Direitos ou emprego: o que vamos fazer com essa tal Liberdade?

Como a Lei da Liberdade econômica e as outras reformas estão inviabilizando o crescimento econômico
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Como a Lei da Liberdade Econômica e as outras reformas estão inviabilizando o crescimento econômico – inclusive para quem está nessa pensando em lucrar.

 

Foto: Sinait

Quando o então ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, anunciou em 2017 que a Reforma Trabalhista (Lei 13.467) injetaria 6 milhões de empregos no país, a tese parecia tão simples quanto uma regra de três: com a redução dos custos do trabalho, empresários teriam maior liberdade de negociação com trabalhadores, e finalmente o mercado ficaria livre para voar, competir e empregar. O aumento se deu em pouco mais de 1 milhão de empregos, muitos deles sob as novas normas que possibilitavam ao empregador pagar menos encargos e salário, por exemplo, através de contrato de trabalho intermitente. Ainda assim, as pesquisas mais recentes do IBGE remontam que, embora o desemprego até tenha tido lá sua diminuição, 87,1% dos trabalhadores que ingressaram no mercado, o fizeram sob condições precárias: a ocupação informal é a condição de 41,3% da população ocupada no país.

Além das alterações em leis trabalhistas, outras medidas estruturais interferem diretamente em quem atua na intermediação das relações de trabalho. É o caso da extinção do Ministério do Trabalho, que passou a integrar o Ministério da Economia. Além de uma alarmante fragilização da fiscalização do trabalho, a extinção de grande parte das Normas Regulamentadoras da Saúde e Segurança do Trabalho também alavancou um resultado controverso. Embora algumas retiradas tenham sido indiferentes em razão de se configurarem como “entulho burocrático”, outras tantas encontravam-se, segundo o Sindicato dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), no rol da proteção de vida do trabalhador. À época, o presidente do SINAIT criticou veementemente a medida do governo, considerando-a como a politização de um debate que deveria ser técnico.

Podia ser o momento de reavaliação das medidas? Podia. No entanto, as tentativas de responder a lentidão do crescimento econômico se concentraram nesta mesma salvação: reafirmar a importância de liberar o empresariado de encargos com trabalhadores, aprofundando medidas que a reforma trabalhista, com seus mais de 100 pontos alterados na CLT, não deu conta. Com a caneta do agora ministro Paulo Guedes, sucessivas reformas que afetam as pessoas que vivem de seu trabalho continuam a ser promovidas. Algumas delas aparecem diluídas – quase que disfarçadas – em reforma administrativa, como é o caso da Lei da Liberdade Econômica. Já a Medida Provisória da Carteira Verde e Amarela fala diretamente ao chamado Mundo do trabalho. E é importante que as pessoas que trabalham (formal ou informalmente) as escutem.

Segundo informações do Cadastro Único do Ministério da Cidadania, a pobreza extrema no país aumentou para 13,2 milhões. Ao mesmo tempo, a concentração de riqueza também cresce, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), do IBGE, que revelou que 1% dos mais ricos recebe 33,8 vezes mais do que 50% da população mais pobre. No mais, 10% da população concentra 43,1% de toda a renda.

Estes números não são inéditos. Foram amplamente noticiados e não refletem uma relação causa-consequência destas medidas, mas mostram a condição social de um país que caminha sob estas modificações, e cujos danos foram aprofundados pela reforma trabalhista ‘original’. Em resposta a MP Verde e Amarela, o próprio DIESEE emitiu uma nota técnica (clique aqui para acessá-la) criticando-a como modalidade legal de trabalho precário e classificando-a como uma nova reforma trabalhista. É por isso que, para além dos números – mas também com eles – o que convidamos as leitoras e leitores a observar é a realidade interposta pelas liberdades econômicas nestas medidas recentes e mais antigas. Diferentemente daquela liberdade citada por Cecília Meireles, em que “não há ninguém que explique e ninguém que não entenda”, nesta aqui certa compreensão pode ser facilitada a partir de três perspectivas de análise.

Trabalhadores (ou não), segurai-vos firme a paciência, porque a leitura tem um pouco mais de caracteres do que um tweet.

A Mídia Caeté conversou com o procurador-chefe do Ministério Público do Trabalho, Rafael Gazzaneo, com o sociólogo Lucas Menezes e com o economista Humberto Filho, no intuito de compreender o quanto a desregulamentação dos direitos trabalhistas está de fato melhorando as condições econômicas do país, seja a partir dos impactos na vida da população de um modo geral, seja onde as perspectivas de modificações podem vir a despontar. As análises se apresentam aqui de forma correspondente aos formatos em que os questionamentos foram apresentados: duas entrevistas efetuadas em dinâmica de discussão, e uma entrevista no formato ping pong.

 

O fenômeno mundial e as particularidades brasileiras

 

 

Citando as revoltas populares que acontecem na América Latina em enfrentamento à retirada de direitos trabalhistas, além das eleições de figuras identificadas como extrema-direita, e hostilidade em relação a imigrantes, o procurador-geral do Ministério Público do Trabalho em Alagoas, Rafael Gazzaneo, reflete que o universo do trabalho passa por uma revolução no mundo inteiro.

