População local impede ofensiva de condomínio “pé de areia” que aterrava riacho e mangue na Garça Torta

Após parar trator, grupo também cavou areia facilitando reencontro da água do mar com o rio.
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População se reuniu para impedir trator e depois retirar areia, auxiliando água do rio encontrar com mar. Foto: Wanessa Oliveira

Um grupo de moradores, pescadores, e banhistas locais impediu a continuidade de uma ação de aterramento dos manguezal e do Riacho da Garça, nesta segunda-feira, 31. Ao avistar os tratores levando bancos de areia para aterrar o riacho e formar um ‘paredão’ no mangue, as pessoas logo se organizaram para impedir a ofensiva.

A ação de soterramento foi feita por condôminos do residencial de luxo Morada da Garça, que estavam incomodados com o avanço do mar dentro do condomínio – o que, segundo ambientalistas e protetores das águas que fazem parte da comunidade local – é uma consequência da própria ação humana concretizada, desta vez, a partir do momento em que o condomínio foi erguido sobre um manguezal.

Banco de areia foi arrastado para mangue por intervenção. Foto: Wanessa Oliveira

O mestre de capoeira, Denis Angola, que também realiza um projeto ambiental de limpeza do mangue no litoral norte, relata ter sido um dos primeiros a ver o crime ambiental em curso, embora as práticas de inserção de areia no local já tenha iniciado há mais de dez dias. “As pessoas perceberam que a maré estava alta, e estava corrompendo o espaço dentro desse condomínio Morada da Garça. E aí, a partir do dia 20, percebemos que estavam pegando areia e criando uma barreira que formava um ‘muro’ nas margens do mangue”, conta.

Moradora da Guaxuma, Dilma Ferreira relata que estava passeando com seu cachorro, nesta manhã, quando avistou os tratores arrastando as bancadas de areia sobre o rio. “Quando vi, eu me assustei, e perguntei o que estavam fazendo. Estavam colocando a areia para soterrar o rio e o mangue todo. Fecharam aquilo ali, tudinho”, narrou.

Segundo o grupo, embora nos dias anteriores, estas práticas ocorressem de forma gradativa, nesta manhã, a ação foi mais extensiva “Hoje resolveram abrir um caminho de areia mais à frente, que foi para o rio ter um encontro com o mar só lá na frente, e aqui queriam aterrar todo esse espaço”, conta, mostrando o riacho, que ainda se encontrava – por volta das 15h – com alguns bancos de areia. “Nesse processo, a gente entendeu que poderia interromper. Então se juntou um coletivo na hora de pessoas. Fomos eu, moradores daqui da Garça e outras pessoas que não são daqui, mas que sentiram necessidade de mobilizar. Ficamos aqui tentando parar, dialogar com a pessoa que estava à frente desse processo. Com o tempo depois, a gente conseguiu parar o trator. O trator foi embora e a gente continuou aqui”, explica.

A Mídia Caeté tentou entrar em contato com representantes do Condomínio Morada da Garça através de números disponíveis de forma pública, no entanto, até a publicação desta matéria, não houve retorno. O condomínio está inscrito sob o CNPJ 16.502.143/0001-31.

População sentou em caminho de trator para impedir continuidade do aterramento. Imagem: Reprodução/ Vídeo Dênis Angola
‘Muro de areia’ foi feito para aterrar parte do riacho. Imagem: Reprodução/ Vídeo Dênis Angola

Ao perceberem que, quando a maré enchesse, a água do mar poderia reencontrar de volta o rio, decidiram impulsionar uma “ajuda” à natureza. Foi nesse momento que, com as próprias mãos, começaram a abrir brechas na barreira de areia. Dilma conta como aconteceu. “ Eu fui abrir com a mão, aí foi chegando mais gente, e todo mundo foi ajudando a cavar o rio de novo, e aí a água graças a Deus foi tomando conta de tudo, de novo. Mas ali foi tudo aberto com a mão de novo”, contou Dilma Ferreira.

O que o IMA autorizou

O cenário de um crime ambiental em curso sobre o rio e a área de mangue foi um susto para todas as pessoas que estavam no local. A surpresa foi ainda maior para alguns moradores quando receberam a informação de que o IMA havia autorizado aquela ação. Eles contam que o informe foi trazido pela pessoa que representava a Morada da Garça e estava coordenando as ações com o trator. A ecóloga e arqueóloga Marisa Beltrão, que estava no local relata a situação. “Disseram que isso tem autorização prévia que não foi vista. Depois foi passado pelo IMA um número, que tivemos acesso, mas não indica que exista uma autorização formal, porque a autorização que eles têm não exime de outros estudos. Tem condicionante nessa autorização, estudos, projeto”. conta. “Trata-se de abertura do rio, e está sendo tudo soterrado, o manguezal, e a biodiversidade junto a ela. A gente tem 80% dessa área que já foi soterrada. Já estamos vendo a consequência da maré”, relata.

A presidente da Associação de Moradores dos Loteamentos Gurguri e Guaxuma, localizados ao lado da Morada da Garça, conta ter sido acionada por outros moradores do condomínio sobre a situação. “Acionei o IMA que veio e embargou, mas isso depois da população já ter parado com o corpo”, conta.

O grande questionamento de todos é como o Instituto do Meio Ambiente teria autorizado esse tipo de ação. Foi então que receberam a confirmação de que havia uma prévia autorização de “Retificação da Foz do Riacho da Garça para seu curso predominante, localizado na Praia de Garça Torta, Maceió/AL”. O documento, de número 2023.30065976713.AUT.IMA, aponta para um parecer técnico e traz uma série de condicionantes.

