Especialistas condenam PEC apoiada por deputado alagoano que prevê fim do Ministério Público do Trabalho

Especialistas alertam para os riscos e se mostram contrários aos pontos levantados pelo projeto, que tem apoio do deputado federal Delegado Fábio Costa (PP-AL)
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Por mais absurdo que possa ser, o Brasil ainda tem se deparado com diversas denúncias de situações análogas à escravidão.

Nesse contexto, o deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PL-SP) está recolhendo assinaturas em Brasília para aprovar uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que pretende extinguir o Ministério Público do Trabalho (MPT) e outras cortes de Justiça especializadas na área trabalhista. O MPT é – entre outras atribuições – responsável por investigar e combater o trabalho escravo no país.

Entre os parlamentares que assinaram o projeto, está o deputado federal Delegado Fábio Costa (PP-AL). Para PEC ser apresentada ao Congresso Nacional, é preciso 171 assinaturas, já para ser aprovada, é necessário o apoio de três quintos do parlamento.

Além de Fábio Costa, mais 66 parlamentares são favoráveis à PEC, com forte apoio de integrantes da bancada da Bíblia, da Bala e do Boi: Coronel Ulysses (União-AC), Capitão Alberto Neto (PL-AM), Capitão Alden (PL-BA), Delegado Caveira (PL-PA), Cabo Gilberto Silva (PL-PB), Coronel Meira (PL-PE), Sargento Gonçalves (PL-RN), Delegado Ramagem (PL-RJ) e o Pastor Marcos Feliciano (PL-SP).

CONFIRA LISTA COMPLETA

Deputado é um dos apoiadores da PEC. | FOTO: Câmara dos Deputados.

O QUE DIZ O DEPUTADO FÁBIO COSTA?

A Mídia Caeté entrou em contato com o deputado federal que, por meio da sua assessoria de imprensa, encaminhou uma nota. Segue abaixo na íntegra.

“As notícias que têm circulado desde ontem na mídia apresentam uma visão deturpada da PEC proposta pelo deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança. A proposta em questão trata da reforma do Poder Judiciário, fundamental para o crescimento do nosso país.

Atualmente, temos três justiças especializadas: a Justiça do Trabalho, a Justiça Eleitoral e Justiça Militar.

O texto apresentado simplesmente transfere as competências das Justiças do Trabalho e Eleitoral para a Justiça Federal, que terá sua competência ampliada.

Explico: se a medida for aprovada, as ações trabalhistas passarão a ser julgadas pela Justiça Federal, preservando, portanto, todos os direitos trabalhistas assegurados, inclusive, pela Constituição Federal.

Reforço meu comprometimento com o trabalhador e repúdio ao trabalho escravo”.

Nomeada como “Reforma Geral do Judiciário” pelos seus adeptos, a proposta prevê a extinção da Justiça do Trabalho, a transferência da responsabilidade pelas eleições para o Congresso Nacional – com suporte da “Autoridade Nacional Eleitoral” (que seria fundada com a reforma) – e a ampliação das competências da Justiça Militar.

O advogado trabalhista Marcos Rolemberg faz questão de lembrar que o MPT desempenha inúmeras funções cruciais para sociedade, além do combate ao trabalho escravo. 

“O Ministério Público do Trabalho tem muitas outras atribuições fundamentais. Por exemplo, quando uma empresa pratica assédio moral ou é um ambiente nocivo para os trabalhadores é o MPT quem vai atuar para cobrar melhorias nas condições de trabalho dos empregados. É dever do MP intervir como fiscal da lei e proteger o interesse dos trabalhadores”, explica.

O advogado continua sua fala demonstrando repúdio ao tópico proposto pela PEC:

“É uma aberração sem tamanho um legislador (deputado federal que jurou seguir a Constituição ao assumir o mandato) propor a extinção de um órgão que é instrumento de proteção dos direitos de toda a classe trabalhadora do país. A Constituição Brasileira tem um capítulo inteiro reservado para a proteção ao trabalho. Extinguir o MPT é rasgar com toda a violência ela e os direitos sociais previstos no art. 7°, que faz parte do núcleo considerado o coração da Constituição”.

