Resumo
O ano de 2021 se foi e as perguntas se mantêm conforme cresce a pilha de casos emblemáticos. No último 14 de dezembro, a comunidade do Vale do Reginaldo não se calou e pediu justiça pelos três jovens mortos em duas ações policiais em menos de 15 dias. Miguel tinha 16 anos. Moacir e Leandro tinham 18. No Jacintinho, familiares seguem questionando onde está o Jonas. Mesmo o julgamento que condenou o policial militar Johnerson Simões Marcelino pela morte dos irmãos Ferreira não seria suficiente ao alento da dona Maria de Fátima, que perdeu os dois filhos de 16 e 18 anos violentamente após uma ação policial no Village Campestre em 2016.
A letalidade causada pela violência policial é um dos aspectos de muitas, mas muitas memórias e relatos que pulsam, únicos, ao mesmo tempo em que integram um mosaico que posiciona Alagoas como um dos estados mais inseguros para jovens negros em todo o país.
O levantamento mais recente publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública indicou que os casos de assassinato de crianças e adolescentes com até 19 anos aumentou em mais de 50% em Alagoas nos últimos cinco anos. Os dados apontaram que as vítimas tinham majoritariamente entre 15 a 19 anos e as mortes estavam vinculadas com violência urbana e racismo. Em diversas outras pesquisas, a mesma tendência se repete.
No que diz respeito à violência policial, a desproporcionalidade demarca nas estatísticas o racismo estrutural que se expressa em quem é a vítima no topo dos casos de letalidade. As mortes em intervenções policiais aumentaram em 244% de 2012 para 2019. Os dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP/AL) foram reunidos pela Mídia Caeté após solicitação através de Lei de Acesso à Informação (LAI) e colocam ainda que negros são 86% dos mortos após intervenções policiais. A porcentagem é maior do que o contingente de pessoas negras pretas e pardas – autodeclaradas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Você pode ler a reportagem completa clicando aqui.
Desconhecimento sobre a gravidade do problema é algo que não pode ser alegado por nenhuma instituição. Por sinal, foi grande a divulgação do governo do Estado em torno da redução do número de homicídios – a partir de dados apresentados pelo Anuário Brasileiro da Segurança Pública de 2021 que traziam diversas outras informações- mas o silêncio pairou na contradição que estampava o aumento da letalidade contra a juventude negra e o que vem sendo feito a respeito.
Governo do Estado: recursos robustos e comitê instituído desde 2015, mas plano ainda não foi visto
A falta de recursos dificilmente pode ser alegada pelo governo do Estado, após ter recebido recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública na ordem de R$ R$ 24.661.952,00 ainda no primeiro semestre de 2021 . As informações sobre o desbloqueio do montante através do Ministério da Justiça e da Segurança Pública (MJSP) podem ser acessadas no portal oficial do Governo Federal, clicando aqui.
“Difícil que possam alegar falta de orçamento. Há o recurso do Fundo Nacional, embora haja também pouca transparência no que diz respeito a como tem sido usado. Além disso, não é preciso tanto para construção desse Plano”, relata o advogado do Cedeca Zumbi dos Palmares, Arthur Lira. A ONG vem concentrado esforços no último ano em torno de denúncias e demandas às instituições públicas sobre a violência.
Ainda que dinheiro para estruturar o plano não seja um problema, seria preciso uma equipe para elaborá-lo e cuidar de sua execução. Ocorre que, pelo menos no papel, ela também existe desde 2015. Publicado no Diário Oficial do Estado em 19 de novembro de 2015, o Decreto de nº 45.082 criou a “agenda integrada, o comitê gestor, e define as diretrizes centrais para implementação da política de prevenção à violência no Estado de Alagoas”.
Sob perspectiva intersetorial e inclusiva no que diz respeito à participação da comunidade, o projeto organizava a agenda integrada a partir de níveis de prevenção, abrangendo ações transversais que se voltariam a: fatores ambientais e sociais que aumentam risco de violência; direcionadas a pessoas mais suscetíveis a cometer violência ou crime em razão da vulnerabilidade; a pessoas que já cometeram crime, evitando reincidência; ou a vítimas de crimes, evitando revitimização; a redução de valores que favorecem a prática de crimes; a enfrentamento de condições que conduzem pessoas a cometerem delitos etc.