No entanto, remonta uma série de particularidades no país. “Ao meu ver, o Brasil tem características muito próprias, porque parte de um governo que não se envergonha em dizer que é de extrema-direita, que não tem receio em dizer que temos legislação leniente em relação às minorias, que não tem receio em colocar religião como algo interligado ao próprio Estado. É uma série de medidas que me preocupam muito como cidadão e como membro do Ministério Público brasileiro”, declara.

Frequentemente contextualizando as mudanças do trabalho em todo o mundo, suas semelhanças e distinções no país, Gazzaneo se voltou a uma série de análises que incluem desde a influência das modificações tecnológicas até as questões influenciadas por crises econômicas. “Não é um fenômeno localizado no Brasil. As profissões têm passado pela chamada uberização, e a maioria dos países atravessam esse período impactados pela revolução digital.

No Brasil, entretanto, há uma série de distinções. Para começar, segundo Gazzaneo, o quase clássico temor em relação à ‘substituição de humanos por robôs no trabalho’ ainda é remota, mais voltada a profissões como frentistas e cobradores de ônibus. A segunda se trata da disseminação dos aplicativos de transporte que, por sua vez, também é uma problemática exaustivamente discutida.

“Nossa preocupação é que não existe regulamentação sobre essas situações e a legislação do trabalho ainda não se deparou para regulamentar. O que existem são ações trabalhistas que têm surgido. Eles reclamam o reconhecimento do vínculo diretamente com o aplicativo. Já o aplicativo argumenta que está fazendo apenas agenciamento entre quem vende e quem consome”, relata. Ainda não há uma resposta mais definida ao problema, segundo Gazzaneo. “A Justiça do Trabalho tem variado. Em algumas situações reconhece o vínculo e em outras não, então há jurisprudência formada.

Para Gazzaneo, em algum momento a regulamentação será necessária. “O interessante é que alguns países já têm essa preocupação”, comenta, citando Inglaterra e Estados Unidos. Só que aí segue mais uma diferença. O país passa por um processo contrário: de desregulamentação trabalhista. “Você vê que contradição. Como querer regulamentar questões novas decorrentes dessas mudanças, e ao mesmo tempo querer desregulamentar para facilitar contratação? Só comprova que vivemos em um momento emblemático em que nada é definitivo”, diz.

Para além de respostas aos [tantos] questionamentos lançados, o o procurador-chefe do MPT refletiu sobre uma questão que considera emblemática: qual resposta o legislador no Brasil tem dado para a questão trabalhista mais premente, que é o problema do desemprego? “Acho que no Brasil o que menos influencia nos índices estratosféricos de desemprego seja a revolução digital. O que influencia mesmo é a economia”, avança. “São quatro anos de recessão. Desde 2012 que a economia tem perdido força e, em razão disso, o desemprego tem aumentado. A resposta dos últimos governos – Temer e, agora, Bolsonaro – tem sido flexibilizar a legislação do trabalho com o objetivo de aumentar os postos de trabalho. Pelo que tenho assistido, apesar dos grandes esforços em divulgarem essa tese, a gente não concorda com ela”, declarou.

Gazzaneo explica a razão da discordância: “ Até o ano passado, estivemos no auge de 13,5 milhões de desempregados. Hoje houve uma redução pequena nos empregos formais criados, mas comprovadamente com postos de trabalho de qualidade duvidosa, como esses resultantes da uberização e muitos classificados no campo da informalidade. A maioria sem direitos trabalhistas básicos”.

Rememorou, ainda, a declaração de Guedes a respeito da expectativa de 6 milhões de empregos, o que só se concretizou com o aumento de 1 milhão, nas condições de flexibilização das normas. “Uma coisa completamente fora do horizonte. Um grande mentira, um engodo, uma farsa que venderam para que a precarização, a flexibilização e redução acentuada dos direitos trabalhistas pudesse ser aprovada pelo congresso nacional. E foi. E Essa promessa de criação de milhões de empregos obviamente não se concretizou”.

As reformas mais recentes permanecem então sob atenção do procurador. “Principalmente com essa chamada de Contrato Verde e Amarelo, existe a mesma promessa. Um economista vindo do próprio Ministério da Economia falou em 4 milhões. Não sei de onde tiram esse número. Não faz o menor sentido”.

Lançada como ‘Programa Verde e Amarelo’, a Medida Provisória 905 foi proposta pelo presidente Jair Bolsonaro instituindo uma carteira de trabalho alternativa com 86 itens modificados em relação à CLT. “O objetivo é facilitar a admissão de jovens que têm dificuldade em ingressar no mercado de trabalho por não ter experiência”, acrescenta “Acho que a iniciativa é meritosa, mas acho que não pode ser feita através de uma mini-reforma – porque trouxe muitas alterações – custando direitos que foram conquistados através de muitas lutas, já consagrados na Constituição. Embora a questão do desemprego seja muito séria, não há sentido que faça por Medida Provisória. Isso por si só já seria inconstitucional, uma vez que não há urgência que justifique todas essas alterações”.

Para Gazzaneo, algumas medidas até são benéficas. “Muitas são desburocratizantes e boa parte das alterações não tem grandes repercussões no mundo do trabalho”, pondera. Outras, entretanto, despertam preocupação. “Coloca limites de tempo no estabelecimento de multas previstas no termo de compromisso”, exemplifica. “Eles estabelecem por exemplo que um TC vigore apenas por dois anos e então não posso mais cobrar. Os limites de multa são relativamente pequenos e uma grande empresa não vai mais se sentir coagida a cumprir a regulamentação. Vão dizer que é preferível descumprir”.

