“Acredito que o alagoano não quer saber qual a bandeira que coleta o esgoto da rua dele. Ele não quer saber se é a bandeira do Estado de Alagoas, ou se é uma bandeira pública federal, ou se for uma empresa privada. Obviamente o que ele quer é um esgoto coletado”.
O discurso do governador Renan Filho (MDB) durante a abertura do Fórum de Parcerias Público-Privadas, organizado pela revista Exame em Alagoas, em 2019, é comum a diversas figuras públicas e entidades que seguem focadas na privatização da Companhia de Abastecimento e Saneamento de Alagoas (CASAL). Nesta etapa, o projeto imediato trata-se da concessão da parte comercial de área específica da Região Metropolitana e dos SAAEs – os Serviços Autônomos de Abastecimento e Esgoto, que geralmente operam nos municípios administrados por prefeituras.
Recorrente, o tom do “tanto faz ser público ou privado, desde que funcione” recebe logo menos, no discurso do governador, o enaltecimento ao capital privado: seu vigor e sua impetuosidade mostram que, este sim, é o melhor caminho, e que vai funcionar.
O que vem sendo comum também ao grupo que hoje articula a venda da Casal é o argumento de que a gravidade na situação do saneamento em Alagoas é a maior prova da insustentabilidade do setor público em gerir o Saneamento. Quem caminha declaramente nesta linha é o deputado Davi Maia (DEM). Um dos baluartes do liberalismo em Alagoas, suas bandeiras são explícitas também quando reafirma o compromisso efetuado ainda em sua candidatura: dar um fim à CASAL, ou, como diz polemicamente, “vender a CASAL para a OLX”. A justificativa é de que maior parte da responsabilidade pela situação atual está na gestão da Companhia. “O problema não é o público ou privado”, diz também. “O problema é a Casal. Se você comparar com a SANEPAR, a SABESP, estão a mundos luz de distância. É empresa deficitária, que não gera lucros. Tem problema de cunho político. Tem problema técnico, e de gestão”, diz. A desfavor da Casal, Davi Maia questiona os dados apresentados pela Companhia sobre as melhoras nos últimos anos.
Já a Secretaria Estadual de Infraestrutura pondera que – a despeito de uma melhora na gestão da Casal – a Companhia de Saneamento não dispõe de investimento suficiente. “Não se trata simplesmente de uma questão de gestão, mas de capacidade de investimentos e direito de todos os cidadãos ao acesso a água e esgoto”, respondeu a Secretaria, via assessoria. “A CASAL e os Municípios não têm capacidade de investimento para atender a essa crescente demanda. O setor está mudando, e temos diversas contratações em andamento no momento, tais como: Rio de Janeiro, Manaus, Acre, Porto Alegre, dentre outros que estão estruturando projetos com vistas a mudar a forma de gestão do saneamento. A CASAL continuará sendo protagonista nesse processo, pois a ela caberá a parte de captação e tratamento de água, além do atendimento a diversas outras regiões do estado de Alagoas. Existem diversos projetos financiados pelo Governo do Estado de Alagoas com vistas a implantação de sistema de esgotamento no interior do estado de Alagoas”, afirmou.
A situação atual do saneamento entra como fundamento da disputa, embora o diagnóstico mais evidente não apresente vozes tão dissonantes. O estado da água em Alagoas é complexo, como em tantos lugares onde a riqueza de recursos naturais e públicos se contrapõe à concentração de seu acesso, e onde as responsabilidades pela gestão se resumem a reforçar os clichês do público e privado, suprimindo da vista outras forças que puxam essas cordas.
O diagnóstico aqui se apresenta logo na superfície: as calamidades são bastante conhecidas por quem sofre na pele e na saúde, seja a ausência de água, seja a falta de tratamento de esgoto. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico (PNSB), dos 102 municípios alagoanos, apenas 33 possuem rede de esgotamento. Das 77 áreas cobertas pela Casal, só 12 possuem Rede de Tratamento. Outros 25 municípios são cobertos pelos SAAES. Além do mais, mesmo neste contingente, não há qualquer garantia de universalidade nos municípios cobertos.