Além da agenda, também era criado o o Comitê Gestor da Política de Prevenção Social à Violência presidido pelo governador Renan Filho (MDB) e composto no total por 18 membros, além dos suplentes, representando diversos órgãos do Governo do Estado – entre Segurança Pública, Saúde, Educação, Polícia Militar, Planejamento, Cultura, Mulher e Direitos Humanos, Trabalho, Controladoria, Fazenda, Assistência e Desenvolvimento Social, Esporte e Lazer. Para visualizar detalhes sobre o Projeto, clique aqui e acesse o decreto no Diário Oficial.
A questão é que, após registro de duas reuniões – a primeira delas ocorrida em julho de 2016 – não houve mais informações sobre o desenvolvimento da Agenda Integrada ou demais ações competentes ao comitê, além da inclusão de mais três secretarias,: Ciência, Tecnologia e Inovação (Secti), Transporte e Desenvolvimento Urbano (Setrand) e Ressocialização e Inclusão Social (Seris).
Ao invés do encaminhamento dessa agenda, no entanto, o que vem acontecido são ações pontuais e o reforço da presença ostensiva policial contra a juventude negra nas regiões periféricas.
De acordo com o advogado do Centro de Direitos Humanos -Cedeca Zumbi dos Palmares -, Arthur Lira, desde a metade do ano, a organização vem enviado documentos requerendo respostas sobre plano ou política de prevenção à violência contra jovens negros. Ainda em 30 de julho, a requisição foi encaminhada ao Ministério Público (MP) solicitando a instauração de um inquérito civil e de uma ação civil pública, com base nos interesse coletivos dos jovens alagoanos e do controle externo da atividade policial.
O requerimento direcionava perguntas tanto ao Governo do Estado quanto à Prefeitura de Maceió, de acordo com suas competências. Ao Estado, foram solicitados – entre outras demandas – inquéritos policiais relativos aos homicídios contra jovens à SSP. Também foram pedidas informações sobre a política estadual de prevenção à violência homicida contra os adolescentes e jovens. À Prefeitura de Maceió, por sua vez, a interrogação é sobre a política municipal de prevenção à violência homicida contra os adolescentes e jovens. Para ambas as gestões, foram solicitados detalhes como orçamento estadual e municipal destinados aos respectivos planos e outras informações.
O MP procedeu com um ofício encaminhado às gestões. O Governo do Estado, através da Secretaria de Segurança Pública (SSP), encaminhou como resposta a existência de seis projetos. Três deles sem funcionamento – Patrulheiro Mirim e Bombeiro Mirim, suspensos pelo afastamento social, e o inativo Núcleo de Ação Comunitária Escolar (NACE) descrito como visitas em escolas, sob promessa de que seria reativado.
Foram citados, ainda: o “Foco na Comunidade Escolar”, descrito como visitas em escolas próximas às bases comunitárias; aulas de informática do Infojovem na Base Comunitária do conjunto Selma Bandeira. Finalmente, foi citado com bastante enaltecimento o Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (PROERD). Implantado desde a década de 1990 no Rio de Janeiro, e depois espalhado pelo país, o Programade integração comandado pela Polícia Militar envolvendo escolas e famílias chegou em Alagoas em 2002. Polêmico, o programa recebeu diversas críticas ao longo dos anos a partir de estudos questionando sua eficácia, a partir da perspectiva da saúde, dos direitos humanos e da própria redução do uso de drogas no fim das contas. Um destes estudos foi divulgado recentemente pela Ponte Jornalismo em uma reportagem (clique aqui para acessá-la).
A resposta da SSP também incluiu o Projeto Minha Comunidade Segura, que teve apenas uma edição e afirmou desenvolver ainda o projeto Minha Cidade Segura, além de bases policiais comunitárias. A resposta completa pode ser acessada clicando aqui: Resposta – SSP – Sobre Plano de Prevenção de Violência .
A Mídia Caeté tentou entrar em contato com a Secretaria de Segurança Pública do Estado, com o objetivo de questionar a sistematização de ações em uma política de prevenção à juventude negra. Além de telefonema, foram enviadas mensagens por WhatsApp e email, mas não obtivemos reposta.
