Com apenas três delegacias especializadas em crimes contra as mulheres, denúncias são ainda mais entravadas

Apenas uma delegacia funciona 24 horas; as demais atendem apenas em horário comercial; carência de unidades no interior também chama a atenção
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Na última quinta-feira (07), o Fórum Nacional de Segurança Pública (FNSP) lançou um relatório fruto de um estudo sobre os crimes de feminicídio ocorridos em 2023. Para além dos números, o documento aponta um aspecto negativo: “apesar do enfrentamento à violência contra a mulher ter sido um tema importante na campanha de 2022, nem todos os governadores têm dado a atenção necessária ao tema”. Em Alagoas, por exemplo, há somente três  delegacias especializadas, sendo duas localizadas em Maceió e uma em Arapiraca. Destas três, apenas uma delas  funciona 24 horas – conforme a lei – enquanto as demais só atendem em horário comercial. Além disso, foram instalados “núcleos” em outras três delegacias regionais situadas em Delmiro Gouveia, Maragogi e São Miguel dos Campos.

Nos outros municípios onde não há delegacia especializada ou núcleo, a vítima é orientada a se dirigir a qualquer delegacia da cidade ou realizar as denúncias por canais digitais ou por ligação.

Para a advogada Alana Berto, o pequeno montante de delegacias distribuídas pelo estado pode desestimular que as vítimas denunciem seus agressores. “Isso deixa as mulheres ainda mais vulneráveis. Sem falar na falta de estrutura, uma vez que muitas vezes não tem os equipamentos necessários para realizar oitivas, entre outras coisas”, complementou.

Em 2023, AL registrou decréscimo no número de feminicídios registrados

De acordo com o FNSP, entre março de 2015 -ano em que passou a vigorar a Lei 13.104/2015 – e dezembro de 2023, o Brasil registrou 10.655 homicídios de mulheres. Em uma análise mais detalhista, o FBSP explana que, entre os anos de 2022 e 2023, houve crescimento de 1,4% na taxa de feminicídios no país: somente no ano passado (2023), 1463 foram mulheres foram vitimadas pelo feminicídio Brasil afora.

No âmbito nacional, alguns dados apresentados no relatório do FNSP mostram motivos de orgulho para o Nordeste; ao lado do Sul e do Sudeste, a região nordestina registrou números de feminicídio abaixo da média nacional. O documento elucida que a média foi de 1,4 vítimas de feminicídio para cada 100 mil mulheres, enquanto o sudeste e o sul apresentaram, respectivamente, 1, 2 e 1,5.

Em Alagoas, no ano de 2023 – ainda segundo dados do Fórum – foram registradas 19 mortes, o que representou um decréscimo em relação a 2022, quando foram contabilizados 31 casos. Em termos percentuais, houve uma baixa de – 38,7% nos casos registrados.

No entanto, especialistas atentam ser pertinente lembrar que os casos de feminicídio são a expressão máxima dos diferentes tipos de violências praticadas contra as mulheres. Conforme pontua a professora e advogada Lyvia Salles, em 2015, quando a legislação sobre feminicídio passou a vigorar, a violência psicológica não integrava o rol de crimes contra as mulheres; foi apenas em 2021, com o advento da Lei nº14.188 de 28 de julho de 2021 que “foi definido o programa de cooperação sinal vermelho contra a Violência Doméstica como uma das medidas de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher”, a referida legislação refletiu diretamente na Lei 11.340 de agosto de 2006 – conhecida popularmente como Lei Maria da Penha. A advogada explica que “pela lei Maria da Penha a gente tem 5 formas de violência: física, psicológica, moral, patrimonial e sexual.

Para Lyvia, a introdução da violência psicológica na legislação, como uma das formas de agressão à mulher, foi de fundamental importância para a culpabilização de agressores que antes poderiam passar desapercebidos. “Acredito que foi fundamental, pois nunca vi nenhuma violência contra a mulher acontecer sem ser precedida ou acompanhada da violência psicológica”, disse.

Conforme pode-se extrair desta breve retrospectiva histórica sobre as alterações legislativas, fica evidente o progresso nas legislações à medida que cada vez mais as nuanças dos tipos de violência contra as mulheres são desmascaradas. Dados e mais dados são lançados em matérias jornalísticas, no intuito de oferecer informações precisas, todavia para avançar nos debates é preciso “descortinar” os números e jamais tomar como referências casos concretos isolados, ainda que no contexto histórico jurídico eles assumam um papel importante no quesito de mobilizar a sociedade para discussões sobre a temática – intrinsecamente ligada ao machismo estrutural –  e criar precedentes que virem jurisdição.