“É uma filosofia que tem ódio de quem trabalha”

Embora registre que o problema seja mundial, acrescenta mais uma particularidade: “no Brasil foge um pouco do que considera razoável. É uma filosofia que tem ódio de quem trabalha, de quem labora de quem vende sua força de trabalho”, reforça. Gazzaneo também “A perspectiva única é de que o empresário precisa de proteção do Estado. Não duvido absolutamente que o empresário tenha uma carga tributária absurda, mas que culpa tem o trabalhador de existir essa carga brutal? Para facilitar a vida do empregador, você vai cortar direito trabalhista e precarizar? Encontre outras formas”, diz. “Mesmo porque você vai criar uma classe trabalhadora acuada, com remuneração reduzida. Isso vai ter implicação no consumo e vai prejudicar a vida do próprio empresario”.

Analisando uma série de artigos que compõem o conjunto de medidas da MP Verde e Amarela, Liberdade e Econômica, e a Reforma Trabalhista anterior, Gazzaneo não restringiu as críticas aos trabalhos aos domingos, aumento da jornada para bancários – diante dos lucros estratosféricos dos bancos, redução da contribuição das empresas em relação ao FGTS e a que denomina mais extravagante: a taxação sobre o seguro-desemprego. “Existem partes que trabalham para que as fortunas sejam tributadas. O atual governo teve o desplante de criar tributção que atinge a pobreza, quem está desempregado. Só essa alteração já diz muita coisa do conjunto dessa medida. Tenho sérias dúvidas se é constitucional e grandes esperanças de que não seja aprovada. É bizarrice que foge de qualquer razoabilidade”.

Mesmo a empregabilidade conceituada e disseminada em propagandas do governo também é sabotada. “Se a tônica da reforma da previdência que estabelece idade mínima é obviamente fazer as pessoas trabalharem mais, tinha que haver preocupação sobre a empregabilidade das pessoas mais velhas. E acabou que essa questão nem foi objeto de disciplinamento na chamada MP da carteira de trabalho verde e amarela”.

É por isso que, para o procurador, é preciso ter cuidado com a interpretação das estatísticas que apontam certo aumento de empregos. Nessa novela de que ‘na teoria a realidade é outra’, é necessário atentar que, segundo dados do CAGED, a prestação de serviços por meio de trabalho intermitente foi responsável por quase 15% das novas vagas propagandeadas. “A pessoa pode sair na estatística que está empregada mas, através do trabalho intermitente, passar um mês sem receber um tostão”, atenta.

Para o procurador, as medidas dialogam diretamente com as declarações de Bolsonaro. “Eleitores brasileiros não podem reclamar que não foram informados. O presidente sempre destacou que nós, brasileiros, deveríamos escolher entre os direitos e os postos de trabalho, mas postos de trabalho sem direitos no faz voltar para o século XVIII ou XIX, e nós estamos no século XXI”, relembra. “Aí você vê um presidente que propaga essa colocação sem rodeios e lamentações, que o trabalhador tem que escolher entre os ‘muitos’ direitos e seu emprego. Passa o recado, sua filosofia de trabalho, e os empregadores que ouvem essa declaração da autoridade máxima do país se sentem empoderados, imaginando que podem fazer tudo porque tem um governo ao lado deles”.

Força-tarefa e “lobby do bem”

A crença de que as instituições podem barrar as medidas ocorre em meio à compreensão da hipossuficiência dos trabalhadores em relação aos empregadores, entendimento básico no Direito do Trabalho que parece ter sido negligenciado nas atuais políticas.
“[No Brasil] há muitas implicações no mundo do trabalho, nos empregos e postos de trabalho, e também com quem lida no dia a dia, como a Justiça do Trabalho, o Ministério Público do Trabalho, que também é objeto dessas alterações profundas”

Mencionar as alterações estruturais nas instituições é importante, para Gazzaneo, uma vez que estas mudanças interferem diretamente nas relações de proteção dos direitos aos trabalhadores. Já na reforma administrativa de 2017, Bolsonaro extinguiu o Ministério do Trabalho, transformando em um Secretaria Especial integrada ao Ministério da Economia. Tal ‘rebaixamento’ trouxe impactos profundos no orçamento que possibilita a fiscalização do trabalho. As entidades sindicais também foram diretamente afetadas. “Você termina criando categorias que não têm a quem recorrer. Desprestigia as entidades sindicais, desprestigia a fiscalização do trabalho, o MPT, a Justiça do Trabalho. Os trabalhadores ficam a mercê de retaliações, perseguições, de sofrer todas as alterações sem poder se manifestar através das formas que a legislação estabelece como autodefesa”, comenta.

A princípio, Gazzaneo leva com descrédito a continuidade das decisões. Primeiramente por acreditar que as entidades sindicais, sobretudo as mais atuantes, irão sobreviver. No mais, acredita que o Congresso Nacional não vai avalizar essas alterações que nos atingem diretamente no Ministério Público. ” Acho que sequer será matéria a ser usada através de Medida Provisória, até porque está prevista em nossa Ação Civil Pública através de Lei Complementar. Então só através de processo legislativo é pertinente que essas matérias fossem objeto de alteração, e não uma Medida Provisória”.