No que diz respeito ao Município, Arthur Lira relata que a resposta foi ainda mais incipiente. Encaminhado pela Secretaria Municipal de Segurança e Convívio Social (Semscs), a reposta apresentada por meio de ofício apontou como política de prevenção: o projeto de Judô e o projeto Guarda Amiga, ambos realizados pela Guarda Municipal. O ofício pode ser lido na íntegra também clicando aqui: Resposta Secretaria de Segurança comunitaria e convívio social – Representação
A Mídia Caeté procurou a Semsc, questionando sobre a suficiência destas ações, recebendo a seguinte resposta através de sua assessoria:
“A Secretaria Municipal de Segurança Comunitária e Convívio Social (Semscs) esclarece que possui programas específicos voltados para a prevenção a violência contra adolescentes e jovens, que são o Judô com a Guarda e o Guarda Amiga. Os dois projetos consistem em aproximar a Guarda Municipal de Maceió (GMM) da juventude de comunidades carentes, levando até esse público atividades esportivas e lúdicas, para afastá-los do mundo do crime.
As ações desenvolvidas pela Semscs são de extrema importância e se somam a outros projetos desenvolvidos pela Prefeitura de Maceió, para que de forma integrada o poder público municipal consiga proteger cada vez mais as crianças e adolescentes.
A Secretaria reforça que na Guarda Municipal de Maceió o policiamento cidadão é realizado pelos agentes de segurança pública, durante os patrulhamentos diários feitas em praças e nos logradouros públicos da capital alagoana. O policiamento preventivo da GMM é feito com aproximação com a comunidade, tornando os guardas municipais aliados dos maceioenses.”
Racismo estrutural e violência policial
Se por um lado, faltam respostas mais consistentes sobre o plano de prevenção e políticas mais sistemáticas que lidem diretamente com o aumento da letalidade contra jovens negros, no que diz respeito à presença do aparato policial nas regiões periféricas, a presença é sentida com tensão diante das ações reclamadas por jovens.
“Lembro de uma situação recente em que eu estava na praça esperando ônibus e uns jovens estavam no rolê na praça. A Polícia decidiu fazer ronda e fizeram abordagem para dispersar os jovens, fazendo baculejo de maneira bem violenta, dando rasteira para os jovens abrirem as pernas. Para completar o serviço, mandaram ele ir para casa, levou um tiro de bala de borracha à queima roupa”.
Este relato foi trazido por Roberto Silva, estudante, militante e um dos realizadores do Fórum Popular de Segurança Pública. “Como militante tive que ver tudo sem poder fazer nada, ficando calado e apenas reunindo a experiência para conseguir de alguma forma compartilhar com outros jovens”, conta. “Não basta violentar psicologicamente, não viabilizar o direito a transitar e se reunir”, prossegue.
O estudante também conta como, ao presenciar algumas atividades culturais, outras experiências vieram à tona. “Recentemente, numa batalha de freestyle, tocamos no tema da abordagem policial. Eles já dizem que policial chega dando tiro e é normal. E eles ainda dizem que a estratégia é correr e fica quem tem costa para aguentar. Certo que correr é a estratégia encontrada, mas será que tem outra?”, questiona.
As praças em que jovens comumente relatam episódios de abordagens violentas estão na zona sul da cidade, como a Praça Santa Tereza e Padre Cícero, além das praças do Jacintinho e do Benedito Bentes. Durante uma ação do Cedeca na Terceira Praça do Jacintinho, em que a Mídia Caeté esteve presente na condição de divulgar uma das ações que debatia a violência policial, mais uma situação aconteceu sob os olhares de todos os presentes. Policiais subiram na praça, rendendo os jovens que estavam no local por um longo período de tempo. Na sequência, pelo menos dois jovens relataram ter sofrido abordagem violenta no local e tentativa de incriminação.
As mortes – e desaparecimentos – que acontecem nas áreas periféricas durante intervenções policiais são situações estopins mais gritantes, entre ações já cotidianas de abordagens abusivas e agressivas, que fazem parte da rotina de quem é jovem, negro e vive em algum território onde outras violações aos direitos acontecem.
