Do “Privatiza que melhora” à financeirização

Dívida pública e presença discreta e voraz dos bancos são colocados na berlinda da discussão
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“Precisamos desmascarar o que separa a realidade de abundância do cenário de escassez”. Quem diz esta frase é a coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida Brasileira, Maria Lucia Fatorelli, em artigo publicado em 2017, no portal da Auditoria Cidadã, no qual conclui o quanto somos o país mais injusto do mundo. Faltam recursos para investimento em direitos básicos, enfrentamos crises econômicas, mas, por outro lado, temos as maiores reservas de recursos naturais no petróleo, na água, nas áreas agricultáveis. O Brasil é rico financeiramente também, mas vivencia a pobreza da forma mais cruel, a depender do território que se esteja localizado.

Somos o país com maior concentração de riqueza, e um dos piores em saneamento. Então não é de surpreender quando destas linhas escorrem mais perguntas do que respostas, quando se trata do processo de venda de parte da Casal e dos SAAES. Afinal, se a falta de investimentos na CASAL é o principal problema, por que a empresa privada terá dinheiro emprestado para investir em Saneamento público? Qual o papel do BNDES em toda essa história? Se a proposta é solucionar o grave problema do saneamento no Estado, por que é importante saber quem está se propondo a fornecer essa solução e quais são, afinal, as medidas que têm sido adotadas?

“A questão fundamental é qual a função do Estado de Alagoas”, retrata o professor José Menezes. “Agora ele quer se retirar da água, mas a água é um direito humano. Hoje parte da população não tem acesso à água e quem está se colocando para oferecer esse atendimento universal são os bancos. Há 20 anos Manaus recebeu essa promessa e não houve acréscimo ou atendimento universal. É uma falácia que se cria aproveitando a desinformação de parte dos envolvidos. A água e a energia sobem e aumenta também preços de condomínio. As despesas com água e energia começam inclusive a exigir corte das despesas com funcionários”, exemplificou, desacreditando inclusive na ideia propagandeada de que não haverá aumento de valor.

Para o pesquisador, não há sinal indicando que Alagoas pode adotar um desfecho melhor indo por este mesmo caminho. “Este governo tomou R$ 700 milhões de empréstimo e, neste ano, mais R$ 1,2 bilhões, só em contratações para duplicação de rodovias. Tudo para repassar às empreiteiras que passaram por dificuldades decorrentes da operação lava-jato”, atenta. “Não só a região metropolitana ficará mais cara, como as outras que não tem acesso ou pagarão contas ainda mais caras ou sequer terão o serviço”.

De acordo com dados apontados pelo Panorama da participação privada no saneamento Brasil 2017 – exibido em formato de animação pelo Instituto pela Democracia – foram observados reajustes de tarifa maiores entre empresas privadas em relação às companhias estaduais. No que diz respeito ao projeto de concessão das empresas privadas, o projeto já sinaliza que as tarifas de quem custeia através dos SAAES deverão receber aumento até o valor se equiparar ao que é pago atualmente à CASAL, de modo a unificar as tarifas.

 

Média de aumento de tarifas de companhias estaduais e empresas privadas responsáveis pelo saneamento no país, entre 2003 e 2015. IMAGEM: Vídeo Instituto pela Democracia

 

Menezes também debate como a dívida pública é o objeto que motiva a privatização. “Quando pegamos a discussão sobre a Lei Complementar 156/2016, que assegura a reestatização da dívida pública por 20 anos, fica muito claro que, para renegociar a dívida pública, o Governo exigiu a privatização das empresas de água”, apresenta. Em seu artigo, acrescenta que: “Tal iniciativa permitiu a suspensão, por dois anos, do pagamento do serviço da dívida e a liberação de um novo ciclo de endividamento interno e externo dos estados. Nesta nova renegociação se retoma as exigências iniciais do FMI e do Banco Mundial de privatizar as estatais que sobraram, com destaque para a privatização da água, com dinheiro subsidiado do BNDES”.