A também especialista em Direito Trabalhista, Lauana Neri, entende que o judiciário como um todo precisa de uma reforma, mas reforça a importância da Justiça do Trabalho, que sempre foi pioneira no Brasil, se mostrando bastante célere para atender o bem comum, segundo a advogada. Lauane ressalta ainda a atribuição do MPT de fiscalizar o cumprimento da legislação trabalhista.

“O Ministério Público do Trabalho exerce um papel importantíssimo na vida do trabalhador. Entre as suas diversas atribuições, ele pode instaurar inquéritos e outros procedimentos administrativos, notificar as partes envolvidas, averiguar as condições dos postos de trabalho e abrir uma denúncia caso haja, de fato, uma violação dos direitos”, pontua.

A advogada também se mostra contrária à Proposta de Emenda à Constituição pretendida.

“Ao meu ver, essa PEC é um retrocesso enorme no direito dos trabalhadores. A nossa Constituição Federal vigente tem quase 35 anos e trouxe consigo avanços significativos para os direitos dos trabalhadores. Então, na minha opinião, apenas o fato de darem início a essa PEC é uma afronta não apenas a nossa própria Constituição, mas como também ao povo, que tanto batalhou para, enfim, ver esses avanços dos direitos dos trabalhadores”.

Já a cientista política Augusta Teixeira inicia revivendo o que aconteceu nos últimos anos em relação às questões trabalhistas no Brasil.

“Em 2017, houve uma reforma na área que o próprio Ministério Público do Trabalho foi contra e enxergou o quanto o trabalhador fica vulnerável em relação ao seu patrão. A pauta de enfraquecer as relações trabalhistas, reduzir as responsabilidades e enxugar a legislação para o patrão foi abraçada pelos governos Temer e Bolsonaro. Flexibilização da legislação, enfraquecimento dos sindicatos, a proposta de carteira verde-e-amarela, a jornada intermitente são propostas feitas pensando unicamente no empresariado brasileiro e não no trabalhador”.

Augusta prossegue:

“Essa PEC é um reflexo da política anti-trabalhista que vemos nos últimos anos permeando o Brasil e que tem ganhado força com um Congresso conservador, que é apoiado por setores do agronegócio e grandes empresários. Não é apenas mais um golpe contra o trabalhador, é ainda pior e desumano: é um golpe para as pessoas que sofrem exploração de grandes empresários, que lucram às custas disso. É privar essa parcela da população de uma investigação de fato, de um órgão do poder público que dentre suas funções, previne e fiscaliza esse tipo de crime”.

Diversos trabalhadores do Brasil têm sofrido com condições precárias. | FOTO: Freepik.

CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO NO BRASIL

Recentemente, tivemos conhecimento casos com as condições de trabalho oferecidas que se assemelhavam à escravidão. Em um deles, cinco trabalhadores tiveram de ser resgatados de um galpão de carvoaria, no bairro de Cassange, em Salvador. De acordo com o MPT, eles chegavam a trabalhar por mais de 12 horas por uma remuneração irrisória.

Outro aconteceu no município de Uruguaiana, na fronteira oeste do Rio Grande do Sul, onde 85 trabalhadores foram resgatados após uma operação conjunta do Ministério Público do Trabalho, do Ministério do Trabalho e Emprego e da Polícia Federal (PF). Entre os resgatados, estavam adolescentes entre 14 e 17 anos.

Mais um ocorreu também no Rio Grande do Sul. 207 pessoas eram mantidas em situação degradante e sofriam ameaças e agressões pela empresa que os contratou para prestar serviço às vinícolas de Bento Gonçalves, na serra gaúcha. 

Para Lauane Neri, se mesmo com a existência de um órgão tão importante quanto o MPT, que tem essa atribuição fiscalizadora, ainda acontecem casos de escravidão e outras ilegalidades com os direitos dos trabalhadores, a situação seria bem pior sem esse suporte.

“Seria um caos na vida do povo brasileiro. Como o MPT tem esse papel, creio que a sua extinção fará aumentar os casos de escravidão e demais descumprimentos, além de dificultar que o trabalhador possa buscar a tutela juridiscional”.

A advogada trabalhista ressalta ainda que passamos por uma reforma que prevê que quem ajuíza a ação deverá provar aquilo que alega, sob pena de extinção do processo sem análise do mérito. Isso significa que o empregado que estiver sofrendo abusos deverá apresentar provas para garantir a veracidade daquelas alegações. Caso não consiga, o processo será encerrado.