“O formato da segurança pública a nível Brasil já é muito difícil, porque é estruturado de uma forma em que a polícia é extremamente violenta. É a que mais mata e consequentemente a que mais morre. O Atlas da Violência, o Fórum Brasileiro da Segurança Pública, já ressaltam isso”, diz Roberto.
O advogado Arthur Lira concorda. “O Estado é forte na intervenção e braço forte quando diz respeito à violência e à força policial, enquanto é mínimo nas políticas sociais. Não viabiliza condição para jovens periféricos e só aparece em forma de poder de violência e abusos. É bem constante nos territórios”, diz.
No artigo “Quando nenhum lugar é seguro: a violência contra corpos negros em Alagoas”, publicado na Revista Argumentos (que você pode ler na íntegra clicando aqui), os pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Emerson do Nascimento e Luciana Santana demarcam como o racismo contra jovens no Estado tem expressão marcante na diferença entre a letalidade contra negros, sobretudo se comparado a não negros.
Emerson do Nascimento e Luciana Santana expõem como a realidade faz cair por terra qualquer tentativa que ainda se tenha de investir no argumento da ‘democracia racial’.
“Para aqueles que sempre se posicionaram contrários ao argumento de que há, de fato, um estrutura política de extermínio do corpo negro tem se tornado cada vez mais difícil dourar a pílula da democracia racial, posto que não há como discutir direitos civis, cidadania e democracia onde as condições de sobrevivência de uns é diametralmente oposta às condições de existência de outros. Ainda que não se vincule, de fato, um discurso deliberado de extermínio de um grupo étnico por parte do Estado, há em curso uma complexa marcha progressiva de eliminação e silenciamento destes indivíduos”, escrevem.
No que diz respeito a Alagoas, ressaltam como a gravidade é ainda maior. “No estado de Alagoas, a situação da população negra faz-se ainda mais alarmante como talvez em nenhum outro estado da federação. Não por que Alagoas ostenta a maior taxa de homicídios de negros, mas por que o estado apresenta a maior diferença de vitimização entre negros e não negros de todo o país. Aqui, a chance de um negro ser vítima de violência letal intencional é 17 vezes maior do que para um branco ou não negro. Outros estados nordestinos também têm apontado para discrepâncias expressivas entre riscos de vitimização de negros e não negros, como Paraíba, Sergipe, Ceará e Rio Grande do Norte, contudo o caso de Alagoas merece atenção especial”, acrescentam.
“As dinâmicas de variação de vitimização entre negros e não negros em Alagoas, e que se concentram, prioritariamente na capital do estado, Maceió, têm chamado atenção para o fato de que a cidade que parece segura para uns, pode ser um inferno para uma parcela considerável da população”.
Para além de sua percepção individual, o estudante Roberto acrescenta a experiência de ter dialogado com diversos jovens das comunidades a partir de projetos em que participou.
“A comunidade não se sente segura na frente da polícia. Durante uma pesquisa que realizei junto com a ONU Habitat, a primeira pergunta que fizemos enquanto grupo de pesquisadores foi o que de fato é a segurança pública e o que de fato é a violência. Isso tudo partindo do entendimento de que a segurança pública também está muito relacionada ao subjetivo, ao quanto me sinto seguro. Em alguns casos diretores de escola expressaram o sentimento de insegurança diante do comportamento violento de estudantes, que já trazem de vivências nas comunidades. Em outras, as pessoas dizem que se sentem seguras nas comunidades só quando a polícia não está presente, mas quando a polícia chega já ficam com receio e entram em casa”.
Entre as informações obtidas pelo estudante na pesquisa, houve ainda algumas respostas que lhe chamaram atenção. “Na grande maioria das comunidades, as pessoas trazem em suas falas que a presença da polícia traz consigo a impressão de que a violência vai acontecer, de que uma abordagem violenta ocorrerá em algum momento, trazendo sensação de insegurança. Há ainda relação de que se sentem mais seguros com traficantes do que com policiais. Quando a gente pergunta o que é necessário para fazer melhorar a situação de violência, de imediato vem a resposta de que é preciso que o governo invista mais em polícia. Ou seja, você diz que a polícia é violenta e ao mesmo tempo que é necessário ter mais. Quando vamos seguindo com os questionamentos, é comum que revejam essa colocação e acabam dizendo ‘poxa, talvez a resposta não seja mesmo ter mais polícia, porque se ela é violenta porque a gente pede mais?”, retratou.
