“Tão violento quanto prender; tão arbitrário como no tempo da ditadura”

Assédio judicial de políticos alagoanos contra jornalistas chega a assustar, mas sai pela culatra
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Foi a primeira vez, em pouco mais de quatro anos após a criação de seu portal 082 Notícias – e 63 anos de vida, como faz questão de frisar – que o historiador e jornalista Geraldo Majella vivenciou o que antes só conhecia por leitura e experiências de colegas. O indigesto sabor da censura aconteceu no dia 15 de março deste ano, quando recebeu uma intimação ordenando que tirasse do ar, em até 24 horas, uma publicação de seu portal. A ordem judicial também impunha uma multa de R$ 10 mil reais ao responsável pelo site.

A matéria em questão – que agora você pode ler na íntegra clicando aqui – fazia uma crítica à decisão do prefeito de Maceió, João Henrique Caldas (JHC), do PL, de investir R$ 8 milhões na apresentação de uma escola de samba do Rio de Janeiro (RJ), enquanto virou as costas completamente para artistas locais. Textos semelhantes foram produzidos em diversos outros sites, inclusive nacionais, mas Majella foi o “sorteado” para enfrentar a decisão judicial. A decisão que acolheu a tese do prefeito veio da juíza Isabelle Coutinho, da 30ª Vara, Cível da Capital.

Apesar do susto, o jornalista recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF), através do advogado Aldo Reis, e o ministro Cristiano Zanin terminou por derrubar a liminar que determinava a retirada da matéria do site. Na decisão, Zanin retrata: “verifico que existe interesse jornalístico no relato em questão, pois se refere à utilização de recursos da Prefeitura, com eventos culturais fora de seu território”, ao tempo em que atenta como a decisão em primeiro grau afronta o que é descrito na ADPF 130/DF .

“No caso em apreço, as liberdades de expressão do reclamante e de informação de seu público foram colocadas em segundo plano em relação ao direito de imagem do beneficiário do ato reclamado, invertendo-se o regime de prioridade que ficou estabelecido no acórdão da ADPF 130/DF para essas gamas de direitos fundamentais.”

Não é a primeira vez que João Henrique Caldas tenta silenciar a imprensa. Em 2016, quando deputado federal, JHC foi apontado por enriquecimento ilícito e questionado por Chico Góis sobre como dobrou o patrimônio em seis anos de carreira política, de R$ 1,5 milhão para R$ 3 milhões. O então parlamentar não só decidiu não emitir qualquer resposta, como ainda processou o jornalista – que descreve mais detalhes sobre as indagações no livro “Os ben$ que os políticos fazem”. Uma das perguntas que ficou sem resposta é como JHC, ainda estudante, possuía um patrimônio maior do que o próprio pai João Caldas – ex-deputado condenado por improbidade administrativa em 2014, pelo que ficou conhecida como ‘Máfia das Ambulâncias”.

A Mídia Caeté procurou o prefeito, por meio de assessoria de imprensa, mas até a publicação desta reportagem, não obtivemos nenhuma resposta.

A tradição de silenciar jornalistas também não é exclusividade de JHC em Alagoas. Em 2023, o prefeito de Palmeira dos Índios, Júlio Cézar (MDB) – que também é jornalista – ajuizou ação de danos morais contra o jornalista Berg Morais, do site AL-102, alegando que sua matéria intitulada “Prefeitura de Palmeira dos Índios também adquiriu kits de robótica de empresa investigada pela PF“ tratava-se de uma “fake news”. Segundo matéria do jornalista Kléverson Levy, que você pode ler na íntegra clicando aqui, a juíza Luana Cavalcante de Freitas não concedeu a indenização, entendendo que Morais não excedeu em sua liberdade de expressão e que, “em que pese a utilização de redação provocadora no texto informativo, a publicação narrou um fato ocorrido, de modo que sua divulgação não demonstra o intuito de difamar, injuriar ou caluniar a pessoa do autor”, decidiu Luana Cavalcante de Freitas.

Em julho deste ano, a Mídia Caeté noticiou quando o deputado federal Arthur Lira (Progressistas-AL) partiu para ofensiva judicial contra jornalistas, impetrando ações na Justiça do Distrito Federal contra a Agência Pública e o Instituto Conhecimento Liberta (ICL). Organizações e entidades confrontaram a ação de Lira, identificando como um ataque direto à liberdade de imprensa.

Na reportagem da Agência Pública “Ex-mulher de Arthur Lira o acusa de violência sexual” – que você pode ler na íntegra clicando aqui – a jornalista Aline Maciel analisou o processo judicial, publicou laudo médico, ouviu a vítima e diversas testemunhas, buscou o delegado, peritos, obtendo inclusive declaração da delegada que ouviu as testemunhas.

Prefeito João Henrique Caldas e deputado federal Arthur Lira protagonizaram casos de processo contra jornalistas no último ano. Imagem: Arthur Lira / X

Finalmente, o veículo também registra ter buscado Arthur Lira, por meio de assessoria de imprensa, mas o parlamentar optou por não responder sobre as denúncias e o conteúdo apresentado. A reportagem também informa como Lira foi inocentado nove anos depois pelo Supremo Tribunal Federal (STF), já deputado federal, inclusive trazendo detalhes sobre o entendimento dos ministros de que havia ausência de provas e prescrição relacionada à demora para apresentação da denúncia.

