Estupros e feminicídios em AL: subregistro, despreparo e negacionismo fragilizam políticas de segurança pública

Especialistas analisam situação de Alagoas diante da Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
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Capa de novo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre feminicídios e estupros contra meninas e mulheres.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) registrou um aumento nos casos de estupro em Alagoas e uma redução no número de feminicídios registrados no primeiro semestre de 2023. Ambos os dados são recebidos com preocupação pelo Fórum e por especialistas que se debruçam sobre os casos de violência contra mulheres e meninas no país.

Em todo o país, segundo o Fórum, 722 mulheres foram vítimas de feminicídio no Brasil, crescimento de 2,6% comparado ao mesmo período do ano anterior. Se comparado ao ano de 2019, o aumento chega a 14,4%. O levantamento levou em conta, também, o número de homicídios dolosos contra mulheres, considerando as possíveis dificuldades de cada estado de incluir a qualificadora – o que alimenta a cautela em relação às possibilidades de subnotificação.

Dessa forma, mesmo a notícia de que o Nordeste apresentou uma redução de 5,6%, e Alagoas uma redução de 50%, foi recebida com cuidado e ponto de alerta. Segundo o FBSP, em média, apenas 38% dos assassinatos de mulheres ocorridos ao longo do primeiro semestre foram tipificados como feminicídio no Brasil, mesmo percentual de 2022.

Segundo o associado sênior do Fórum, Pedro Montenegro, é preciso levar em consideração o contexto com que as informações foram adquiridas. “Na questão do feminicídio, a aparente boa notícia precisa ser vista com cautela, uma vez que a qualificadora do feminicídio é nova. Além do mais, a misoginia e as ideologias atuam nas brechas, de modo que podem estar acontecendo muitos feminicídios sendo tipificados como homicídios contra mulheres”, declara.

Um caso emblemático trazido por Montenegro trata-se do assassinato de Rosineide da Costa Silva, baleada três vezes quando tentava defender a sobrinha, de 21 anos, do policial militar Wellington Pereira da Silva. Entre as qualificadoras, a delegacia afastou a qualificadora e feminicídio ignorando que a motivação do policial era matar uma outra mulher – sobrinha – por recusar suas investidas e assédio.

Associado sênior do FBSP analisa os resultados sobre estupro e feminicídio em Alagoas. (Foto: Caio Loureiro/Dicom TJ)

“Então falta capacitação e aqui é ainda mais grave, uma vez que a Delegacia da Mulher não investiga feminicídios. Quem investiga é a delegacia de homicídios. Além do mais, a cultura que opera no sistema de justiça e na segurança pública, por vezes em mecanismo sutil, afasta essas qualificadoras. Foi por isso que foi criado um protocolo criado no período da presidente Dilma, de investigação em relação a esses crimes”, descreve.

Essa flexibilização na interpretação é constatada com frequência. “É preciso ver por trás dessa redução, não está atuando a negativa de tipificação, como acontecem com minorias como a população LGBTQIAP+, a população em situação de rua, mesmo em razão do equívocos nos conceitos que existem, e muitas vezes é ignorado no momento em que a autoridade policial decide fazer a qualificação”

Estupros: aumento não consegue alcançar extensão dos casos reais

Já no que diz respeito aos casos de estupro, cujo crescimento foi alarmante em todo o país, e Alagoas também registrou este aumento, ainda assim, as subnotificações também levantam o alerta vermelho sobre como identificar os casos.

“O IPEA chega a cifra em relação aos crimes de estupro que chega a 8,5% apenas dos crimes. Se     aplicarmos neste primeiro semestre, os números saltam para 425 mil casos. Em Alagoas, é uma média de duas mulheres estupradas por dia. Se levar em consideração esse dado, vai saltar”.

Entre os pontos de gravidade está o percentual de meninas estupradas. “São quase 75% das meninas e temos conhecimento das consequências absurdas, suicídio, enfim. A crueldade mostra como ocorre sobretudo no espaço doméstico, do lar, que é espaço de segurança. Então, é preciso pensar em política pública que fortaleça isso. O que é diretamente oposto ao que o Brasil fez quando se voltou ao debate a essa ‘ideologia de gênero’. Aqui em Alagoas, se criou vários embaraços para que professores não falassem sobre o tema . A ausência de possibilidade de educadores falarem sobre o tema da prevenção ao abuso sexual na adolescência, fragiliza ainda mais a politica pública”, explicita.

Neste sentido, vale rememorar as constantes investidas da Câmara Municipal de Maceió para abolir a educação sexual nas escolas, que representaria um importante projeto de combate ao abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes.

É neste sentido que Montenegro destaca a necessidade de que diagnósticos científicos sejam fundamentados na promoção das políticas de prevenção. “Então, para qualificar o debate, não é possível fazer política pública sem diagnóstico científico. Quando isso aconteceu, como no caso da pandemia, vimos no que deu com o achismo e essas ideologias”, rememora.

Negacionismo e distância de diagnóstico esvazia políticas da Segurança Pública

É por isso que o Fórum não considera comemorar nenhum desses dados, mesmo a redução.  “É preciso, antes de tudo, mergulhar fundo no que teria causado, porque uma das coisas mais difíceis na ciência social de modo geral é estabelecer essa relação de causa e efeito. E todo mantra do Fórum é para acabar com o negacionismo na segurança pública. É o negacionismo que vem enlutando famílias negras, é negar o caráter racial nos crimes, nos casos também envolvendo a população e em situação de rua, e também das mulheres – onde é preciso verificar o quesito raça ao analisar também os crimes. É preciso debruçar sobre isso para não ouvirmos mais uma vez o que a ministra das Mulheres Aparecida Gonçalves, quando veio aqui e questionou se só a ministra que enxerga essa situação”, revela Montenegro.