Em 2017, a Região Metropolitana cobria 88% do abastecimento de água, segundo diagnóstico levantado pelo Plano Regional, em diversas áreas há situações de intermitência. O problema maior diz respeito ao esgotamento sanitário, onde o número cai para 27,43%. Ainda segundo os dados levantados pelo relatório que consta no Plano Metropolitano de Abastecimento de Água e Esgotamento Sanitário, oito dos 13 municípios possuem Sistema de Esgotamento Sanitário (SES). Dessa forma, segundo o diagnóstico, a maioria das habitações utilizam sistemas individuais compostos por fossas negras, valas a céu aberto e ou interligação direta na rede de águas pluviais. Em Maceió, por exemplo, só 31,45% da população é atendida por SES, segundo os dados divulgados no relatório:
A presidente do Sindicato dos Urbanitários em Alagoas e integrante do Fórum Sanear, Dafne Orion, também aponta as deficiências no saneamento. Porém, apresenta outros elementos. “A CASAL e os SAAES conseguem hoje ultrapassar 90% dos serviços de distribuição de água. O grande problema é o esgotamento sanitário. Em Maceió, você não tem mais de 30% da área, que é capital, saneada. Então realmente é um problema. É preciso recurso e investimento. Só que, para o setor público, essas portas de investimento são mais complexas, porque você fica na mão de representantes do Executivo e do Legislativo. Já quando é passado para o privado, você tem o banco público, que é o BNDES, por exemplo, financiando empresas privadas a comprarem o serviço”, relata. “E aí vem mais uma questão. A empresa privada não está indo com o dinheiro dela comprar. Ela busca financiamento em banco público. Nossa sugestão foi elaboração de uma Parceria Público-Privada para esgotamento sanitário, a exemplo de Recife, mas não fomos ouvidos”.
A despeito destas difíceis condições de saneamento no Estado serem utilizadas como principal argumento para que o plano prossiga, praticamente, sem obstáculos, alguns sinais apontam que o looping que leva ao atual pregão eletrônico pode ser tão complexo que a grande promessa da universalização pode recair justamente em seu caminho contrário – em uma exclusão de acesso ainda maior.
A situação ocorre, de forma mais imediata, pelo modo como o processo de concessão tem sido efetuado a partir do pregão eletrônico 14/2017, articulado junto ao Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), empresa pública que tem sido uma das maiores articuladoras nos processos de desestatização do país, incluindo áreas de infraestrutura e a nova queridinha – o saneamento.
Então, como afirma Renan Calheiros Filho, é óbvio que a população quer esgoto tratado e a água na torneira. De resto, entretanto, nada é tão óbvio quanto aparenta.
Processo de concessão restrito à região metropolitana
Começa com o Edital do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social. No documento, que você pode ter acesso clicando aqui, o pregão eletrônico busca a contratação de serviços técnicos privados “visando a universalização dos serviços de fornecimento de água e esgotamento sanitário, relativamente ao Estado de Alagoas e à Companhia de Abastecimento de Águas e Saneamento do Estado de Alagoas – CASAL”.
O documento requisita estudo e demandas, incluindo projeções anuais de demanda para água e esgoto por um período de 35 (trinta e cinco) anos, relatório de engenharia, estudos ambientais, avaliação econômica e modelo de negócios. Há ainda a requisição de indicadores de desempenho. Por outro lado, caberá à contratada também mapear potenciais licitantes, incluindo investidores nacionais e estrangeiros. O preço máximo da contratação está cotado em torno de R$ 19 milhões. Embora este objetivo seja preconizado nas primeiras páginas do projeto, por si só o pregão não possui qualquer condição de garantir a universalização ou de vinculá-la nos demais documentos que hoje impulsionam a venda da Casal.
Acontece justamente o contrário. Hoje é a região metropolitana, a mais rentável, que está completamente disponível ao capital privado. As bases que facilitaram que esta restrição pudesse ser operada começaram ainda em 2019, após aprovação do projeto de Lei Complementar que atualizou a Região Metropolitana de Maceió (clique aqui para ter acesso ao PL na íntegra), instituindo um Sistema Gestor que passa a ser responsável por atuar, entre uma série de outras questões, com transportes intermunicipais, ordenamento de território, aproveitamento de recursos hídricos, gás canalizado, sistema viário no âmbito metropolitano, e,claro, o saneamento básico – compreendendo abastecimento e esgotamento sanitário.