Até o momento, a reforma trabalhista imbuiu também uma redução no número de ações judiciais, sobretudo em relação aos riscos dos trabalhadores precisarem desembolsar as despesas sucumbenciais. No entanto, Gazzaneo tem boas perspectivas em relação à questão. “Falou-se em 40% de reduções, mas é preciso lembrar que a Justiça do Trabalho tinha uma quantidade absurda de assuntos. Depois de um ano em que ela vigorou por completo, houve essa redução, depois estabilização e aposto que a tendência será voltar a crescer, porque empregados, entidades sindicais e advogados estão começando a raciocinar em função dessa nova sistemática”.

Pontuações da Liberdade Econômica preocupam mais o procurador, no entanto, como a despersonalização, em que bens pessoais dos sócio podem ser ‘livrados’ das cobranças de dívidas de empresas falidas – incluindo as dívidas trabalhistas. “Em muitas situações, se não conseguir se comprovar que o sócio teve interferência objetiva no gerenciamento da empresa, resultando no desdobramento da falta de pagamento, ele fica isento”, explica.

Em suma, o objetivo se torna criar ainda mais dificuldades para a parte mais frágil da relação de emprego. “E fortalecer quem continua sendo parte forte da situação. Não vejo como considerar o empregador, a não ser em raríssimas situações, a parte forte”.

Em resposta, o procurador informou que existe toda uma articulação para tentar reverter ou ao menos minimizar os danos causados pelas reformas. “Essa MP, a última [Verde e Amarela], pelos absurdos que contêm, tenho esperanças de que seja devolvida. Existe um trabalho contínuo inclusive entre parlamentares. Tem um grupo de procuradores que têm mais afinidade com esse tipo de trabalho e que estão realizando o que a gente chama de ‘lobby do bem’. São auditores fiscais do trabalho, membros do Ministério Público do Trabalho, juízes e desembargadores do trabalho, que têm batalhado dia a dia no Congresso Nacional”, afirma.

A motivação das instituições que têm integrado a força-tarefa, segundo Gazzaneo, é combater tópicos que são considerados extremos até para setores mais liberais. “Tem tópicos, como a cobrança de taxa para os desempregados, que ninguém nunca pensou em uma maldade dessas”, diz.

 

Sem direitos e sem empregos

Em perspectiva similar a respeito da contextualização das reformas em relação às dinâmicas sociais e econômicas mundiais, o sociólogo Lucas Menezes situa o problemas da informalidade como resultante destas medidas, acrescentando ainda os recortes raciais e de gênero na discussão. O pesquisador ainda questionou vocábulos como ‘modernização’ e sua aplicação na justificativa de decisões que intensificam a desigualdade, favorecendo o mercado a partir de uma maior precarização. Menezes também ressaltou a constante quebra das entidades de proteção do trabalho  e caracterizou o distanciamento entre o atual perfil fluido dos trabalhadores e a rigidez dos sindicatos como fatores a se atentar para a crise de representatividade em diversas categorias.

Confira a entrevista completa:

 

 

 

Mídia Caeté: A atual Lei da Liberdade Econômica e a MP da Carteira de Trabalho Verde e Amarela têm sido consideradas frequentemente por entidades de proteção ao trabalhador como uma continuidade da Reforma Trabalhista ao trazer medidas que afetam diretamente às categorias. Qual sua opinião a respeito?

Lucas Menezes: O recente desmonte dos direitos trabalhistas no Brasil não pode ser deslocado das mudanças ocorridas no capitalismo, entre elas a financeirização da economia, a crescente presença das tecnologias digitais de informação e toda a mudança gerencial que impactaram a classe trabalhadora em todo mundo. A ampliação das terceirizações, a “pejotização”, os trabalhadores de aplicativos, a disseminação de contratos de trabalho intermitentes e de curta duração entre outros são uma das principais estratégias de exploração do trabalho na atualidade e elas tem se espalhado em vários setores da economia brasileira, inclusive na esfera pública.

Nos últimos anos o Brasil tem sofrido uma violenta desregulamentação trabalhista que tem tido como resultado o aumento da informalidade e de modalidades precarizadas de trabalho. Não é exagero dizer que precariedade sempre foi a condição de trabalho em nosso país, especialmente quando fazemos os contrastes raciais, pois são trabalhadores e trabalhadoras negros e negras os mais atingidos por extenuantes jornadas de trabalho, pela rotatividade nos empregos e baixas remunerações. Todas essas medidas que temos presenciado nos últimos anos dialogam entre si e aprofundam uma condição de intensificação da exploração da força de trabalho no Brasil.

M.C: A justificativa utilizada para adoção dessas medidas vem, frequentemente, utilizando termos como ‘desburocratização’, ‘liberdade econômica’, simplificação, modernização, e vários outros carregados de aspecto ‘positivo’. Em sua opinião, esses discursos são coerentes com a finalidade dessas medidas? 