“É que essas falas muitas vezes baseadas sem muita reflexão ficam impregnadas na fala que a mídia passa, que o governo passa. Quando se aprofunda, é que vai entendendo que é preciso investir em outras iniciativas mais eficazes uma vez que esta não está funcionando. É na tentativa, no erro e acerto”, diz.
É partindo dessas experiências e de uma perspectiva crítica sobre o que funciona ou não que o estudante acrescenta, ainda, o que vai entendendo sobre a participação efetiva da comunidade – especialmente dos jovens – na construção de soluções. “Temos buscado iniciativas como a criação de um plano de enfrentamento à violência contra juventudes, investindo também em uma rede com universidades públicas e privadas, ONGs, poder público municipal e adolescentes e jovens que são os que vivenciam na prática essas situações. Precisamos debater, criar mecanismos, sendo viabilizados recursos para monitoramento e avaliação. Temos debatido e pressionado para o governo participar dessa iniciativa por algo concreto”, relata.
Uma outra perspectiva de segurança pública
O nível de preocupação quanto ao modo como o Estado vêm lidado em relação à violência contra jovens negros só cresce na medida em que se percebe não apenas o esvaziamento de tais respostas, que sequer situam o enfrentamento ao racismo em sua base, como também denotam – por outro lado – ações e decisões das gestões que se concretizam num policiamento ostensivo como única performance possível, gerando efeito contrário: mais violência.
Nesse sentido, o pesquisador Emerson do Nascimento, que também é professor de Ciência Política do Instituto de Ciências Sociais da UFAL, alerta sobre a dimensão racial da violência. “Há um desafio na pauta da segurança no Brasil que se estende ao caso de Alagoas também, que é a resistência em reconhecer a dimensão estrutural do racismo. Reconhecemos a contribuição cultural negra para a formação social brasileira, mas não reconhecemos a perversão estrutural que o escravismo trouxe e legou às famílias afro-brasileiras. Insistir em não reconhecer essa dimensão racializada da violência implica em insistir na promoção de políticas que simplesmente negligenciam ou simplesmente se omitem a reconhecer o trauma geracional do escravismo e o genocídio a que foi e continua sendo submetida a população negra”.
O distanciamento entre quem elabora executa as políticas – quando existem – e quem está na linha de frente de seus efeitos é uma dos obstáculos identificados por quem atua diretamente sobre o problema e propõe um debate sobre segurança a partir de uma perspectiva diferente daquela conhecida majoritariamente por órgãos oficiais.
Esse hiato é traduzido no sentimento de desamparo encaminhado para o dia a dia dos jovens que sofrem as violações, como descreve Roberto Silva. “Confesso que, no momento, não consigo pensar em nenhuma instituição estatal que possa prestar essa assistência, porque hoje temos aparato do estado que não oferece tanta confiança. A gente não consegue pensar onde de fato acionar ou procurar para conseguir ser acolhido, evitar ou prevenir qualquer situação”, reforça.
Para Emerson do Nascimento, é preciso afastar a pespectiva universalista da segurança, que contribui para perpetuação do genocídio, e possibilitar uma aproximação efetiva da população na produção de solução. “O primeiro passo da gestão pública é reconhecer esse problema, depois, ouvir essa população, ouvir seu público alvo: a população preta e parda da periferia, especialmente os jovens. São eles, mais do que ninguém, que têm sido, historicamente, alvo desse Estado Penal. Insistir em negar ou não reconhecer a dimensão racializada e estrutural desse problema tornou-se insustentável. Quem silencia sobre isso nega a opressão a que sempre foi submetida a população negra”,relata.
Roberto Silva relata como sua trajetória conduziu para a busca de novas repostas quando se fala sobre segurança pública. Vivenciou pessoalmente casos de violência provocados seja por policiais militares, seja por pessoas da própria comunidade envolvidas com a criminalidade. “Minha luta começa na capoeira, no bairro periférico do Vergel do Lago, que margeia a lagoa e tem um grande histórico de relação com a violência e outras violações de direitos humanos bastante fortes”. O estudante conta ter percebido a violência mais fortemente a partir da adolescência, ao vivenciar situação de homicídio entre jovens da própria comunidade.