Integram a Região Metropolitana os municípios de: Atalaia, Barra de Santo Antônio, Barra de São Miguel, Coqueiro Seco, Maceió, Marechal Deodoro, Messias, Murici, Paripueira, Pilar, Rio Largo, Santa Luzia do Norte, Satuba e São Miguel dos Campos.
Davi Maia argumenta que, ao construir o Projeto da Região Metropolitana, não imaginaria que a legislação seria utilizada, posteriormente, para restringir o consórcio da CASAL apenas a este território. “Não concordo com isso, mas existe decisão do STF dizendo que as regiões metropolitanas podem fazer um processo único. Se aproveitaram de uma lei minha, que visava muitas outras coisas também, como transporte público, tratamento de resíduos sólidos, internet, gás. Se utilizaram dessa lei e absorveram para a parte do saneamento”, disse.
Com ou sem intenção, o fato é que sua Lei foi certeira em permitir a exclusão das áreas mais deficitárias, restrição consolidada no Diário Oficial do Estado em 29 de maio deste ano, (que você pode ter acesso clicando aqui) com a abertura da Concorrência Pública 09/2020. O leilão foca na oferta de concessão de serviços públicos de abastecimento de água e esgotamento sanitário na Região Metropolitana de Maceió, deixando de lado todas as outras regiões. Em suma, a CASAL não foi para a OLX, mas a área mais rentável de fato teve sua concessão encaminhada para leilão, que acontece no dia 30 de setembro deste ano.
A SEINFRA respondeu, por meio da assessoria, que “a região metropolitana de Maceió, compreendida pelos Municípios objeto da concessão, contempla cerca de 50% da população do estado de Alagoas. O Governo do Estado de Alagoas elaborou estudos que levaram em conta vários cenários, sendo que em todos os casos há a necessidade de massivos investimentos com vistas a universalização dos serviços de saneamento e melhoria da qualidade dos serviços, recursos esses que o estado não dispõe. Em que pese apresentar a maior cobertura no estado, ainda assim, a cobertura de esgoto é pouco maior que 30%, e a de água requer muitos investimentos. Apenas para universalização na região metropolitana são previstos investimentos superiores a R$ 2 bi, por parte da empresa vencedora”.
Ainda que haja necessidade de grandes investimentos para a garantir o suprimento dos gargalos de saneamento na Região Metropolitana, o fato é que não há dúvidas sobre seu potencial de lucratividade para as instituições financeiras. O mesmo não se pode dizer das outras áreas. Para Dafne Orion, a contradição em si já demonstra que o caminho é mais complexo do que parece. “Se a tese do governador é de que é preciso universalizar, então deveria colocar nas mãos do setor privado onde já existe carência. Mas não, está sendo entregue justamente na região metropolitana, onde tem serviço mais avançado, onde já tem cobertura de distribuição de água e, lógico, que precisa avançar em esgotamento sanitário”, questiona.
Ademais, a sindicalista também aponta como as comunidades rurais, de baixa renda, e de difícil acesso à água serão as mais afetadas. “Foi por isso que o setor privado deixou bem claro, desde o primeiro projeto, que não assumiria riscos de crise hídrica, por exemplo. Um exemplo: o Sertão, onde há tempo de seca e fica difícil fazer chegar água para todo mundo. O privado não quer assumir risco. Essas comunidades vão ficar mais vulneráveis porque o privado não quer, e não tem ninguém com comprometimento. Quem vai assumir? Estado? Prefeituras? De que forma? Isto não está claro”, questiona.
Não está evidente também para os Municípios. A diretoria da Associação dos Municípios de Alagoas (AMA) chegou a pedir explicações à SEINFRA sobre o processo de privatização do saneamento no Estado. A nota prossegue, ainda, da seguinte forma: a “preocupação da Entidade é dupla. Por um lado, com os municípios que compõe a chamada região metropolitana, tendo em vista que essa decisão sem autorização legislativa municipal pode estar afrontando a previsão constitucional da autonomia municipal, e, por outro, com os municípios que ficarão fora dessa licitação. A maioria deles tem um sistema financeiro deficitário no abastecimento de água e a Casal só consegue prestar o serviço em razão do chamado subsídio cruzado”.
