Custo de vida e dignidade: diálogos com Carolina

"Quarto de Despejo" desponta o debate sobre o custo de vida que escraviza e a especulação que produz a fome. Confira o artigo do sociólogo Lucas Menezes sobre a obra de Carolina Maria de Jesus.
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Carolina Maria de Jesus. Foto: divulgação

No dia 15 de julho de 1955, dia do aniversário de sua filha Vera Eunice, Carolina Maria de Jesus escreveu de forma categórica em seu diário: “somos escravos do custo de vida”. A força da frase se impõe em contexto de uma mãe que se vê atada da “realização dos nossos desejos”. Carolina Maria de Jesus queria comprar um par de sapatos para sua filha. Não podendo diante do custo dos gêneros alimentícios, como atesta, restou a mãe e escritora catar um par de sapatos no lixo. Lavado e remendado, ficaram prontos para o uso de sua filha.

Histórias como essa são recorrentes em “Quarto de despejo: diário de uma favelada”. Publicado em 1960, a autora havia sido apresentada para o mundo editorial pelo jornalista Audálio Dantas, após este tomar conhecimento dos cadernos da escritora enquanto fazia uma reportagem na favela do Canindé, em São Paulo. Os diários publicados de Carolina, cobrindo a segunda metade dos anos 50, exibiam uma realidade cotidiana crua, mas contada com fineza literária e de uma sabedoria popular que explorava o uso de comparações, metáforas e analogias, críticas e ironias.

Paulo Freire nos ensinou sobre a riqueza simbólica da linguagem de trabalhadores do campo ou da cidade, que desenvolvem suas reflexões por meio de metáforas. A então catadora de papel e escritora fazia largo uso deste expediente. O próprio “quarto de despejo” é a metáfora que Carolina usa para descrever a favela e o lugar que a cidade a reserva. Favelada e negra, ela mesma seria uma “despejada”.

Há vários temas e questões que podem ser exploradas da escrita e das ideias de Carolina de Jesus, mas Quarto de despejo ficou conhecido por denunciar as condições duras de vida na favela, tendo a fome um triste lugar cativo. Transversal ao debate está o custo de vida, aquele que escraviza, assim como também a especulação, aquela que produz a fome. Nestes temas nos concentramos.

O custo de vida que escraviza e a especulação que produz a fome

Em uma definição comum, o custo de vida representa o que é pago para o consumo de variados bens e serviços. Abrange uma gama de atividades e itens, não só alimentação, mas também transporte, habitação, vestuário, educação, saúde, equipamentos domésticos etc.

Carolina de Jesus demonstra a pressão que o custo de vida exerce sobre a vida das pessoas, em especial, dos mais pobres. Um custo de vida que tem relação com a especulação de preços, que ceifa sonhos e desejos, que desdenha da vida para flertar com a morte: “ah! o dinheiro! Que faz morte, que faz odio criar raiz” (2014, p.50). No centro do debate está o alimento. Afinal, o relato da realidade que cercava Carolina, e de ainda tantos milhões no Brasil e no mundo, é a luta diuturna por um prato de comida.

Em seu livro-diário que tomamos como referência, persiste um sentimento de ausências e privações. Faltam condições dignas de moradia, faltam sapatos para filhos e filha, falta comida. Das privações e ausências materiais, preenche seu pensamento em questões existenciais. Carolina afirma catar papel, mas lamenta não conseguir catar felicidade. Oscila entre uma vida resignada e um sentimento de revolta. Uma revolta que ela sabe que é justa.

Carolina Maria de Jesus. Foto: Divulgação

A autora expõe uma explicação prática sobre a carestia de vida e a lógica de um sistema econômico que não funciona para suprir as necessidades humanas, pois os “comerciantes insaciáveis” esperam “os preços subir na ganancia de ganhar mais” (p.34). Para Carolina os gêneros alimentícios devem estar “ao alcance de todos”. Sua reflexão é indissociável de sua experiência como mãe: “Como é horrivel ver um filho comer e perguntar: “Tem mais?” Esta palavra “tem mais” fica oscilando dentro do cerebro de uma mãe que olha as panela e não tem mais” (p.38). O ponto fundamental aqui é a mercadorização dos gêneros alimentícios que estimula uma busca insaciável por lucros acima de uma necessidade humana básica.