Ao invés de exercer democraticamente seu direito de resposta, ofertado pela própria reportagem da Agência Pública, Arthur Lira partiu para a ação no Distrito Federal, requerendo a imediata exclusão das reportagens e busca indenizações no valor de R$ 100 mil para o veículo.

Já para o ICL Notícias, o objeto da ação que tramita na 24ª Vara Cível trata-se de um programa do Instituto que comentava sobre as denúncias de propina por vaga na CBTU; envolvimento de um assessor de Lira em compra superfaturada de kits de robótica, e, finalmente, sobre uma entrevista feita também à ex-mulher de Lira, com as acusações de violência.

Além da retirada das reportagens e da indenização de R$ 300 mil, Lira ainda solicitou a retirada de 47 vídeos dos canais na internet, a desmonetização do veículo pelo YouTube por 90 dias e até mesmo a proibição de futuras publicações sobre o assunto. Para acessar o canal do ICL, clique aqui. Durante a reportagem, a Mídia Caeté procurou o parlamentar, através de sua assessoria de imprensa, mas não obtivemos respostas.

Pequenas e médias organizações jornalísticas são as que mais sofrem

Procurada pela reportagem da Mídia Caeté, a Diretora de Relações Institucionais da Associação de Jornalismo Digital, Carla Egydio, descreve como o assédio judicial tem obstruído o trabalho da imprensa.

“O assédio judicial contra a imprensa é uma estratégia de uso do poder judiciário com a finalidade de intimação e perseguição de  jornalistas e organizações jornalísticas para inviabilizar o exercício da atividade jornalística. Dados do projeto Ctrl+X, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), registraram mais de 6 mil casos em que houve tentativa de cerceamento de um conteúdo jornalístico pela via judicial nos últimos dez anos”, relata.

No dia 24 deste mês, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo deve também  lançar o Monitor de Assédio Judicial contra Jornalistas, que já reunirá um banco de dados de 2009 a 2024.

Egydio também analisa como os impactos do assédio judicial são ainda mais graves contra os pequenos e médios veículos jornalísticos e possuem também alguns alvos definidos.

“O assédio judicial é uma realidade que atinge todo o ecossistema jornalístico brasileiro, no entanto, as pequenas e médias organizações jornalísticas são as que mais sofrem, dado os altos custos de responder a um processo judicial. Além disso, é importante lembrar que aqueles que produzem conteúdo local e regional, cobrem direitos humanos, meio ambiente, violência policial e as jornalistas mulheres estão ainda mais expostos ao assédio judicial, assim as medidas adotadas devem ter em consideração tais recortes para que garantam a liberdade de imprensa de todo o ecossistema jornalístico”.

Geraldo Majella conta que considera a decisão esdrúxula, mas é possível identificar suas raízes dentro da história. “A violência durante a ditadura não era apenas física, mas também psicológica. Você viola direitos fundamentais da imprensa e também os direitos dos cidadãos à livre expressão. Como jornalista, historiador e fundador do site, considero esse ato tão violento quanto prender, e tão arbitrário quanto no tempo da ditadura”, comentou.

Majella prossegue relembrando que a matéria em questão não tem expressão de ofensa a honra, mas trata-se de uma crítica à administração. “E é uma crítica que dezenas de blogs e sites fizeram, pois foi algo que chamou atenção da mídia nacional, e ele me escolheu como alvo. Tenho posição política completamente diferente, mas nada pessoal contra ele”, relata. “Além do mais, é calculado, porque eles pegam só veículos independentes, mas o advogado que me defendeu apontou a aberração e o quanto é infundada a alegação, por isso agradeço também seu trabalho e empenho”.

A auto-censura também está descartada pelo historiador, que também. “Não me assombrei com isso. No fundo, auto-censura é você ser intimidado. Como nosso jornalismo é responsável e não há denúncia que não estejamos calçados, seja em depoimento ou documentação, vamos continuar fazendo”, conta.

Nesse sentido, mais um trunfo é identificado: como a repercussão da ação gerou reações solidárias. “Um detalhe que eu também não tinha percepção é do grau de solidariedade que temos recebido. Tanto de vídeos de pessoas se manifestando, como as campanhas de sustentabilidade que vem sendo publicada nos sites. Perdemos clientes, tivemos despesas, e foi importante receber toda essa campanha nas redes sociais e receptividade”.

Para além de uma reverberação no entorno das mídias afetadas pelas ações judiciais, quem perde também é a sociedade. “Devemos lembrar que a garantia da democracia no Brasil passa pela liberdade de imprensa, que é um importante instrumento para o acesso à informação e efetivação de direitos da população. Assim, proteger a imprensa é, também, atuar pelo fortalecimento da nossa democracia”, atentou a diretora da Ajor.

Para Egydio, é importante ainda que essa proteção se consolide enquanto política do Estado brasileiro. “O Brasil precisa dar respostas efetivas para limitar o assédio judicial contra jornalistas e organizações jornalísticas e efetivar a liberdade de imprensa prevista na Constituição. Para tanto, os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário precisam, na medida das suas atribuições, garantir a prática do exercício da atividade jornalística e punir aqueles que utilizam essa estratégia de intimidação. Nesse sentido, é importante que o Observatório Nacional de Combate à violência contra Jornalistas e Comunicadores, criado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública no início de 2023, seja fortalecido e produza diagnósticos e recomendações, bem como que a sociedade civil seja ouvida pelas autoridades na elaboração e implementação de medidas de combate ao assédio judicial”.

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