Trecho de autorização do IMA.

Procurado pela Mídia Caeté, o Instituto enviou a seguinte nota:

“O Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA/AL) recebeu uma solicitação de um condomínio para promover a reabertura do leito preferencial do riacho de Garça Torta, cuja foz estava se precipitando cada vez mais ao Norte. Isso estava causando grave processo erosivo na vegetação de restinga situada à frente do condomínio, criando assim uma escarpa de 2 metros e ameaçando a estrutura dos imóveis. O avanço também estava provocando impactos ao meio ambiente marinho e costeiro adjacentes. Devido a essa situação, foi autorizada a reabertura da foz do rio no seu curso preferencial. Vale ressaltar que não foi autorizada qualquer intervenção no manguezal nem o fechamento do leito do rio. No entanto, o IMA vai enviar uma equipe ao local para verificar se os termos da autorização estão sendo cumpridos.”

Ainda assim, para o coletivo que impediu a continuidade do soterramento, mesmo essa autorização já não deveria ter acontecido. “Essa história é antiga. Esse condomínio, quando foi criado, foi feito um paredão na lateral do rio, estreitando esse rio. Quando choveu, a maré encheu e correu toda para o nosso loteamento. Metade das casas ficou alagada. A Prefeitura veio depois, limpou o rio e afundou um pouco mais, e não vinha acontecendo mais nada. Até que agora a água começou a entrar mais nesses condomínios” explica Lindair de Morais Amaral. “A natureza muda a posição do deságue entre um pedaço e outro, pelas próprias marés que trazem e levam areia. Então agora o rio foi para a porta deles, logo na saída para a praia. Aí resolveram com pedido no IMA para colocar o rio em outro curso. E absurdamente conseguiram”, conta.

Para a comunidade local, o mínimo a ser exigido para uma intervenção desse nível, seriam estudos de impacto ambiental e consulta a população. “Como alguém autoriza uma mudança na foz? A Morada da Garça invadiu o mangue, e houve autorização, mas onde tem água por baixo, não há o que segure. A natureza vai comendo. E agora a ideia deles é aterrar o mangue, além de tudo privatizando o litoral norte. É uma invasão totalmente errada e predatória”, conta.

Os protetores somos nós

É dessa forma que, sem amparar muita expectativa no Instituto do Meio Ambiente (IMA), foi a comunidade local quem reagiu de forma imediata e, de fato, evitou o pior. “Se não fosse essa ação do pessoal da Garça Torta, com pessoas de fora, as redes sociais que fomos publicando, a gente não teria conseguido”, diz Dênis Angola. “Foi uma ação efetiva e muito dinâmica. A gente precisava ter ação muito rápida, porque, do contrário, amanhã ou depois já não conseguiríamos fazer esse rompimento aqui. Já teria sido soterrado”, conta.

Denis Angola foi um dos primeiros a chegar ao local e ver a bancada de areia. Foto: Wanessa Oliveira

Com a água voltando a escolher para onde irá, a população local também reafirma o lugar de proteção. “Agora a natureza está tomando o seu percurso, que é o que a gente pretende que aconteça futuramente aqui. Porque aqui é o mangue, ele tem encontro com rio, que as vezes é em um lugar, as vezes é em outro, mas é o rio quem decide, e assim a natureza vai se organizando”, diz.

Por outro lado, acrescenta Dênis Angola, quando as consequências partem de ações humanas, são vários os impactos causados. “Quando o homem interfere, é outra problemática, porque a gente não sabe o que pode acontecer. É prejudicial para os moradores daí, para as pessoas que vem aqui e que não tem acesso a mangue. O mangue provavelmente não teria acesso mais à água, e iria morrer, porque mangue precisa de muita água e esse aqui já foi muito prejudicado”, diz

Após toda  a ação, os moradores decidiram permanecer em vigilância. Dilma Ferreira reforça: “Não vamos deixar que o rio suma, não. O rio é nosso, é da natureza. Nós não vamos permitir que isso aconteça. Se tiver de dormir aqui, nós vamos dormir e acampar, mas não vamos deixar que aconteça”.

Dilma Ferreira: “não vamos deixar que o rio suma”.

Já a pescadora Luciana Souza não esconde a revolta em ver o ataque evidente à natureza. “Olha eu acredito que o que está acontecendo aqui é uma autorização em cima de forças, de poderes, de quem tem dinheiro. Se a natureza é protegida pela lei, pela justiça, como ela é prometida desse jeito? Aqui é vida, minha gente. Aqui tem caranguejo, xié. Aqui tem vida. O senhor que solicitou a obra disse que ‘água não é vida’. Como água não é vida se a gente só vive se tiver água? Então ele disse um absurdo desse. Ele fala o que ele não sabe”, conta.

 

 

 

A pescadora também identifica que as ações não correspondem ao ato que estão afirmando. “Estão mudando o rumo do rio? Não. Estão aterrando o rio. Um rio que existe há quantos anos? Há mais de 200, 300 anos. E eles chegaram um dia desses, acharam pouco aterrar metade do manguezal, que o condomínio Morada da Garça foi feito em cima do manguezal da Garça. Existem fotos, moradores de mais de cem anos reconhecido que essa área toda era manguezal. Eles mataram, aterraram um manguezal para fazer um condomínio, porque eles têm dinheiro”.

Por fim, Luciana Souza reforça que a população deve assegurar a proteção à natureza. “A natureza tem também os protetores dela, que é a população que ainda precisa da natureza para sobreviver. A gente sobrevive da pesca. Não sobrevive de escritório que nem eles, não. A gente sobrevive da natureza, então a gente precisa que respeitem a natureza”.

 

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