Esse é o vocabulário neoliberal. Sendo que quando os neoliberais estão a reclamar por “modernização”, “flexibilização” ou por “liberdade”, o fazem em um sentido muito estreito, que é o sentido determinado pelas imposições do mercado. E a liberdade do mercado tem significado a servidão do trabalhador. Diferente do Estado, a presença do mercado regulando nossas vidas é muitas vezes “invisível”, embora a todo instante sejamos bombardeados e passamos a avaliar governos, por exemplo, a partir dos “humores” do mercado. Não importa o custo para a vida das pessoas, importa saber se tal política, ou se tal medida tem ou não o agrado do mercado que por sua vez tem funcionado a base de uma dinâmica rentista e de lucros rápidos. Então, quando se fala de modernizar ou flexibilizar está basicamente falando de tornar a sociedade cada vez mais refém de imperativos de mercado, do frentismo e das grandes empresas, deixando também o trabalhador e a trabalhadora mais descartáveis, com redes de proteção social cada vez menores. Todo esse jargão de “eficiência” e “produtividade” passa também por, necessariamente, colocar o bem-estar social em segundo plano diante de supostas “necessidades econômicas”.

M.C: Para além dos aspectos que alteram textos de lei, há ainda outras medidas executivas como redução de NRs, a própria extinção do Ministério do Trabalho, enfraquecimento dos sindicatos, e a ventilação de um possível fim dos tribunais do trabalho. O fim dessas instituições modificam a correlação de forças na relação de empresários x trabalhadores?

L.M: Nossa formação social, de base colonial e escravista, nos deixou um legado jamais rompido e que, ao contrário do que propaga o empresariado, fez a força de trabalho brasileira ser historicamente barata. Para citar um exemplo que considero sintomático: nosso país é aquele em que a regulamentação do trabalho doméstico – que marcou com violência, sobretudo, os corpos negros femininos desde a colônia – foi estabelecido, sob insatisfação dos setores médios e ricos, somente a partir de 2013. As classes dominantes brasileiras sempre mantiveram seus domínios de forma bastante tacanha, mesquinha, e isso reverbera também quando falamos de direitos do trabalho. As instituições públicas e o direito sempre também funcionaram, grosso modo, com latentes limitações diante do poder das oligarquias e seus associados, quando não como extensão dos seus próprios interesses. Esses ataques as já frágeis redes de proteção do trabalho deixam os trabalhadores ainda mais vulneráveis, em especial negros/as e mulheres, ao despotismo patronal.

M.C: Quais categorias ou grupos de trabalhadores que têm sido mais afetados por essas medidas? 

L.M: Um dos pontos marcantes, desde a reforma do Temer, é a ênfase aos acordos individuais em detrimento dos coletivos. A carteira “verde e amarelo” reforça esse ponto. Isso é também um projeto de enfrentamento ao poder sindical e das formas associativas de luta e de acúmulo de forças. A negociação individual e as flexibilizações nesse sentido, que para alguns contextos e situações pode parecer sedutor para o trabalhador individual, abre fortes possibilidades de redução salarial, extensão da jornada de trabalho, o desrespeito as férias etc. Ao fim, o conjunto da classe fica mais refém do despotismo empresarial que impera em um país em que a precariedade é, historicamente, a forma padrão de experienciar o trabalho. Sobre as categorias a serem afetadas, no caso da carteira “verde e amarela”, é um programa que se dirige aos jovens entre 18 e 29 anos. Essa faixa etária tem ingressado no mercado de trabalho na informalidade, fazendo bico ou em setores formalizados com alta taxa de rotatividade como comércio e serviços. O programa quer aumentar a formalização desses jovens, porém o farão sob condições que mantém a lógica da rotatividade e rebaixa direitos, quase que equivalendo as condições de informalidade. O que pode acontecer também é substituição de trabalhadores antigos pelos de carteira “verde e amarela”, ainda que o programa estabeleça percentuais. Portanto, é difícil imaginar que esse programa irá criar “mais e melhores” empregos como anunciado.

M.C: E os sindicatos e centrais sindicais como têm se comportado diante dessas medidas?

L.M: Uma nova configuração das relações de trabalho exige novas formas de organização e ação da classe trabalhadora. E o sindicalismo brasileiro, ainda que possa existir iniciativas de aproximação e articulação com os trabalhadores de contrato e relações mais precarizadas de trabalho, não tem agido a altura dos desafios. A lógica de mobilização e articulação, para além mesmo dos problemas de burocratização e dirigismo que afastam base e direção, são ainda no sentido de um sindicalismo do capitalismo fordista. A fragmentação da classe trabalhadora exacerbou o individualismo pelas próprias formas de inserção e relações de trabalho criadas no capitalismo da empresa flexível e digital. Os movimentos sindicais ainda não conseguiram superar estruturas e formas de se fazer política que sejam adequadas as presentes condições do trabalho contemporâneo. A alta rotatividade é uma característica marcante dos empregos criados no Brasil, uma tendência que não é de agora, e que só se amplia diante das novas modalidades de contrato de trabalho. Temos uma classe trabalhadora fluída e estrutura sindicais rígidas, além de viciada em procedimentos burocratizados que afastam outras possibilidades de diálogo e aproximação para luta sindical.

M.C: Em sua opinião, redução de direitos trabalhistas é uma alternativa que de fato pode trazer recuperação da crise econômica que afeta o país? O que você acha dessa relação de causalidade reforçada nas políticas de Guedes?