A Lei Complementar, que tem como objetivo estabelecer o Plano de Auxílio aos Estados e ao Distrito Federal e medidas de estímulo ao reequilíbrio fiscal, recebeu em 2019 mais um Projeto de Lei Complementar (149/2019) que lhe dá suporte, ao estabelecer já no seu primeiro eixo o “Plano de Promoção do Equilíbrio Fiscal” com a implementação da seguinte medida expressa como pré-requisito:

“i. privatização de empresas e utilização dos recursos para quitação de dívidas”. O documento prossegue com ainda maior precisão no: “viii. adoção do modelo de concessão para os serviços de saneamento básico e, quando houver companhia de saneamento, a adoção do seu processo de desestatização” 

“E quem são os maiores responsáveis pela dívida pública? Em Alagoas, grande parte da dívida pública foi contraída pelos usineiros”, prossegue Menezes. “Temos como exemplo o banco Produban, que liberou recursos para os usineiros, usando os recursos sem pagar. O Estado teve que emprestar para a União. E, hoje, novamente vemos esse discurso só que com a privatização da CASAL”.

Para Dafne Orion, o exemplo recente da privatização da CEAL que, hoje, foi abarcada pelo grupo Equatorial, é um caso a ser memorizado. “É que cria-se o falso clamor do ‘privatiza que melhora’. E aí você sempre via matéria sobre antiga Ceal, sobre a Casal, que o serviço é péssimo e tem que privatizar. Foi criando esse discurso que a população caiu em um desencantamento. A Ceal foi vendida e agora é Equatorial. E o que a população está tendo que enfrentar é um aumento na conta de energia em plena pandemia”, exemplifica.

“É assim que o setor privado tem que trabalhar. Não tem outra forma. Ele não pode deixar de ter lucro por conta da pandemia, porque milhares de pessoas ficaram desempregadas, porque microempresas fecharam, porque não tiveram ajuda do governo para sobreviver na pandemia. Não podem deixar de ter lucro porque o país todo está perdendo. E é a população que vai ter que pagar essa conta para que os bancos não deixem de ter lucro”.

O questionamento se estende ainda em relação aos SAAES. “Uma coisa é a empresa que possui um funcionário que vai se deslocar quando há o problema de abastecimento. E aí quem vai fazer esse sistema de abastecimento? Quem serão os funcionários? Quem vai verificar a qualidade da água? Se tem dinheiro para liberar para empresas privadas comprarem a estatal, por que não fazem isso para os municípios?”, questiona.

A participação estratégica dos bancos no processo é outro ponto-chave apresentado pelo coordenador da Auditoria Cidadã da Dívida em Alagoas. O sinal fica evidente com o interesse imediato na área mais lucrativa. “Querem comprar justamente a área comercial da região metropolitana, que é de onde há maior recurso e riqueza. Grande parte da riqueza da CASAL deriva dessa parte e cobre, através do subsídio cruzado, as partes mais pobres. Então o que querem é pegar a parte mais nobre, de maior rentabilidade, e que assegura o lucro da CASAL. E a CASAL vai continuar existindo para atender o interior, sem a receita da capital.”

Dafne Orion define o processo como a financeirização, ao apresentar a história das investidas dos governos em mercantilizar a água. “A primeira tentativa, no final do governo de Teotônio Vilela Filho, era uma abertura de capital, quando o controle acionário da Casal seria divido com uma empresa privada, a exemplo do que aconteceu com a Sabesp. Nós acompanhamos por meio dos jornais a inimaginável crise hídrica que São Paulo enfrentou. E muito da responsabilidade dessa crise derivou da má gestão da Sabesp, já privatizada”, afirma.

“O projeto foi rejeitado pelo Renan, que assumiu o compromisso de manter a Casal como empresa pública. Há dois anos, porém, o governo Temer iniciou um projeto ainda mais danoso de entrega do setor de Saneamento em todo país. E quando a gente fala em entrega é porque assim que se dá a privatização no Brasil que, desde a década de 80, as empresas públicas são repassadas para o setor privado num valor bem abaixo do que elas realmente valem. E é isso o que torna elas atrativas”.

Nos últimos dois anos é que o projeto passou a chamar atenção novamente do governo do Estado. “O governo federal volta com um projeto reformulado junto ao BNDES que, na verdade, é semelhante ao primeiro. Antes, porém, o projeto dividia o estado em três blocos e fazia o leilão dos três para o setor privado. Agora, pretende fazer só a região metropolitana – compreendendo Maceió e mais 12 municípios, incluindo SAAES que têm feito um trabalho muito bom em seus municípios, como é Marechal e Barra de Santo Antônio, que também serão leiloados”.