“Em casos de escravidão, o obreiro tem grandes dificuldades para comprovar aquilo que alega, normalmente o empregador retém qualquer tipo de documento que possa vir a ser apresentado contra ele. Se formos seguir por vias legais, sem intervenção do MPT, esse trabalhador não iria obter êxito na justiça, tendo em vista a ausência de provas. Com o MPT, ocorre uma denúncia, através dela o órgão investigará a empresa, fará visitas ao local e todas as suas funções para averiguar a veracidade daquela denúncia”, explica Lauane.

A cientista política Augusta Teixeira segue o mesmo raciocínio.

“É extremamente danoso [o intuito da PEC]. Primeiro por legitimar a agenda anti-trabalhista que os conservadores têm carregado, aumentando a precarização do trabalho e a desigualdade social. Fora isso, temos um contexto histórico de não superarmos as relações escravocratas do nosso passado: por exemplo, apenas em 2015 foi criada uma legislação para as trabalhadoras domésticas, que em muitos contextos trabalhavam em situações precárias”, diz.

Marcos Rolemberg frisa a inconstitucionalidade da PEC, por ser uma afronta a toda uma seção dentro da Constituição de 1988, já que o valor social do trabalho é um princípio fundamental e, portanto, não pode ser revisto com uma simples proposta.

“Temos que enxergar a Constituição como um conjunto harmônico de leis e as mudanças que são feitas nelas não podem mexer no alicerce. A única forma possível disso vingar seria através de um Golpe de Estado ou de uma nova constituinte. Dentro dos preceitos atuais, isso não é possível”, diz.

O advogado pontua que extinguir o MPT não é o principal objetivo. Segundo ele, o que se busca é, principalmente, a extinção da Justiça do Trabalho.

“Quem defende essa ideia se apoia em modelos como os dos Estados Unidos. Lá não há justiça especializada, então as relações de trabalho são regidas pelo direito comum. No Brasil, é diferente, porque a Constituição reconhece que o trabalhador está em posição de desvantagem na relação com o patrão. Vale lembrar que o Brasil foi o último país no mundo a abolir a escravidão”.

Diversas vivem e trabalham sem qualquer direito. | FOTO: Freepik.

Já Augusta Teixeira reitera o risco iminente de afrouxamento da fiscalização e do combate às situações análogas à escravidão com o fim do MPT e da Justiça do Trabalho.

“A extinção de órgãos facilita o contexto de trabalho escravo, infantil e discriminações neste ambiente – que dificilmente terão o mesmo olhar combativo se forem condensados para um órgão só. A questão que fica é: quais os interesses que tais deputados defendem quando propõem e endossam uma PEC assim? Com certeza, não é dos trabalhadores, sejam eles do setor público – como os servidores do MPT – ou privados.”, questiona.

A advogada Lauane Neri recorda também que – antes da atuação do Ministério Público do Trabalho – a justiça divergia muito nas suas decisões e que o índice de julgados procedentes aumentou devido à constatação do órgão em relação às ilegalidades.

“O parecer do MPT tem um peso enorme para o Direito do Trabalho. A sua extinção – como a da própria Justiça do Trabalho em si – pode causar um dano irreparável na proteção dos trabalhadores, pois – mesmo com a existência do órgão – eles já enfrentam grandes batalhas. Então, acredito que com essa PEC sendo aprovada nós estaremos retrocedendo em 35 anos de bons avanços nos direitos trabalhistas”, conclui.

Rolemberg traz à tona que existem postos de trabalho clandestino, locais com trabalhadores que se expõem a riscos de mutilações e muitas vezes sem ter acesso aos direitos trabalhistas básicos.

“Embora parte da sociedade insista em não enxergar, empresas onde aparentemente profissionais atuam em situação regular, existe a cobrança abusiva para o trabalhador cumprir tarefas, fazendo horas extras em excesso e sem receber por isso, passando por humilhações para não perder o emprego”, afirma.

E arrebata:

“Há uma falsa premissa que diz que o problema das empresas são os encargos trabalhistas. Quando na verdade, na maioria dos casos, o problema é a má gestão. A Justiça do Trabalho está em flagrante ameaça”.

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