O ‘looping’ dos empresários nos grupos de whatsapp

Fuga da realidade e defesa da economia predominam argumentos entre os que querem fim do isolamento

O primeiro decreto do governador Renan Filho (MDB) suspendendo o funcionamento de estabelecimentos comerciais, a fim de retardar a transmissão do Coronavírus em Alagoas, interpôs um descontentamento generalizado aos setores econômicos afetados pela medida. Grande parte da população já compreendia a importância da quarentena, uma vez que a escala de contaminação começava a alçar voo no Brasil, e países como Itália e Estados Unidos já passavam por uma explosão de mortalidade. Nem todos, no entanto. Uma parcela de empresários alagoanos, fortalecidos pela postura de descrédito do presidente Jair Bolsonaro, manteve a discordância. Com símbolos patrióticos,  resolveram pressionar o governo estadual pelo fim do quarentena, na contramão de diversas entidades voltadas à saúde pública. Nas bandeiras: “a economia não pode ficar parada, com ou sem Covid-19”, ou mesmo “Idosos e enfermos em casa, e o resto deve voltar para a guerra”

As dúvidas se sobressaem diante da eminência da tragédia que já chegou a Alagoas: de que perspectiva de realidade partem estes grupos para contrariar uma série de recomendações de entidades internacionais, científicas e médicas, para defender que está “ok” expor seus funcionários e toda a população aos riscos de contrair Coronavírus?

Mais que isto: qual a “economia” que eles tanto querem salvar?

No intuito de responder estas e outras questões – a Mídia Caeté teve acesso às discussões de quatro grupos diferentes de organização de carreatas em Maceió. As mobilizações dos empresários ocorreram no último sábado e domingo, 28 e 29 de março, e reivindicavam a reabertura dos estabelecimentos comerciais, cujo funcionamento foi suspenso por decreto do governador Renan Filho, e o apoio a Jair Bolsonaro. Após o fim de semana de carreatas, e mesmo após a primeira morte por Covid-19 em Alagoas, nesta terça-feira, 31, os grupos continuam pretendendo se mobilizar.

A insatisfação dos empresários, entretanto, é um pouco mais antiga. Antes mesmo do pronunciamento oficial de Jair Bolsonaro, no dia 23, Alagoas já registrava aumento constante no número de denúncias por descumprimento ao decreto estadual. Grande parte delas, segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado, tratava-se da abertura irregular de bares, restaurantes e lanchonetes. A fala do presidente veio, portanto, a calhar. Correspondeu aos anseios dos grupos e os presenteou, nos quase cinco minutos de vídeo, com todas as palavras-chave que precisariam para levantar suas bandeiras: gripezinha, histeria, culpa da imprensa, plano de governadores, defesa da economia, desemprego e, finalmente, um “isolamento vertical”.

A inserção desse pronunciamento nas conversas disseminadas por grupos do Whatsapp de seus seguidores originou toda uma reação em cadeia cujo resultado já se esperava: os decretos estaduais e municipais que determinavam a suspensão de estabelecimentos não essenciais foram postos em ameaça. Junto aos decretos, também era colocado em risco a única possibilidade até então comprovada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para retrair o ritmo de transmissão do Coronavírus no país, e em Alagoas: a quarentena.

Entre desabafos, argumentos, e homenagens a Bolsonaro, as falas mais recorrentes apontam que a ‘defesa da economia’ é um looping eterno onde a insatisfação pela perda da renda individual constrói uma repetição de narrativas ideológicas alimentadas por desinformação e assimetrias lógicas. A partir deste acompanhamento, citamos finalmente as defesas mais recorrentes:

1. Conspiração contra o Mito

Além de reforçar a figura de Jair Bolsonaro como um político injustiçado e incompreendido, constantemente as falas sugerem que a pandemia do Coronavírus é um instrumento construído ou usado pelo comunismo para boicotar o presidente ou aumentar a corrupção. A recorrência com que são utilizados vídeos, stickers, e textos de menções em exaltação a Bolsonaro denota que, de apartidário, o movimento não tem nada. Quando nada mais dá certo, as notícias duvidosas são lançadas.  E o significado do vale-tudo se expressa desde o surgimento de matérias de fontes duvidosas como, inclusive, explicações causais de criatividade indiscutível.