O leilão focado exclusivamente na parte mais lucrativa é um dos sinais que escancaram o direcionamento de todo esse projeto para o lucro, segundo Orion. “As empresas que estão envolvidas são diretamente ligadas a bancos e por isso chamamos de financeirização. Você imagina um banco assumindo o controle da água? Você vai ter a água figurando na bolsa de valores, rendendo lucro, e a lógica social se perde totalmente”.

Entre os segmentos econômicos, houve especulações de que o Grupo Equatorial, o mesmo que hoje tem a concessão do fornecimento de energia elétrica no Estado, estaria interessado. No que diz respeito às empreiteiras, a pesquisa de Menezes trouxe alguns elementos: “De acordo com este estudo, esse processo [de privatização] se concentra em seis empresas que ficam em torno de 95% dos negócios privados: OAS, GS Inima, Odebrecht Ambiental, Águas do Brasil, Aegea e Cab Ambiental. Este levantamento constatou um aumento do capital estrangeiro nesta atividade. Neste processo, o grupo japonês Itochu adquiriu 49% da participação da Queiroz Galvão na concessionária Águas do Brasil; o fundo de investimento canadense Brookfield comprou os ativos da Odebrecht Ambiental, a maior empresa privada do setor no país; e o fundo de investimento GIC, de Cingapura, elevou a participação no grupo Aegea (CEE-FIOCRUZ, 2017)”.

Em um vídeo publicado pelo Observatório UFAL, elaborado pelo Instituto Mais Democracia, foi ilustrado como tem sido efetuada a concessão da água e do esgoto no Brasil às iniciativas privadas dentro do chamado processo de financeirização.  Na animação de 2015, é explicada que apenas cinco empresas controlam o saneamento no Brasil atualmente nos 87,8% dos municípios que privatizaram a água e esgoto. Por trás destas empresas é que vem as instituições financeiras estrangeiras, como a canadense Brookfield. O Estado Brasileiro desponta sempre como um grupo minoritário – através do BNDES. Das 26 empresas que participam diretamente do saneamento, 15 são vinculadas a instituições financeiras, sete delas estrangeiras.

 

A Mídia Caeté procurou a direção do BNDES por meio de assessoria. Enviamos as perguntas, conforme combinado previamente ao telefone, mas não obtivemos as respostas.

 

Ideologias, ideologias

Ao cumprimentar o presidente do BNDES, Gustavo Montezano, ainda durante o Fórum das Parcerias Público-Privadas, Renan Filho acaba despontando mais um elemento para a discussão, em meio ao enaltecimento da importância do Banco Nacional de Desenvolvimento no projeto “para que a gente possa – não domar, porque ninguém é capaz de domar a impetuosidade do capital privado – mas que a gente possa organizar, orientar caminhos, identificar oportunidades”, disse.

Essa relação entre público e privado, frequentemente mencionada em situações de privatização, mas também frequentemente de forma pouco aprofundada por quem a opera, tem a ver com uma perspectiva de mundo que termina por nortear uma série de decisões políticas e econômicas. Pesquisador do liberalismo no Estado, o professor de história Geovane Andrade resume alguns elementos para esta compreensão:

“As privatizações fazem parte de um dos grandes debates da ideologia liberal, como uma das formas de transição para uma sociedade do livre mercado, que se baseia na noção de que o indivíduo age em sociedade, sempre exclusivamente em vias de realizar as necessidades pessoais, e não cooperação ou responsabilidade com o mundo em que ele mesmo vive”, ressalta. “Os desdobramentos desse tipo de pensamento vão no sentido de entender a sociedade como um espaço em que esses sujeitos que atuam de forma individual, acabem convergindo em atividades sociais, como trabalho ou produção. E a única perspectiva possível em que esse espaço possa acontecer é entendendo a sociedade como um mercado, e a única forma de atuar, a partir da concorrência”.

Há ainda um outro aspecto nesta dinâmica: a regulação como uma força espontânea. “É um fluxo que não pode ser controlado de nenhuma maneira, e por isso a intervenção de qualquer estrutura ou sujeito que queira controlar a relação perfeita seria necessariamente uma degeneração dessa sociedade perfeita. No caso, o Estado seria o mais prejudicial, porque quebraria as regras dessa natureza”, explicou.

