Editorial | Fundamentalistas cristãos: do que eles têm tanto medo?

A Mídia Caeté defende que a capacidade comunicativa deve estar à serviço de potencializar as vozes que enfrentam os intolerantes e fascistas.
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O historiador, escritor e filósofo contemporâneo, Leandro Karnal, afirma em seu livro Todos contra todos: o ódio nosso de cada dia, que “o ódio é gêmeo do medo, e as pessoas com medo cedem fácil sua liberdade de pensamento e ação… O ódio é uma interrupção do pensamento e uma irracionalidade paralisadora. Como pensar é árduo, odiar é fácil. Se a religião é o ópio do povo para Marx, o ódio é o ópio da mente. Ele intoxica e impede todo e qualquer outro incômodo.

O fundamentalismo pode ser religioso, político, partidário, ideológico, mas sempre irracional e avesso à dialética. No Brasil, o termo é usado de maneira equivocada pelos próprios fundamentalistas, que o usam como sinônimo de fé evangélica. A distorção das ideias é de natureza fundamentalista, portanto, não seria exagero afirmar que o “equívoco” é deliberado, intencional e com objetivo único de fomentar a intolerância na forma de preconceito contra tudo aquilo que é diferente da ideologia fanática, própria dos fundamentalistas.

Ao que se sabe, o Brasil figura posição entre os países de maior comunidade cristã no mundo e tem registrado incontáveis casos de intolerância religiosa, com ataques a pessoas de diferentes credos, religiões de matriz africana, como casas de umbanda, e até entre cristãos (católicos x evangélicos). Mas o país, e boa parte do mundo, insiste em tratar a violência cristã como agressões, ou atentados, nunca como terrorismo.

Um ótimo exemplo é o caso de Wellington Menezes de Oliveira. Um jovem de 23 anos e ex-aluno da Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, no Rio de Janeiro. Em abril de 2011, ele invadiu a unidade de ensino, matando 11 estudantes a tiros, mas o caso ficou conhecido como tragédia, massacre ou atendado de Realengo, mas não como ato terrorista cristão. A carta dizia:

“Primeiramente deverão saber que os impuros não poderão me tocar sem luvas, somente os castos ou os que perderam suas castidades após o casamento e não se envolveram em adultério poderão me tocar sem usar luvas, ou seja, nenhum fornicador ou adúltero poderá ter um contato direto comigo, nem nada que seja impuro poderá tocar em meu sangue, nenhum impuro pode ter contato direto com um virgem sem sua permissão, os que cuidarem de meu sepultamento deverão retirar toda a minha vestimenta, me banhar, me secar e me envolver totalmente despido em um lençol branco que está neste prédio, em uma bolsa que deixei na primeira sala do primeiro andar, após me envolverem neste lençol poderão me colocar em meu caixão. Se possível, quero ser sepultado ao lado da sepultura onde minha mãe dorme. Minha mãe se chama Dicéa Menezes de Oliveira e está sepultada no cemitério Murundu. Preciso de visita de um fiel seguidor de Deus em minha sepultura pelo menos uma vez, preciso que ele ore diante de minha sepultura pedindo o perdão de Deus pelo o que eu fiz rogando para que na sua vinda Jesus me desperte do sono da morte para a vida eterna.”

Não poderia ser mais clara a ligação entre religião, fanatismo e ódio. Uma simbiose doentia e que se espalha no Brasil como um câncer. Suas ramificações atingiram a política brasileira, que agora defende o fim da ideologia, sem se aperceber – ou apenas massificando – a ideia de que ideologias são ruins, a menos que seja a sua. Fundamentalismo, autoritarismo e fascismo caminham lado a lado. Mas quando se vive em um país que nega sua história de violência, como é o caso do Brasil, essa tríade apenas ganha nomenclaturas diferentes. Vivemos em um constante estado de negação. Nossas guerras civis são apelidadas de conflitos, revoltas, mas nunca guerra. Nosso racismo é chamado de vitimismo, nossa homofobia não existe, queremos igualdade, mas não somos feministas. Não é à toa que a ignorância é a melhor amiga do ódio.

Naquele ano, o de Realengo, o jornalista Arnaldo Jabor foi um dos poucos da imprensa brasileira que tratou o caso como ‘massacre religioso’, ainda não aderindo a expressão terrorismo, mas conectando o episódio ao fundamentalismo cristão. Em um comentário ele diz: “…com a falência da felicidade no mundo incompreensível de hoje, Deus pode deixar de ser uma fonte de consolo e se transformar num agente do terror. Reaparece o mesmo Deus que queimou milhares de feiticeiras na Idade Média, o Deus do Irã que apedreja mulheres, o Deus que arma os homens-bomba em nome de Alá, o Deus que jogou os aviões contra Nova Iorque. Nos tempos trágicos de hoje, surgiu o Deus da morte.”

Há quem diga que se Jesus voltasse neste século esse seria morto novamente, mas dessa vez “em nome de Jesus”. A guerra cristã tem ares de poder e dinheiro. As igrejas no Brasil são paraísos fiscais. Arregimentar fieis é acumular fortuna.

