Denúncia de racismo em escola é respondida com várias vozes

Professora relata que diretora de escola pediu para que alunos comprassem chicote para bater nela
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Arte/Mídia Caeté

Oficialmente, a escravidão foi abolida no Brasil em 13 de maio de 1888, quando a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea, após um pouco mais de três séculos de escravização. Estamos em 2020, 132 anos após a abolição da escravatura, e os episódios de racismo ainda são recorrentes no país. Na semana em que a Quebra de Xangô, um ato de intolerância e perseguições a integrantes de religiões de matrizes africanas, completa 108 anos, Alagoas registra mais uma denúncia.

No dia 4 de fevereiro, em seu aniversário de 25 anos de idade, uma professora de Língua Portuguesa – negra – denunciou que sofreu racismo por parte da suposta diretora e proprietária do Colégio Agnes, Suely Oliveira, enquanto lecionava para estudantes do 3º ano do Ensino Médio. A escola está localizada no bairro do Trapiche da Barra, em Maceió.

Taynara Silva informa que trabalha na escola desde 2017 e que é muito atuante em projetos para despertar o pensamento crítico dos estudantes. Em 2019, ela realizou uma atividade que mostrava o uso da educação como forma de combate ao racismo.

“Ontem [03 de fevereiro], eu precisei falar com o filho da minha chefe (que foi denunciada pelo ato de racismo) pelo WhatsApp, a respeito de umas férias que eu tinha tirado. Ele estava dirigindo e eu não sabia. Segundo ela, enquanto eu conversava com o filho dela, ele bateu o carro. Após isso, ela [Suely] entrou em uma sala de 3º ano do Ensino Médio [no dia 4 de fevereiro], onde eu estava lecionando uma aula de Gramática, com cerca de 50 estudantes, e começou a dizer que eu havia batido o carro do filho dela, que por ter falado com o rapaz, ele bateu o carro”.

Ainda de acordo com Taynara, a Suely a chamou de “ousada e espalhafatosa” e disse aos alunos que, “quando fossem a Ouro Branco comprassem um chicote para ela bater em mim e me fazer lembrar da época da escravidão, que eu tanto temo”.

“Isso mexeu diretamente em uma luta que eu sangro com ela, como uma mulher negra, antirracista e feminista classista. Eu tenho alunos e alunas que estão nessa causa também. Quando ela falou isso, teve uma estudante que comparou ela a uma senhora de engenho, com discurso racista”, relata Taynara.

A educadora explica que, após o discurso, os estudantes interviram, achando a situação um absurdo, e que Suely Oliveira tentou reverter a situação.

“Ela disse que era uma brincadeira, um teste, para saber se os alunos estavam aprendendo algo nas minhas aulas. Eles não acreditaram e a minha chefe ficou envergonhada e saiu da sala. Eu não consegui mais dar aula e comecei a segurar o choro. Quando eu olhei, havia alunas negras, na minha frente, se acabando de chorar. Isso não mexeu só comigo, mexeu intrinsecamente com essas meninas que estão em processo de auto aceitação, de conseguir usar o cabelo natural, de conseguir se assumir como mulher negra. Eu saí de sala e comecei a chorar. Na sala dos professores, a minha chefe foi atrás de mim falando que não entendeu por que eu fiquei irritada e que foi uma brincadeira. Esse tipo de brincadeira mata pessoas, isso é racismo”, desabafa Taynara Silva.

Foto: Reprodução/Instagram – Taynara durante atividade de combate ao racismo no Colégio Agnes

Representação na Justiça – Na manhã de 5 de fevereiro, a educadora foi ao 3º Distrito Policial (DP), localizado no bairro do Prado, onde formalizou um Boletim de Ocorrência (B.O.) contra a direção da escola por racismo. Apesar da formalização, o processo será encaminhado ao 22º Distrito Policial, no bairro do Trapiche da Barra, por ser mais próximo de onde o fato ocorreu.

De acordo com funcionários do 3º DP, o delegado Valdor Coimbra Lou irá ficar responsável pelas investigações a respeito do caso.

O Sindicato dos Professores (Sinpro) de Alagoas também entrou com uma representação contra o Colégio Agnes. O presidente do sindicato, Eduardo Vasconcelos, explica que foi até o 7º DP, na Pitanguinha, para pedir a abertura do inquérito que, segundo ele, será encaminhado ou ao 22º Distrito Policial ou à Delegacia da Mulher.