L.M: A reforma trabalhista de Temer foi vendida como condição para geração de emprego. A terceirização das atividades-fim também havia sido posta como solução para a melhorias de serviços, assim como o debate da previdência ficou totalmente contaminado pelo discurso do inevitável. Essa lógica econômica talvez tenha mais a ver com astrologia do que ciência. O neoliberalismo é também uma construção ideológica que atribui ao mercado soluções mágicas e que há muito produz o clima de que “não há alternativa”. Esse discurso falso tem sido mobilizado para o assalto neoliberal ao fundo público, que é o que está em disputa no fim das contas. O programa da carteira “verde e amarela”, que além de mobilizar todo o simbolismo de um patriotismo rasteiro e protofascista que é a marca do governo Bolsonaro, mantém essa lógica de assalto ao fundo público para o ganho rápido e maior dos grupos econômicos dominantes. A proposta ganhou o apelido de “bolsa-empresário” por ter uma lógica que não só visa baratear as contratações, mas também concede benefícios e isenções para as empresas que aderirem. Assim, cortes orçamentários nas áreas sociais, retirada de direitos trabalhistas entre outras medidas que atinge diretamente o custo de vida do povo são apresentadas como inevitáveis. E o que temos presenciado, dada a velocidade e intensidade que o desmonte de direitos tem sido feito, é que estamos em uma radicalização neoliberal sem precedentes em nossa história sob a direção de Paulo Guedes e seu “superministério”. A fórmula que o Bolsonaro lançou, ainda antes da eleição, de que teríamos que decidir entre direitos e emprego é a síntese desse discurso falso e dessa radicalização neoliberal. No fim, estamos ficando sem direitos e sem empregos, com a pobreza e a desigualdade aumentando.

 

 

As narrativas da ‘economia’

“Melhorias na economia”, “Crescimento econômico”. Quantas decisões são difundidas utilizando estes termos quase como uma carta coringa? Se ‘economia’, assim como a liberdade (econômica) são palavras que precisam ser entendidas em decorrência de seu caráter mobilizador, o economista e mestre em sociologia Humberto Filho atenta para a importância de confrontar as narrativas que não levam em conta ora os fatores externos, ora o papel das decisões dos operadores.

 

Cortesia

E começa pela economia brasileira. “Ela é extremamente complexa e seus problemas de pesquisa e de operacionalização já são gigantes por si. Então dá aparência de vida própria”, define. “E tem outra questão que é a formação ideológica. Há uma ideia de que os países são soberanos dada sua formalidade jurídica e que se relacionam em igualdade no comércio internacional. Então são diferenças que se dão pela qualidade e capacidade que cada país tem de se fazer presente no mercado internacional de maneira mais ativa. É como se não existisse política. Fosse uma relação extremamente técnica e mercantil e parasse ali”, comenta.

Segundo Humberto Filho, as atuais medidas de desregulamentação precisam ser compreendidas, entretanto, também pelas escolhas políticas determinadas no âmbito interno. “O que está acontecendo no curto prazo é influenciado por esses elementos estruturais, mas não dá para entender esses fenômenos só nesta perspectiva. É preciso entender que existem esses elementos que definem, mas também há o sujeito que está operando o conjunto das decisões”, relata. “Se não a gente cai na ideia de achar que a economia funciona como a gravidade, que é uma coisa independente, inevitável e tem um rumo. A economia é uma construção humana e, por ser humana, construída no conflito. Em regra, essa história de dizer que é ‘inevitável e tem que fazer de todo jeito’ serve para justificar a posição de beneficiar uma minoria sobre uma maioria”, rebate.

De forma mais concreta, o pesquisador relata que as políticas implementadas atualmente no Brasil tratam-se de respostas escolhidas para situações desdobradas por crise econômica de 2008, cujo epicentro foi nos Estados Unidos, e criou uma necessidade de reordenamento da economia internacional. “ Do ponto de vista dos estados, principalmente de países centrais, era preciso passar a mudar estratégias comerciais e geopolíticas para garantir espaço de acumulação para seus capitais”, comenta. As relações de trabalho passam a ser permeadas por uma ofensiva, a partir de então, no intuito de reduzir o impacto da queda das taxas de lucro constatadas durante a crise.

“Em 2008 para cá, há um processo de endividamento público em boa parte dos estados nacionais. Acontece para que as grandes empresas não quebrem, e haja um salvamento de bancos nos Estados Unidos”. O Brasil e a América Latina, de forma geral, perpassam por esse reordenamento. “Aqui acontece com o aumento de subsídios, e quem emprestou dinheiro ao Estado quer receber de alguma maneira. E eles estão reformando o Estado de várias maneiras para que tenham certeza de que a receita que o Estado arrecada vai ser usada para pagamento dessa dívida e não usada em outras coisas, como saúde, educação, previdência. Então estão reordenando também o Estado, reformulando para garantir exclusividade no uso dessas receitas”.

E é nestas reformas na estrutura do Estado em que os conflitos se mostram mais evidentes nas relações de trabalho, evidenciando que ‘crescimento econômico’ não se trata exatamente de uma redução da desigualdade, por exemplo, aumento de empregos, ou combate à pobreza. “Em 1960, se começou a medir a participação das rendas de trabalho nas rendas nacionais. Se observou que em vários períodos houve crescimento econômico, aumento da renda per capita – que é um cálculo baseado na soma da renda nacional dividida de forma igual para todas as pessoas – mas quando observava a participação da renda advinda do trabalho, não existiu esse aumento. “Os que vivem do trabalho cresciam muito menos do que os que vivem de outra renda que não aquela proveniente do trabalho”, explica.