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2. As dificuldades econômicas

A dificuldade material dos microempresários sem o faturamento diário é a realidade preponderante em que se queixam. Frequentemente estendem essa dificuldade aos seus empregados, apontando a possibilidade de demissões. Anunciam descrédito em relação aos repasses para o pagamento de salários. Queixam-se em relação à dificuldade de pagar as contas dos estabelecimentos, sobretudo de funcionários, sem que haja qualquer tipo de receita. No mais, ora se colocam em defesa da própria classe, ora estendem como uma defesa ‘universal’. Para ler os relatos de pessoas inseridas de fato neste contexto, clique aqui. Finalmente também preocupam-se em não ‘parecerem vilões’.

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3 . Anticomunismo e defesa da ditadura.

Para eles, Renan Filho (MDB) é comunista, a Organização Mundial da Saúde é comunista, Lula é comunista; China, Venezuela e Rússia são comunistas. O Coronavírus também é um instrumento utilizado para a ditadura comunista. Certo. No início todo absurdo parece engraçado. A coisa toda começa a adotar contornos perigosos, logo em seguida, quando começam a sugerir intervenção militar e ditadura.

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4. Isolamento Vertical

Descartado pela Organização Mundial de Saúde, pelo próprio Ministério da Saúde, e pelas maiores entidades de saúde do país, o isolamento vertical – isolar apenas as pessoas mais vulneráveis em casa- continua sendo insistência para esta parcela da população.

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Com a palavra, os organizadores

“Nós queremos mostrar que a massa está disposta a abrir o comércio segunda-feira. Com o governo, não tem conversa, porque ele não está nem aí para o setor comerciário. Enquanto isso, a gente vê porteiros trabalhando, supermercados. Na nossa concepção, se é para fechar, por que não fecha tudo? Porque estão fazendo isso por política e não para cuidar da população”, argumentou André Heliodoro, ao ser questionado sobre a razão da carreata.

Segundo o dono do restaurante Maria Gorda, há consciência de algum risco na pandemia. “A gente sabe que tem risco, mas nós estamos dispostos a ter os cuidados, deixar as mesas separadas, nos precaver. O que não podemos é deixar tudo fechado. Então ou a gente corre o risco mesmo, morre lutando, ou vai ser uma tragédia”, justifica. Tudo bem vocês correrem o risco, mas precisam também submeter seus funcionários ao risco? Resposta: “Meus funcionários também querem voltar porque eles têm medo de perder emprego. Sabem que também vão sofrer. Eu tinha 75 funcionários e já demiti 55”, conta. “Ficam falando sobre morrer de coronavírus, mas eu não posso também morrer de fome. É por isso que vou abrir segunda-feira”.

Para Heliodoro, ao fechar restaurantes e manter supermercados abertos, o governo do Estado inseriu certa disputa desleal. “Como eles deixam os supermercados abertos, as pessoas preferem comprar nos supermercados e fazer comida em casa, do que pedir delivery no nosso restaurante. Elas fazem isso porque acham que é arriscado comprar em restaurante. E e não há risco em comprar no supermercado, não?”, sugere.

A empresária Erika Cortez defende que há outras preocupações além da pandemia: as contas. “Não queremos ir contra o governo. Queremos sim que o governo nos dê apoio e entenda que, além do Coronavírus, teremos dificuldades muito maiores do que essa pandemia, como o desemprego, o desespero de uma população que não tem em que se segurar. As contas das empresas podem até ser adiadas, mas não serão perdoadas”, rebateu.

“Mesmo com toda a inciativa do governo, vamos dever aluguel, água, luz, porque o faturamento não dá para cobrir o ponto fixo. Tem aluguel que é caríssimo, tanto para pequenos grandes e médios [empresários]. Ninguém quer que ninguém se contamine ou aumentar casos. Queremos ter direito de trabalhar tomando as devidas precauções para que esse vírus não se espalhe. Ninguém está indo contra a população, contra o governo, ninguém está querendo causar um tumulto maior, nada disso. A gente só está querendo o direito de abrir o comércio para que a economia rode”.

O problema é que, conforme atentado pelas entidades de saúde, a tomada das ‘’devidas precauções’’ perpassa necessariamente por adoção de distanciamento social. No que diz respeito à realidade brasileira, o fechamento do comércio e a restrição da circulação de pessoas têm sido consideradas ações-chave para redução da curva. A Mídia Caeté já tratou a respeito de como profissionais de saúde têm lidado com a situação aqui  e aqui.