“Gravei um vídeo repudiando o fato. O MPT [Ministério Público do Trabalho] entrou em contato e pediu para que fosse aberto um ofício por assédio e por discriminação no meio ambiente do trabalho”, diz Vasconcelos.

O presidente alega que o racismo é uma prática velada pela sociedade e que ele deve ser combatido veementemente. “Devemos repudiar essa situação, a professora foi muito corajosa e o sindicato está fornecendo apoio jurídico e psicológico. Que isso sirva como lição para os gestores, para não ter esse preconceito, e para os docentes, para denunciar”.

A Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Alagoas (OAB-AL), por meio das comissões de Direitos, de Promoção da Igualdade Social, e Comissão Especial da Mulher também manifestou apoio à professora Taynara.

A Associação de Negros e Negras da Ufal (ANU) também repudiou o fato e afirma estar disposta a combater toda e qualquer prática de racismo.

Foto: Reprodução/Instagram – Colégio pediu desculpas pelo fato mas apagou imagem das redes sociais após repercussão negativa

Colégio Agnes – Após o fato, o Colégio Agnes se manifestou em suas redes sociais. Em uma publicação afirmando que “desculpas não são suficientes para reparar a dor causada no dia de hoje”, a instituição admite o erro e pede perdão, informando que as medidas necessárias serão tomadas para que “o que aconteceu hoje jamais volte a se repetir, seja quem for”.

O texto foi publicado no Instagram e no perfil do Facebook da unidade escolar. No primeiro, ele foi excluído horas após a postagem. Já no segundo, até a publicação dessa matéria, o material continuava no ar.

A reportagem da Mídia Caeté esteve na escola e falou com Suely Oliveira, que se declarou como coordenadora-geral do colégio, e com o filho dela, Victor Matheus Oliveira, que afirmou ser o diretor e proprietário da unidade escolar. Victor Oliveira conta que excluiu a publicação porque acha que “ela não foi bem recebida”.

Suely relata que, ao entrar na sala durante a aula (prática que Taynara afirma ser comum por parte dela), falou aos alunos que “quem for a Ouro Branco traga o melhor couro que tem na cidade, para trazer um cinturão para mim, e não para bater nela”. “Como é que eu vou bater em filhos, alunos e professores? Acho que é algo para tentar prejudicar a imagem do colégio” – completou.

Suely Oliveira informou ainda que o filho, Victor Matheus Oliveira, apontado por ela como diretor e proprietário do Colégio Agnes, quer que ela se afaste do cargo de coordenadora-geral. “Eu acho isso uma coisa ridícula. Não concordo, não aceito, mas a decisão é do meu filho que está administrando [a escola]”.

“Estamos procurando resolver as coisas de uma maneira que tudo fique acertado e ninguém saia prejudicado com a situação. O colégio é uma instituição que repudia qualquer tipo de preconceito ou discriminação, seja ele social, opção sexual e, principalmente, pela raça e pela cor. Nós sempre, ao longo de vários anos, fazemos eventos para combater esses preconceitos. Não é uma prática nova do colégio. Se fôssemos realmente racistas, nem aqui ela [Taynara] deveria estar, porque ela é negra. Isso que aconteceu foi uma frase que foi mal interpretada e que saiu no momento. Foi uma coisa singular, que nunca existiu na história do Agnes”, afirma Victor Oliveira.

A Mídia Caeté fez uma busca no Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ) 06.105.685/0001-17, do Colégio Agnes LTDA, aberto em 16 de fevereiro de 2004. De acordo com a Receita Federal, a empresa está com a situação cadastral inapta por omissão de declarações. A data da situação cadastral é referente a 25 de setembro de 2018. A pesquisa foi feita e emitida pelo sistema da Receita Federal em 5 de fevereiro de 2020.

Foto: Reprodução/Receita Federal – Inscrição de situação cadastral mostra que o Colégio Agnes LTDA está com situação inapta

Protesto

Na manhã da quarta-feira, 5 de fevereiro, um grupo de alunos do Colégio Agnes, acompanhados por professores, além de amigos e colegas da professora Taynara Silva, realizaram uma caminhada em protesto ao ato de racismo denunciado na unidade. Os manifestantes saíram gritando palavras de ordem, além de cantar parabéns para a professora, no ato que encerrou em frente à escola.