Dafne Orion explica que, atualmente, a CASAL e os Serviços Autônomos de Abastecimento e Saneamento (SAAEs) operam em todo o Estado através do subsídio cruzado, que garante uma tarifa reduzida para a população de baixa renda em lugares mais longínquos e com menor acesso. “Agora a CASAL vai entregar a parte mais rentável dela, então como vai continuar operando no Sertão, na Bacia Leiteira, na Região Agreste? Qual segurança vai ter? Existe algum documento do governo em que ele se responsabiliza por investir na Casal caso ela precise pra continuar operando sistema? Mesmo que se comprometesse, o contrato é por 35 anos. E esse governo não vai passar 35 anos no poder. Então que garantia a população tem de que o serviço será prestado?”
É o Plano Metropolitano de Abastecimento de Água de Esgoto que, além de traçar um diagnóstico da atual infraestrutura e algumas projeções para os anos seguintes, estabelece algumas metas e objetivos que as empresas concessionárias precisarão cumprir de acordo com os indicadores.
Entre diversos pontos, como melhoria na qualidade da água potável e redução de desperdício – que é outro grande problema enfrentado hoje – está ainda a esperada ampliação do atendimento, universalizando o Sistema de Abastecimento de Água com disponibilidade da água em período integral até o ano de 2025, mantendo o atendimento até 2054. O problema é que a “universalização”, neste caso, só pode vincular a região metropolitana, que já está em 88%.
Já o esgotamento sanitário não estabelece o ano de 2025 como parâmetro, interpondo a “implantar e/ou ampliar a cobertura com os serviços de esgotamento sanitário (coleta, afastamento e tratamento) até atingir 90,00% da população total do município, mantendo este índice (no mínimo) até o fim do período de planejamento (2054)”.
É o Marco do Saneamento, aprovado no Senado este ano como um dos pilares da privatização do setor no país, o documento que se aproxima de estabelecer metas de universalização, como 90% de coleta e tratamento de esgoto, ou 99% de água potável nas casas até 2033, apontando a sanção de que as empresas que não cumprirem com as metas incorrem ao risco de perderem as concessões. A Lei 14.026/2020 também atribui à Agência Nacional das Águas a regulação dos serviços de saneamento que agora passam a ficar a cargo das empresas privadas.
“Na essência, o que se propõem é a privatização, nas várias modalidades”, ressaltou o coordenador do Núcleo Alagoano da Auditoria Cidadã da Dívida, e professor de Economia da Universidade Federal de Alagoas, José Menezes, em seu artigo Privatização da Água, Dívida Pública e Pandemia. Na pesquisa, rememora que o problema do saneamento não só é alagoano, mas bem brasileiro, uma vez que, “segundo o Sistema Nacional de Informações de Saneamento (SNIS), do Ministério das Cidades, mais de 35 milhões de brasileiros ainda não têm acesso aos serviços de água e mais de 100 milhões não têm acesso aos serviços de esgoto”.
“A gente está falando muito sobre mercantilização e financeirização do sistema de abastecimento porque esses segmentos dizem que pretendem investir, mas a realidade mostra que quase não investem de fato. Eles passam 35 anos com contrato, contraem empréstimo de banco público, e não fazem investimento necessário. Na maioria dos casos, nem completam os 35 anos, acabam logo abandonando o serviço, que fica totalmente sucateado”, avalia Dafne.
Já há estudos que compilam esses dados. Em um trecho do seu artigo, José Menezes menciona que “a maioria dos casos de reestatização ocorreu por meio da rescisão de contratos, em função de serem tão lesivos que os municípios resolveram reestatizar os serviços, apesar da possibilidade de ter que indenizar as empresas. Segundo o estudo, o país com maior número de reestatizações dos serviços é a França (94 casos), seguida pelos Estados Unidos (58), Espanha (14) e Alemanha (9). Na América Latina foram registrados casos na Argentina (8), Uruguai (1), Bolívia (2), Equador (1), Colômbia (2), Venezuela (2) e Guyana (1). No Brasil também já ocorreram casos.
Leia também a parte 2 desta série de reportagens: Do “Privatiza que Melhora” à financeirização