Que as entidades científicas haviam rebatido a argumentação do ‘fácil’ controle do Coronavírus, já se sabia. A questão é quando, até mesmo economicamente, especialistas demonstram que não há respaldo que justifique submeter funcionários e clientes a riscos, e com eles toda uma população que pode ser contaminada através de transmissão comunitária.

A perversa “Defesa da Economia” e uma fuga da realidade

 

Se a entidade “economia” é dotada de uma complexidade maior do que o palmo a frente da classe empresária, se eles são confusos, ou se constroem para si uma realidade paralela, não se sabe. “Essa característica é de uma atitude genocida”, pontuou o professor de Economia da Universidade Federal de Alagoas, e coordenador do Núcleo de Auditoria Cidadã da Vítima no Estado,  José Menezes. Para o pesquisador, o Brasil deve aprender com os exemplos internacionais, onde países que quebraram o quadro de isolamento tiveram um aumento no número de mortes.

“A Itália só passou a proibir trabalho nas fábricas há poucos dias e veja como a situação está. Um amigo da Universidade de Nápoles relatou a bomba de mortes que se criou ao manter os operários atuando dentro das fábricas. Foi elemento contaminante de toda aquela região. O que eles estão tentando fazer, reduzindo o isolamento, a Itália tentou, o Trump tentou nos Estados Unidos, e foi percebido que não estava dando certo, tanto é que houve o pico de mortes e ele teve que recuar. Bolsonaro é o único presidente que está insistindo, porque até o Trump, que era seu grande referencial, voltou atrás”, reforçou. O especialista reproduz as indicações de entidades médicas como a OMS de que o distanciamento social é elemento decisivo para tornar a propagação mais lenta. “Se não for feito isso, os casos irão expandir em progressão geométrica, como foi lá. E não teremos atendimento médico”, comenta.

Menezes relembra que a estagnação econômica no país não é responsabilidade exclusiva do Coronavírus. “Nos últimos quatro anos, entrou em colapso. O grande problema é que, antes da pandemia, as bolsas já estavam caindo pela guerra comercial, o desemprego aumentou bastante. E esses mesmos comerciantes que estão fazendo as carreatas são os que apoiaram as Reformas Trabalhista, da Previdência e esta Administrativa que está por vir. E aí quando o desemprego sobe, como saiu de 7% para 13%, eles não sabem por que as pessoas não consomem. Se agora terei que pagar mais com previdência social, não vou mais ter condições de ir para restaurantes. É por isso que as pessoas preferem comprar em supermercado e fazer a comida em casa”, ressaltou. Em consonância a Menezes, outros especialistas também já discutiram os efeitos das reformas trabalhistas sucessivas nas condições de trabalho. Clique aqui para conferir a leitura.

No que diz respeito à iminência da pandemia no país, mais um problema identificado pelo professor de Economia  toma novas proporções: quando os mesmos empresários que fogem da responsabilidade em relação à crise – inflamada pelas reformas que defenderam- constroem toda uma narrativa de negação da realidade. “Eles interpretam equivocadamente que, se houver paralisação nesses serviços, Bolsonaro vai cair. E aí na cabeça deles tudo se torna um projeto de governadores para derrubar Bolsonaro”.

Esta ideia de vítima se torna ainda mais nítida diante do isolamento do presidente nos diversos meios políticos. A recusa dos governadores em seguir sua recomendação de “retornar à normalidade” foi apenas um dos casos recentes. Há uma série de conflitos anteriores junto ao Congresso Nacional e mesmo à política internacional. “Bolsonaro está completamente isolado. Não existe mais. Tudo o que ele indica é ignorado”, reforça.

Este isolamento não o impediu, no entanto, de proferir discursos assimilados por seus seguidores com ampla capacidade de provocar danos sociais. Assim, ao invés de requisitar soluções e efetivação de políticas públicas para garantia de condições de renda de modo que a população se mantenha segura em casa, a solução disseminada por estes grupos é unicamente submeter os mais vulneráveis a riscos de contaminação.  “O que eles estão fazendo é um ato irresponsável com a população pobre, e é o que ela menos precisa nesse momento. Como eles não estão entre os 90% da população que não tem plano de saúde, acham que quando o pico de casos chegar, eles estarão cobertos. Não estarão”.

