira (09), a Justiça de São Paulo condenou dois homens acusados de injúria racial e racismo, contra a jornalista Maria Júlia Coutinho.

“Espero que após tudo isso, possamos nos unir e reivindicar ações afirmativas para a juventude negra, para as mulheres negras analfabetas. Quero empoderamento negro, quero educação de qualidade, arte e cultura para a juventude que é alvo para a bala perdida. Quero chance de vida para quem já nasceu marcado para morrer cedo, para meninos e meninas que viram em mim a possibilidade de alçar voo, de ascender. Que viram em mim uma representatividade. Eu agora tenho uma obrigação de cobrar políticas públicas para o meu povo. Tenho obrigação de gritar não por ele, mas com ele. A minha fala é política, justamente para cobrar que políticos que fazem politicagem passem a trabalhar com um olhar para a nossa juventude alagoana, para os nossos quilombos que ainda são extremamente pobres e sem qualidade de vida. Não quero estrelismo, quero incomodar a casa-grande fazendo o meu povo ascender”, ressalta.

Dados

Em 2019, dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH) havia registrado, nos quatro anos anteriores (entre 2015 e 2018), em Alagoas, 28 casos de racismo. Uma média de sete casos por ano e que coloca o estado no quinto lugar do ranking entre os casos notificados no Nordeste. Porém, o número não engloba as subnotificações.

Sobre como é possível mudar essa realidade, Taynara lembra: “Quero deixar claro (ou MUITO ESCURO) que haverá cobrança. Falar bonito é fácil, quero ações afirmativas, quero a educação, arte, cultura e oportunidades na favela. Quero que mães de jovens negros parem de enterrá-los e passem a vê-los formados!”[sic].

Da Cerimônia

A comenda Zumbi dos Palmares foi concedida à Taynara pelo vereador Cleber Costa./ Foto: Cortesia

A homenagem foi concedida pelo vereador Cleber Costa (PP), na Câmara de Vereadores de Maceió, a solenidade ocorreu no plenário Silvânio Barbosa, outra vítima da intolerância dos dias tenebrosos que vivemos.

Estiveram presentes a professora do núcleo do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro do Instituto Federal de Alagoas (Ifal) e coordenadora da Rede de Mulheres Negras, Fátima Viana, representando o Sindicato dos Trabalhadores em Educação de Alagoas (Sinteal), a diretora Lenilda Lima, representado o Museu Quilombo Real, o professor Edson Moreira, a jornalista e pré-candidata à prefeita de Maceió pelo Unidade Popular, Lenilda Luna, o presidente da Comissão de Defesa das Minorias Étnicas e Sociais de OAB, Alberto Jorge de Oliveira, além de familiares e amigos.

Assista a cerimônia completa da entrega da comenda aqui.

Relembre
Para saber mais sobre o caso, leia conteúdo detalhado produzido pelo jornalista Lucas Leite, da Mídia Caeté: clique aqui.

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