O professor Helton Santos, que também participou da manifestação, diz que o aulão organizado duas vezes ao ano pelo Ogro Web TV irá arrecadar, na próxima edição, fundos para doar à educadora. “Dessa vez, toda a arrecadação será doada à ela, porque sabemos que ela será demitida após a denúncia. Além disso, queremos prestar toda a solidariedade e assessoria, seja jurídica ou psicológica, que a Taynara possa vir a precisar”. Para conhecer o canal Ogro Web TV, no Youtube, é só clicar aqui.

Escravidão

Apesar dos tempos modernos, um tipo de escravidão – muito similar àquela de um século atrás – é muito presente em nosso país. O Portal da Inspeção do Trabalho fez um levantamento do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, por meio do Radar SIT. Para conferir basta acessar o link.

De acordo com o levantamento, em 2019, 1.054 pessoas foram encontradas em Condições Análogas à de Escravo Encontrados pela Inspeção do Trabalho. O número é menor, se comparado a 2018, que registrou 1.754 ocorrências.

Em Alagoas, não há um número em 2019 para as situações de trabalho escravo. Mas, em 2018, foram contabilizados 90 casos, na fabricação de farinha de mandioca e derivados, no município de Feira Grande.

Um estudo feito pela Repórter Brasil mostra que 82% dos resgatados em trabalho escravo no Brasil são negros . A reportagem de Daniela Penha apresenta dados alarmantes, expondo que dos 2.043 negros e pardos encontrados em situação análoga à escravidão, entre 2016-2018, a maioria são jovens nordestinos e sem escolaridade.

Reprodução/Sidra

Não Feche a Conta

“A cota é pouca e o corte é fundo. E quem estanca a chaga, o choque do terceiro mundo” (Pra Que Me Chamas – Xênia). Como diz Xênia, o corte é fundo. Ser negro no Brasil está cada vez mais difícil, pelo menos são o que mostram diversos dados e pesquisas nacionais.

De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Trimestral de 2019, em Alagoas, no 1º trimestre, 172 mil pessoas declararam ser pretas, contra 786 mil (brancas) e 2.326 (pardas). No 2º trimestre, aumentaram o número pessoas pretas (182 mil) e brancas (804 mil) declaradas, e o de pardas diminuiu (2.310 mil). Por fim, no 3º trimestre, o registro foi de 175 mil habitantes pretos, 825 mil brancos e 2.297 mil pardos.

Apesar de ser a minoria declarada população alagoana, o negro, na terra de Zumbi dos Palmares, se destaca em outro ranking: o de homicídios. O Atlas da Violência 2019, que reúne diversos casos de violência entre 2007 e 2017, traz um estudo sobre o Brasil e as suas Unidades Federativas (UFs).

Em 2017, um total de 104 mulheres negras foram mortas em Alagoas, um acréscimo, segundo o Atlas, de 14,3% em relação ao ano anterior, que registrou 91 homicídios. Se comparado ao número de assassinatos a mulheres não negras, a diferença é abissal. O estado registrou um homicídio em 2017 e seis em 2016.

Alagoas contabilizou em 2017 o total de 1.740 homicídios de negros. O maior registro na década estudada foi em 2011, com 2.013 mortes. Em comparação as mortes de não negros, em 2017, foram registrados 30 assassinatos. O maior número do levantamento de não negros foi em 2013, com 113 casos.

Para o jovem negro de 19 a 25 anos de idade, Alagoas foi o quarto pior local no país para se viver em 2017. Durante este período, a cada 100 mil jovens, 252,3 jovens foram assassinados no estado, que só ficou atrás de Pernambuco (255,4), Ceará (262,6) e Rio Grande do Norte (281,9).

No total, as cinco maiores unidades federativas com homicídios de negros estão no Nordeste. São eles: Rio Grande (87), Ceará (75,6), Pernambuco (73,2), Sergipe (68,8) e Alagoas (67,9).

E aí, você ainda acha que o racismo é uma brincadeira inocente?

Clique para conferir a tabela do SIDRA e do Atlas da Violência.

Arquivo Pessoal/Anderson Lôbo – Estudantes participam de mobilização em frente ao Colégio Agnes

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