Valendo-se de uma interessante comparação histórica, afirma:

“Na minha opinião os atacadistas de São Paulo estão se divertindo com o povo igual os Cesar quando torturava os cristãos. Só que o Cesar da atualidade supera o Cesar do passado. Os outros era perseguido pela fé. E nós, pela fome! Naquela época, os que não queriam morrer deixavam de amar a Cristo. Mas nós não podemos deixar de comer.” (p.146)

A escritora negra coloca o tipo de coerção que somos submetidos no sistema econômico vigente. Para os ideólogos do mercado, o capitalismo seria um sistema econômico de “trocas livres e voluntárias”, mas dificilmente alguns destes teriam coragem de defender abertamente suas teses para Carolina ou qualquer outro sujeito sob o peso da fome e do desemprego. Não porque estivessem a pautar outra estrutura econômico-social, mas simplesmente porque sabem, pelo dor da fome e das privações, que estão em condição de submissão social. A ameaça da fome, que só pode se realizar em razão da própria condição da trabalhadora e do trabalhador de não exercerem controle sobre os meios fundamentais de produção, funciona como uma poderosa coerção econômica de sujeição. “Se a gente trabalha passa fome, se não trabalha passa fome”, afirmava (p.129). Não há escolha ou liberdade diante da fome. Ao seu modo, Carolina compreendia as perversas consequências do alimento posto como objeto de comércio para lucros individuais e ao sabor da especulação de preços.

“Hoje eu fiz arroz e feijão e fritei ovos. Que alegria! Ao escrever isto vão pensar que no Brasil não há o que comer. Nós temos. Só que os preços nos impossibilita de adquirir. Temos bacalhau nas vendas que ficam anos e anos a espera de compradores. As moscas sujam o bacalhau. Então o bacalhau apodrece e os atacadistas jogam no lixo, e jogam creolina para o pobre não catar e comer. Os meus filhos nunca comeu bacalhau.” (p.151)

Quando o custo de vida escraviza e a especulação produz a fome, temos uma combinação que deixa em suspenso a própria dignidade humana. Mais do que uma questão de sobrevivência, o acesso ao alimento com qualidade é um processo de humanização: “Tinha arroz, feijão e repolho e linguiça. Quando eu faço quatro pratos penso que sou alguem.” (p.49). Este ponto fica em relevo quando ela por diversas vezes compara a condição do favelado e de desvalidos a uma condição animalesca.

“Passei no Frigorifico, peguei uns ossos. As mulheres vasculham o lixo procurando carne para comer. E elas dizem que é para os cachorros. Até eu digo que é para os cachorros…” (p.105)
“Os favelados aos poucos estão convencendo-se que para viver precisam imitar os corvos.” (p.41)
“Não mais se vê os corvos voando as margens do rio, perto dos lixos. Os homens desempregados substituiram os corvos.” (p.54)

As sobras, o descartável, aquilo que se tornou economicamente inviável, passa a ser disputado por cachorros e corvos, mas também por homens e mulheres à margem do acesso das riquezas e produção sociais. É desta forma que se organiza uma economia que “prefere vê estragar do que deixar seus semelhantes aproveitar” (p.78).

As lágrimas dos pobres não comovem poetas de salão

A relação com as palavras e sua criação literária, fazia a escritora reencontrar nos sonhos e na imaginação a esperança de um amanhã mais reluzente. O próprio brasileiro só seria feliz “quando está dormindo”. Dizia que “quem escreve gosta de coisas bonitas”, porém ela só encontrava “tristezas e lamentos”. Assim, registrava em 12 de junho de 1958:

Carolina durante a noite de autógrafos do livro Quarto de Despejo, em São Paulo. Foto: Divulgação

“Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de pratas e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades. (…) É preciso criar este ambiente de fantasia, para esquecer que estou na favela.” (p.58)

A imaginação operava no pensamento de Carolina não como um ato de fuga da realidade, pois sua escrita era a justa expressão dela. Emergia como uma forma de criação a manter horizontes à vista. Um horizonte de dignidade e humanidade. Sabia que “as trajedias que os politicos representam em relação ao povo” não comovem o que ela chamou de “poetas de salão”. Assim, apesar de sempre expressar uma relação contraditória e conflitiva frente a favela e seus moradores, reconhecia que “as lagrimas dos pobres” só comovem “os poetas do lixo, os idealistas da favela” (p.53).

E se para Carolina era preciso conhecer a fome para saber descrevê-la, que possamos ler e aprender com Carolina de Jesus, ler e aprender com as Carolinas do Brasil. Poetas e idealistas de um Brasil com justiça social.

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