Mas o que os fundamentalistas cristãos temem tanto? Por que o diferente gera tanto pavor? Qual a ameaça causada pela diversidade? Os fundamentalistas cristãos temem LGBTs, negros, feministas e até o humor? Seria então o medo o sentimento mais preciso? Neste sentido, há dois pontos a se colocar. O primeiro é que práticas de violência fundamentalista ou de terrorismo se colocam historicamente para exercer algum tipo de dominação sobre um território, sobre recursos naturais ou econômicos, ou mesmo sobre o outro, sua religião ou subjetividades. O segundo é que o ímpeto de dominação latente, como aquele “cão do fascismo – este sim, sempre no cio”,  só aguarda o momento certo para se expressar.

Ao  atentar em sua coluna do VioMundo que o fundamentalismo religioso não é por acaso – e sim sinal dos tempos, o jornalista Luiz Carlos Azenha, oportunamente, rememora uma viagem realizada ao Paquistão. Chega em uma das cidades mais violentas, com extrema situação de miséria e concentração fundiária. A esquerda permanecia em declínio, enquanto que os parlamentos possuíam vários partidos religiosos que ascendiam. Um sindicalista entrevistado explicou que os fundamentalistas islâmicos, naquele contexto, ‘sequestraram’ os desejos de mudança da população para uma luta popular religiosa. Azenha conclui o quanto “os partidos fundamentalistas cumprem o papel essencial de naturalizar a desigualdade e desviar o ímpeto por mudanças para questões não econômicas, justamente aquelas que podem ameaçar a elite.”

O contexto retratado por Azenha, no artigo escrito em 2017, registra uma dúzia de famílias na cidade paquistanesa que controlavam 90% da terra e eram beneficiárias da desigualdade e da miséria locais; no mais concluía “que o 1% do fundamentalismo religioso, portanto, não é uma aberração, mas adequado aos tempos em que 1% controlam 90% da riqueza do mundo.”

Como refletir estes pontos para um Brasil de 2019 que (ainda) ouve seus governantes legitimarem discursos de ódio em meio ao crescimento da miséria extrema, que hoje atinge 13,2 milhões de brasileiros (IBGE), e onde a concentração de riqueza aumentou ao ponto de 1% dos mais ricos concentrar 28,3% da riqueza total, segundo o relatório do Desenvolvimento Humano da ONU?

A conjuntura propícia, se não produz, cria oportunidades para o terrorista, para o fascista e mesmo para o nazista. E os três criam oportunidades para o agravamento dessa mesma conjuntura, ao naturalizá-la  e apontar que os problemas são outros – que o problema é o outro, aliás. Ela não só disfarça os reais problemas, como os protegem apocalipticamente – destruindo tudo ao redor.Ainda que o outro seja uma outra narrativa.

Porta dos fundos

Na madrugada do dia 24, a produtora do Porta dos Fundos foi atacada com coquetéis molotovs por um grupo que se autodenomina Comando Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integralista Brasileira. A Polícia Civil rapidamente tratou de descartar a hipóteses de terrorismo, mas o próprio grupo gravou vídeo, de autenticidade já atestada pela mesma polícia, assumindo a autoria do ataque. As imagens lembram aquela usadas por grupos terroristas islâmicos. Os integrantes, além de assumir a autoria, alteram a voz, usam balaclavas e cenários com bandeiras. Eles tentaram atear fogo em uma produtora em razão de um filme de humor que traz um Jesus gay. Um vigilante quase foi atingido. Matar um vigilante pode; atear fogo contra um prédio também é cristão; mas Jesus gay, nem pensar.

O que dizer sobre “amar o próximo como a ti mesmo?” O primeiro mandamento é sobre amar a Deus sobre todas as coisas, só que a igreja ensina que se trata de amar a Deus no próximo, através do nosso irmão, na semelhança Dele. Amar a todos, a todos perdoar, a todos servir e a ninguém excluir. Santo Agostinho define o amor por Deus como “um conflito entre dois amores: o amor de Deus impelido até o desprezo do amor em si e o amor em si, impelido até o desprezo do amor de Deus. Há uma ideia desvirtuada entre fundamentalistas católicos e evangélicos de que o próximo para ser amado precisa ser hétero, branco, cristão, de direita e por aí vai… O fundamentalista cristão no Brasil é elitista, preconceituoso, violento e se apodera da desfaçatez de acusar os outros daquilo que na verdade ele próprio é. O fundamentalista cristão é, sobretudo, hipócrita e egoísta. Seu ódio pelo diferente nasce da sua ganância por espaço na sociedade, por posições sociais, por riqueza e poder. Entre esse medo e esse ódio, o fundamentalista cristão não notou que é pobre, muito pobre, paupérrimo de espírito.

A mídia Caeté lamenta que alguns ainda usem o nome de Jesus para espalhar ódio, intolerância e medo. Mas lamentar ainda é pouco. Não nos furtaremos de reportar tais atos e os chamaremos sempre por seu nome. E, neste caso, é de terrorismo cristão que se trata.

Acreditamos que é dever da Mídia Caeté instrumentalizar nossa capacidade comunicativa a serviço de potencializar as vozes que enfrentam todos os dias os adoradores da dominação, intolerantes, fascistas e terroristas religiosos. Defender a democracia e a pluralidade e respeitar a complexidade de uma realidade que não é simples é, além de nosso dever, uma forma de honrar o nome que trazemos.

 

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