Para Andrade, as privatizações aparecem como prova final dessa ideia da eficiência da livre iniciativa no fornecimento de serviços e produção. “Entende-se que, competindo em um edital, é possível medir a eficiência que determinado setor vai ter, já que a lógica é garantia de competição. Na real, não é o que acontece. Sabemos que hoje, a forma como se organizam os processos de escolha impedem a fiscalização eficaz da atuação desses grupos particulares”, ressalta. “Além disso, não necessariamente eficiência quer dizer lucro ou rentabilidade. Às vezes o bom serviço não é lucrativo. E se é um serviço humano de qualidade para o usuário, nem sempre vai ser rentável, o que colocaria mesmo em xeque a manutenção dessa lógica de competição que o neoliberalismo diz ser a única forma possível de conceber a sociedade”, rebate.

A ausência de respostas contundentes de que haverá garantias de solução do problema da água, portanto, é um debate que persiste em cada etapa e no próprio processo da privatização de modo geral. Não só pelas discussões sociológicas, políticas e econômicas sobre a indomável necessidade do capital privado superar suas próprias metas lucrativas – ainda que, para isto, exclua parcela da população do acesso a direitos básicos. Há ainda situações práticas mediadas pelo próprio pregão eletrônico que despontam para um caminho contrário ao da universalização.

De acordo com a Secretaria Estadual de Infraestrutura (Seinfra), o calendário do pregão eletrônico que inclui o leilão no dia 30 permanece ativo e não deverá ser modificado ou adiado. “O processo segue nos prazos previstos. O processo está muito bem construído e não acreditamos em eventuais atrasos por conta pandemia ou que discussões judiciais venham a paralisar o processo, até por que com o advento da lei do saneamento, são irreversíveis soluções de universalização como esta.”

Menezes aponta a gravidade que é a situação acontecer dentro deste contexto: “O fato novo que temos é que a destruição dos serviços públicos, na fase anterior, serviu de facilitador para a propagação da COVID-19. Todavia, a resposta dos governos, seja federal ou estaduais, é de aprofundar as privatizações no momento em que o serviço público mais se mostra necessário para o combate à pandemia. Ao mesmo tempo que os governos impulsionam a privatização dessas empresas estatais, eles ampliam o volume de capital estatal subsidiado para as novas empresas que passam a atuar no setor”.

 

E a população?

“O que é passado para a população é que vai haver ampliação do serviço, que vai melhorar a qualidade do serviço, mas não se diz a que custo”, responde Dafne Orion, ao ser questionada sobre como o assunto tem sido debatido junto à sociedade. “Eles não dizem que quem assumir o controle da água vai ter obstinação pelo lucro. Se o lucro está em primeiro lugar, você vai ter que abandonar uma série de outros princípios”, comenta.

A integrante do Fórum Sanear lembra que o processo chegou a passar por consulta pública, dentro das exigências do edital, mas não ocorreu da forma esperada. “Essa consulta aconteceu na sede do TJ, na Praça Deodoro, e nós do Sanear estávamos lá. A ampla maioria, quase de forma unânime entre parte da população presente no Tribunal, veio com falas totalmente contrárias. Mas a população não foi ouvida, nem de fato nem de direito”, relata.

Orion também questiona o fato de que não havia representação de todos os municípios envolvidos. “Há 13 municípios envolvidos e teve uma única audiência pública em Maceió. Não foi para ouvir a população que vai ser afetada, mas meramente cumprir o protocolo. Na ocasião, a população se manifestou com sugestões, inclusive, para garantir a sustentabilidade do que vai ficar com a Casal, mas não foram ouvidos de fato”.

Apesar da pouca divulgação sobre os detalhes a respeito do processo de privatização, a avaliação é de que só após a venda a população de modo geral poderá sentir as consequências, colocando Alagoas – assim como os demais estados do país – dentro do mapa cada vez mais amplo da desestatização.

“Depois que houve privatização da água na Bolívia, foram seis meses de passeata diária. Isso porque a tarifa de água subiu em 60%, levando a população ao desespero. Foi a guerra das águas. E a população conseguiu porque a água é um direito fundamental. A água não é mercadoria. Não pode servir para renúncia fiscal para rico, ou para pagar dívidas”, reforçou Menezes.

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