O contrassenso resulta, finalmente, no resultado oposto ao que mais esperam. “Eles deveriam perguntar, antes de fazerem esse tipo de defesa, quem são os seus consumidores? Os consumidores são seres humanos e eles esquecem disso. Se os consumidores estão desempregados, não terão condições de comprar. Se estiverem morrendo, os empresários não vão ter condições de manter esses lugares abertos. Eles não sabem o que quer dizer a economia que eles mesmos defendem. Só apoiam Bolsonaro porque boa parte tem características em comum, o racismo, a misoginia”, diz.

Para o pesquisador, um entendimento de macroeconomia poderia ajudar a entender a conjuntura e afastar as falsas conexões estabelecidas nas mentes dos mais desavisados.  Por outro lado, a tacanharia é um fator que prejudica bastante a visibilidade. “Eles acham que se abrir o comércio deles, só os pobres irão morrer? Eu conheço gente que estava apoiando esse grupo e hoje está na UTI. O economista do FMI, que fez essa mesma defesa, morreu nesta semana. Quem está apoiando a iniciativa deles no fim das contas? Bolsonaro, alguns setores evangélicos, neo-pentecostais que brigam para manter a igreja aberta. É um segmento que se distancia do mundo real. Não representam o que deveria ser o comportamento de qualquer ser humano”.

Existe uma heterogeneidade limitada nesta gente que defende o “volta para guerra”. Para Menezes, “eles não têm argumento, entendimento de política socioeconômica, nada. São pessoas que vivem no mesmo patamar de conhecimento e preocupação social que Bolsonaro”. Segundo o professor de Economia, grande parte da população trata-se, de fato, de microempresários, ou de sujeitos que perderam emprego e, não tendo alternativa, se intitulam empresários, mas se encontram em situações mais precarizadas. “Moro próximo a uma hamburgueria e, sempre que passo por perto, tem sempre as mesmas duas pessoas sentadas. Imagina quando 700 pessoas perdem emprego na Eletrobras em decorrência da privatização? Eles estavam lá defendendo isso antes. Eles estavam lá no dia 15. E não entendem quando as pessoas não podem ir para suas hamburguerias. Acham que é porque preferem supermercado”.

Para os que desejarem compreender as possibilidades de fortalecer o serviço público em favor do combate ao Coronavírus, o pesquisador tem compartilhado estas discussões em algumas lives.

Aliança(s)

José Heliodoro conta que decidiu realizar a carreata com um amigo. Assegura que não houve iniciativa de nenhuma organização, ou mesmo associação: “São empresários cansados do governo ser sempre contra os comerciários”.

Eles não apareceram à frente com a bandeira, mas estavam lá no dia 28, 29, no dia 15. Antidireitos-humanos, Anticomunistas – o que quer que achem que isto signifique: anti-tudo. O discurso de uma direita que nem sempre se denomina direita, se falta em coerência, sobra em coesão. As mesmas repetições proferidas e, eventualmente, alguns sujeitos do projeto de partido de Bolsonaro, a Aliança pelo Brasil, aparecem e se mostram.

Embora não tenha se colocado à frente das carreatas,  tampouco a Aliança se escondeu em algum momento. O partido de extrema-direita em construção, de Jair Bolsonaro, tem estado presente em todas as mobilizações com símbolo “patriótico”, inclusive as de caráter antidemocrático, como a mobilização do dia 15,  alavancando seu lema “Deus, Pátria e Família”, reunindo e fomentando o fascismo na borda da ideologia liberal dos micro e pequeno empreendedores insatisfeitos e excluídos da política econômica aprofundada por Paulo Guedes. Em Alagoas a situação não é diferente. Através de fomentadores da Aliança, Bolsonaro e sua família suprem o isolamento crescente com a adesão fanática nas ruas. Dos trios aos carros das empresas, vale tudo para inflar as mobilizações.

Entretanto, não conseguindo adquirir as 500 mil assinaturas necessárias para disputar as eleições, a Aliança pelo Brasil segue determinada, no entanto, a adquirir novos apoiadores a cada ato. Em Alagoas, apesar das mobilizações, o Tribunal Superior Eleitoral contabiliza apenas 75 apoiamentos aptos.

Fonte: TSE

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