Exemplo contundente da afirmação acima é as criações da lei 11.340 (2006), que homenageia Maria da Penha Maia Fernandes, ativista pelos direitos das mulheres e farmacêutica que, em 1983, foi covardemente agredida por seu marido à época, o economista Marco Antônio Heredia Viveros. O agressor simulou um assalto e tentou matá-la friamente com um tiro contra sua coluna (pelas costas). Mesmo após o ocorrido, Maria voltou para a residência do casal, onde foi mantida em cárcere privado e passou por outra tentativa de homicídio: desta vez, ela foi vitimada por um choque elétrico intencional, também praticado por Marco Antônio. De acordo com matéria publicada no site do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF), “receosa de perder a guarda das filhas se saísse de casa (sob alegação de abandono do lar), Maria ingressou na Justiça para se afastar legalmente da casa e garantir seus direitos, sendo apoiada por famílias e amigos”

A importância da Denúncia: reportar casos de violência contra a mulher pode prevenir feminicídio

A trajetória de Maria da Penha deixa claro que o subsidio da Justiça e o apoio familiar são decisivos para que a mulher encontre forças para enfrentar o processo; conforme explica a advogada e professora universitária Lyvia Salles – uma das pesquisadoras entrevistadas pela Mídia Caeté para esta entrevista – “o processo é árduo, uma vez que a vítima – de forma pregressa – já possuiu um relacionamento afetivo com o agressor. “

Segundo explica a advogada Alana Berto “muitas coisas têm mudado no ordenamento jurídico, mas ainda tem muito a mudar. Antes da Lei do feminicídio, o Código penal foi alterado, o que faz com que haja uma qualificadora do crime de homicídio. Além disso, o feminicídio passa a ser crime hediondo. Por isso, essa lei é de extrema importância para impedir que mulheres sejam assassinadas por serem mulheres. Para que os homens que praticam violência doméstica fiquem cientes de que somos vidas e as nossas vidas precisam ser preservadas. Mas ainda morrem muitas mulheres vítimas deste tipo de crime, pois além de leis que nos protejam,  é preciso mudar a mentalidade social de que homens mandam no lar, que é natural o homem ser agressivo”.

Para a advogada, “é preciso educar homens para que eles aprendam a respeitar as mulheres e seus espaços. Como operadora do direito acredito que é essencial a existência de normas que nos protejam, mas a mudança nos costumes sociais também são de grande relevância, disse.

Até fevereiro de 2024, o Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ-AL) registrou mais de 700 pedidos de medida protetiva

Recentemente, um dado compartilhado pelo Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ-AL) chamou a atenção: é que até o dia 20 de fevereiro de 2024 foram solicitadas 729 medidas protetivas por mulheres contra agressores. Neste mesmo período, em 2023 o número era bem menor, já que este ano são 239 pedidos a mais.

Ainda conforme explica a advogada Lyvia Salles “as medidas protetivas foram criadas pela lei maria da penha, com o objetivo de dar uma proteção maior à mulher. Muitas vezes embora exista uma denúncia, o agressor continua tendo contato com a vítima, então a ideia é encorajar a mulher a seguir nos processos”, conta.

Lyvia explica que “quando há uma medida judicial, em regra, os agressores tendem a respeitar, a gente vê todos os dias que há quem desrespeite, talvez pudesse ter um mecanismo maior de proteção, para que estas mulheres pudessem se sentir mais seguras nos processos, pois essas mulheres já tiveram um dia uma relação de afeto com esses agressores. A ideia é que se existe a quebra da medida protetiva o autor pode até ser preso, isso gera a possibilidade de ele não continuar, existem também outras formas que  a Justiça tem adotado, como grupo de homens agressores, agora o fato que se observa no grupo é que estes homens chegam achar até absurdo estarem ali”, compartilhou.

O perfil dos agressores e o perfil das vítimas  

Ainda de acordo com o relatório do Fórum, “em relação ao perfil étnico racial, há uma prevalência de mulheres pretas e pardas entre as vítimas: 61,1% eram negras, 38,4% brancas, 0,3% amarelas e 0,3% indígenas”, inclusive, conforme explicitado na Lei de Acesso à Informação, dos 19 feminicídios ocorridos em AL, 15 foram de mulheres negras.

O documento também afirma que “em 73% dos casos, o autor da violência é um parceiro ou ex-parceiro íntimo da vítima. 10,7% das vítimas foram assassinadas por familiares, enquanto 8% dos casos foram perpetrados por outros conhecidos”; um exemplo recente deste tipo de caso ocorreu no último dia 25 de fevereiro, quando a vendedora Valkíria de Brito Cavalcanti (40) foi morta pelo ex-companheiro no seu local de trabalho e no dia do seu aniversário. De acordo com informações repassada por amigos e familiares, o guarda municipal Edvaldo Bemvindo Silva, de 52 anos, não aceitou o fim do relacionamento. Após matar a ex-companheira, Edvaldo se suicidou.

A Mídia Caeté tentou contato com a delegada Ana Luiza Nogueira, que atua como coordenadora das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher (DEAM´S), mas até o fechamento desta reportagem não obteve êxito.

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