“Eu tinha uns 15 e 16 anos e foi uma situação que trago como experiência marcante”, diz, ao se referir a um episódio em que moradores envolvidos com tráfico na comunidade atiraram a queima roupa outro rapaz após um assalto mal sucedido. “Um dia estávamos todos juntos. No outro dia, ele estava morto. Acompanhei a situação antes, durante e depois. Como alguém que está dentro e vivenciou como esse sistema faz com que a gente, enquanto jovem, acabe se matando entre a gente, pelo capitalismo e outras conjunturas”.
Segundo ele, a primeira porta que lhe afastou desse caminho foi a capoeira, trazendo à tona cultura, esporte e lazer como alternativas ao contexto de violência. A partir de então, encontrou na organização de grupos de jovens um vislumbre de enfrentamento mais direto ao problema.
“O pessoal da capoeira tinha muito afeto por mim e conseguiu demonstrar a importância de eu estar naquele espaço. A partir dele comecei a participar de grupos de protagonismo juvenil, em que pudemos olhar a comunidade de forma diferente, percebendo suas questões e como a juventude é afetada pela ausência de políticas públicas, pela violência, sobretudo a juventude negra e periférica. Discutíamos vários temas, sobretudo a violência. A gente questionava de que forma a violência acontece, o motivo, o que a gente precisa fazer, entre campanhas, rodas, debate em escolas e promoções de espaços para problematizar e em alguma medida fazer as pessoas tomarem consciência”.
Em 2019, com a organização do Fórum Popular de Segurança Pública, a temática tomou ainda maior proporção entre jovens de todo o Nordeste. “O diferencial é que a discussão acontecia nas bases, ou seja, a gente sai daquele espaço mais comum, onde só tem militares e parlamentares, com suas discussões que a gente sabe que muitas vezes não dá em nada e tenta problematizar com as pessoas que a vivenciam diretamente em como se dá essa segurança pública e como as pessoas sentem ela, e como está posta”.
Por falta de recursos e estrutura, o Fórum terminou por ser interrompido, segundo o militante. “Mas é algo que dá muito certo e funciona. A gente consegue trazer uma discussão que muitas pessoas não possuem e que sentem necessidade de conversar, mas sentem medo. Não é fácil principalmente na comunidade porque as pessoas têm medo do que falar, se estarão falando algo que não deve e qual impressão outras terão do que foi relatado. Quando a gente consegue sensibilizar de uma maneira diferente, mostra que é possível discutir sem denunciar alguém, mas dando visibilidade ao problema. E é entendendo esta experiência da segurança pública que a gente propõe novas formas de interagir com ela. Seja criando processos de mobilização, fortalecimento dentro da comunidade para reagir frente às violências policiais, seja criando mecanismo dentro de uma base para lidar com esse contexto de violência constante que a gente está exposto”, conta.
Dentro do âmbito institucional, os obstáculos são grandes para aprofundar o debate a partir da perspectiva da população. “A gente sabe que a segurança pública, como está posta hoje, não funciona. Nunca funcionou”, conta. “Em Alagoas, é um desafio imenso mobilizar as instituições para debater o tema. Tínhamos fóruns em outros Estados, que conseguíamos uma adesão maciça. Aqui, a gente sentiu essa dificuldade de trazer a juventude e as pessoas se sentissem um pouco mais à vontade para debater. É uma especificidade aqui do território”, conta.
No entanto, a possibilidade de construir novas alternativas que incluam a juventude permanece a partir das próprias articulações nas bases com quem mais vivencia. “Talvez, isso tudo nunca pare, porque se trata de uma estrutura histórica ligada ao racismo, mas o esforço para que diminua precisa ser feito. Que possamos instrumentalizar a juventude para lidar com essas situações. Tentar criar mecanismo para que a juventude possa filmar, fazer mobilização que impeça que situações como essas voltem a acontecer. A juventude sente na pele tudo isso e sente também o desafio que é essa mudança”.