Resultado: “não dá pra dizer que crescimento econômico significa crescimento para todo mundo. Basta ver o período do ‘milagre econômico’ do Brasil durante a ditadura. O Brasil crescia a 8% ao ano, mas houve aumento da miséria, da desigualdade, e de todos os problemas que temos hoje, como formação desordenada das grandes metrópoles, o começo do problema da violência urbana, saúde, problemas de fome, desnutrição e epidemias de cólera”, exemplifica.

A história do trabalhador que atrapalha a economia

O economista também problematiza a leitura de que o alto custo do trabalho – composto por salário e encargos para manter o trabalhador empregado – é o que atrapalha o processo de investimento, a ação do empresário que cria riqueza e mais empregos, e a dinamização maior da economia. “Não dá para dizer que é uma mentira total. Os grandes empregadores no Brasil são as micro e pequenas empresas. Para um sujeito que tem dois empregados na padaria de serviço, quando vai fazer a planilha no fim do mês, o custo de fato é alto”, pondera. Mas por que é impactante assim?

“Tem que pensar qual o lugar que esse sujeito ocupa dentro da cadeia produtiva que ele está inserido e dentro da economia total. Será que a grande captura da renda dele se dá pelo pagamento do trabalhador dele, ou pela taxa de juro cobrada pelos bancos? Ou pela carga tributária? Ou pelas dificuldades que ele encontra para manter a empresa dele legal?”, provoca.

Nesse sentido, Humberto Filho concorda com a análise do procurador-geral Rafael Gazzaneo a respeito da estrutura burocrática do Estado. “É pesada e difícil de ser acessada por pequenos e médios empresários. Mas quem determina essa dinâmica é o grande empresário. Apesar dos pequenos e médios empregarem mais, quem fatura mais são as grandes empresas”, acrescenta. “Vai se criando barreiras para manter posições de privilégio e não dá para entender a classe como homogênea. O que existe entre esses empresários [desde os pequenos aos grandes] é uma coesão ideológica maior. O pequeno e o médio não veem como antagonista dele o grande, mas sim o trabalhador ou o Estado. Mas é o grande que determina as políticas do Estado que prejudicam o pequeno. Um grande exemplo foi a dificuldade imposta que foi responsável por fechar uma série de pequenos frigoríficos, logo depois absorvidos pela JBS”, exemplifica.

Ainda assim, os antagonistas são os que trabalham. “Vai das escolas à mídia. Toda forma de comunicação e linguagem é dominada por essa narrativa. E por isso até trabalhadores são absorvidos por esta ideia e muitos nem se percebem nesta classe”, diz.

E é nesta perspectiva que diversos artigos da Lei da Liberdade Econômica, a Carteira Verde e Amarela e a Reforma Trabalhista apontam na mesma direção. “Apesar de serem formalmente distintas, apontam no sentido de redução do salário. Algumas de forma mais direta, outras de forma mais indireta.

“A Lei da Liberdade Econômica passa a ideia de que existem muitos entraves para empreender e a relação entre patrão e trabalhador precisa ficar mais livre do que permeada por elementos exógenos. O contrato, assim, não pode ser atravessado por um terceiro, e sim pelos sujeitos diretamente envolvidos. Eles partem de uma relação de suposta igualdade que não existe. Você tem um  que está lutando pela sobrevivência imediata. E um outro sujeito que, mesmo tendo seus problemas, naquele momento da relação o problema não é sobrevivência. O trabalhador vai extremamente fragilizado, principalmente na situação de desemprego alto, o subemprego altíssimo, e praticamente 50% na informalidade. E aí que vem outra questão. Se 50% estão sem esse peso da institucionalidade, por que dizer que o grande impedimento para o desenvolvimento são as leis trabalhistas, se metade da força de trabalho não está empregada sob essa regência?”

Resistência e sobrevida

Uma série de mobilizações e greves gerais têm irrompido no mundo, desde os países da América Latina aos países centrais como a França. No Brasil, entretanto, a despeito de algumas mobilizações pontuais de centrais sindicais, há uma baixa na expectativa de resistência. Para Humberto Filho, há uma razão. “O povo está muito ocupado em sobreviver. Apesar do Brasil viver em uma crise econômica mais intensa de dois ou três anos de recessão e lentidão, se você olhar para o outro lado, tem mais de 87% da população com alguma ocupação. As pessoas estão correndo atrás da sobrevivência diária imediata e acaba não tendo a percepção de observar esses fatos políticos que implicam diretamente na vida delas. Então apesar de algumas manifestações de greve, não há nada que faça contraponto ao quadro político que tem dado sentido a essas medidas”, remonta.

Desindustrialização e  baixa qualidade dos empregos

Um outro fator que o economista trouxe à tona é o longo e intenso processo de privatização e de transferência de propriedades nacionais para o mercado internacional. “As grandes empresas que lideram o ranking de lucratividade e espaço de mercado no Brasil são internacionais ou tem grande parte de seu mercado acionário estrangeiro. São raras as exceções como a Ambev, que é majoritariamente nacional, e a Petrobras, que lidera, e alguns no ramo da construção civil e no mercado de proteína animal”.

No mais, segundo Filho, a economia brasileira vem perdendo qualidade pelo processo de desindustrialização. “A participação vem diminuindo desde os anos de 1980 nas indústrias. O tipo de emprego que se forma é no setor de serviços. E não são trabalhos complexos, mas dos mais simples, de baixa remuneração e baixa complexidade e isso é muito complicado. A rotatividade é grande nos postos porque não necessita qualificação”.

E é nesse sentido que o ciclo rebate. “Com o trabalho frágil, o mercado consumidor também perde o vigor. Não há renda suficiente para que o sujeito adquira bens além daqueles que ele precisa para sobreviver, e por isso a economia também demora tanto para reagir. Estamos há quase cinco anos, dois com recessão, dois com crescimento abaixo de 2%, e isso vai minando a renda do trabalhador. Está se montando uma bomba relógio que fragmenta o tecido social do Brasil”.

 

Alagoas

Extensamente dependente de recursos federais, Alagoas será uma das grandes regiões que sofrerão impactos com a Reforma Trabalhista, segundo o economista. “Boa parte das famílias vive da renda de aposentados. Alagoas tem uma das maiores taxas de desemprego e não há ações concretas de redução, porque encarar esse problema no âmbito estadual é romper com privilégios da elite, e aprofundar o processo de reforma agrária. Apesar de alguns avanços, há ainda carência de assistência técnica e melhorias nas cadeias produtivas”, diz.

O problema é que, segundo Humberto Filho, o foco tem sido outro. “Os governos fazem grandes apostas, em grandes empreendimentos e no setor político. Além dos parlamentares terem se tornado verdadeiros gestores de recursos, que através de emendas ficam responsáveis por essa distribuição de recursos para formar bases eleitorais”, problematiza.

Erros de cálculo e as perspectivas de lucro

O alto do cume na história é, no entanto, se as reformas finalmente podem ou não atingir o chamado desenvolvimento econômico. Para Humberto Filho, é pouco provável que aconteça.

“Dizer que se o Estado interfere menos vai ser liberada a riqueza para a sociedade como um todo é uma falácia. Vai liberar para os que já são ricos e os processos de mobilidade social devem travar ainda mais. Do ponto de vista do Governo, a estratégia deles é que haja reversão na economia internacional e as exportações aumentem, o que iria compensar as perdas do mercado interno, uma vez que as demandas estão muito achatadas tanto pela via de consumo das famílias – que estão endividadas e com renda menor – como pelo investimento público, uma vez que não há quem compre”.

Em suma, com renda baixa, falta de compradores, investidores ausentes, a indústria termina por não funcionar em total capacidade. “Com a economia internacional patinando, não vai ser cumprida a expectativa, então do ponto de vista do Estado essa estratégia não vai dar em nada. Até na questão do crescimento. É importante que haja crescimento porque eles aumentam a capacidade de lucro, mas com o processo de insatisfação fazendo irromper revoltas populares, aí é que o comércio fica ainda mais parado. Enfim, sabemos que eles não querem um crescimento virtuoso que gere desenvolvimento, mas um crescimento que gere lucro. E o que estou dizendo é que mesmo esse crescimento possivelmente não vai acontecer, porque eles partem de premissas objetivamente erradas. O manejo da política macroeconômica deles é errado – até para o que eles querem”.

O quadro das elites e a e reação popular

A insegurança em relação à materialidade rebate na própria insegurança nas relações sociais. “Não tem segurança de emprego, não tem segurança na vida. Os laços de solidariedade são fragmentados pela lógica liberal de vida, onde o indivíduo tem que correr para satisfazer suas necessidades. As ideias de coletivismo são suprimidas. E está montando a selva do ‘salve-se quem puder’”, problematiza.

Segundo Humberto Filho, tem sido comum também a utilização da discussão da desigualdade por esses grupos – enquanto a reforçam. “Hoje uma certa direita se apropria sobre esse discurso de forma mais cínica, com discurso meio alucinado. Eles falam que é preciso ter medidas, no máximo taxar um pouco o lucro, mas o motor da desigualdade, que é a precarização do trabalho, eles são a favor. São a favor da Reforma Trabalhista, da Liberdade Econômica, da Reforma da Previdência”.

Por outro lado, algumas iniciativas coletivas remontam a uma perspectiva de reação.“Há algumas situações em que pessoas estão se organizando e vendo que sozinhas não vão para canto nenhum. Vai se percebendo que a política do Estado e das elites é dividir para dominar e desenhar um quadro no Brasil de aprofundamento da desigualdade, fundamentalmente através da precarização das relações de trabalho. E a elite brasileira nunca deu nada para o povo. O povo sempre conquistou. E por outro lado essa mesma elite sempre necessitou do uso do Estado para compensar as perdas que têm. Sempre pensam no Estado brasileiro e o organismo social como um instrumento para garantir seus negócios. Não são nacionalistas”, comenta. “É necessário que as pessoas se organizem para tudo, desde organização de pais e alunos a sindicatos, para se contrapor a isso. É preciso se organizar porque o que está vindo não é brincadeira, principalmente para o povo pobre”.

 

 

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