Imagem: trechos do livro Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Crédito: br.ifunny

O distanciamento da ciência nas políticas de segurança, para o integrante do Fórum, vem resultando na ineficiência de parte das decisões e medidas adotadas. “Em nenhuma outra área com variações se abandona a ciência, mas é incrível como na segurança pública, números gerados pela própria segurança pública, estudos científicos, são ignorados. Então é muito difícil alterar o resultado fazendo a mesma coisa sempre”.

Em Alagoas, a situação também não é diferente. “Entra naquele dilema de Alice, de correr e não sair do lugar. Muitos policiais adoecidos, esgotados, e se continua no receituário de 30, 40, 50 anos atrás. Algumas vezes, agrega ferramentas de tecnologia, planejamento e ciência, mas sempre com foco na repressão. Em Alagoas, é ainda mais grave. Há um modelo que não tem no Brasil inteiro, com uma secretaria de prevenção que tira o papel da prevenção da secretaria de segurança pública. Evidentemente que, ao tirar essa responsabilidade da Secretaria de Segurança Pública, é um equívoco muito grande. Se fosse uma experiência exitosa, outros estados teriam aderido”.

Caracterização dos crimes de estupro e seus níveis de análise e incidência de denúncia

Para a advogada, professora e coordenadora do grupo de pesquisa Gênero e Vitimologia, Lívia Salles, há um contraste entre o imaginário que se tem sobre os crimes de estupro, e aqueles que acontecem cotidianamente e ficam ocultos dos registros, campanhas, e políticas. Mais do que isso, a pesquisadora atenta que, a depender do modelos de estupro existentes, alguns terão mais ou menos análise, ou mais ou menos incidência de denúncia. Assim, alguns grupos terminam não sendo representados quando dados ou campanhas aparecem.

Pesquisadora de Gênero e Vitimologia, Livya Sales, fala sobre despreparo para lidar com casos mais comuns de estupro. Foto: Arquivo pessoal

“Muitas pessoas têm uma compreensão imaginária dos crimes de estupro, como situações em que a vítima estava na rua, fez o registro, estava bastante machucada. O dado não leva em consideração crianças que não conseguem realizar a conduta, porque em regra o agressor tem hierarquia sobre essas crianças. Não levam em consideração as mulheres trans, de forma alguma, porque existe estupro corretivo e não temos dados formados dessas mulheres. Só trabalha na perspectiva de mulheres cis”, menciona. “Inclusive, as mulheres trans têm um recorte muito definido, mas muitos juristas, autores sobretudo os influencers de direito penal, que trabalham com livros, ainda negam questionam a ideia de se trazer o feminicídio para a mulher trans”, registra

Nesse sentido, há ainda uma segundo problema de baixa na notificação, que é a quantidade de crimes registrados que se quer chegam a julgamento. “Os números subiram, e onde estão no Judiciário? Porque é um número irrisório que chega lá. A maioria das vítimas não aguenta a via crucis que é um processo penal. Imagina uma pessoa que está extremamente vulnerabilizada para aguentar um processo longo e extremamente constrangedor, como uma violência sexual”.

Gráfico elaborado pelo FBSP para o estudo Violência contra meninas e mulheres no 1º semestre de 2023

Ao debruçar sobre o levantamento, Sales constata alguns dados a se levar em conta. “A pesquisa tem uma variante interessante, que demonstra como a vítima de feminicídio não denunciou antes por não ter reconhecido outras formas de violência que sofreu. Há uma subnotificação gigantesca de estupros maritais. A pesquisa fala disso, mas as pessoas têm que ter consciência que se trata de um número astronômico. Quando estupro marital gera feminicídio, geralmente não houve denúncia anterior dessa violência”.

“Pesquisas como esta deveriam provocar uma avalanche”

Lívia Sales corrobora com a o pensamento de que diagnósticos e estudos sejam capilarizados e transformados em ação. “Pesquisas como esta provocam ou deveriam provocar um avalanche de discussões sobre o assunto, mas parece que ficam centradas na academia. E se a gente encontra mulheres da periferia, pessoas que não têm acesso à educação, ou discursos conservadores dentro da própria academia, termina percebendo que elas não chegam. Não há grupos de apoio, política pública que atenda a condição diversa das mulheres- como as casadas, as trans – dificultando que se signifique o entendimento destas violências e suas geradoras”.

Assim, a ausência de medidas eficazes desencorajam as mulheres de prosseguir com a denúncia, mesmo em razão das limitações que lhe gerarão a médio prazo. “Ainda que tenha a política pública, ela está na superfície, porque no outro dia a mulher precisa trabalhar, e o tratamento psicológico contínuo para ela e os filhos. Precisa ter mais lugares para se reerguer, porque não se reergue em três semanas, e as vezes nem em três meses”.

A expectativa em relação ao atendimento recebido também é fator determinante. “É extremamente válido que a mulher tenha lugares que a acolham, mas o lugar está com profissionais adequados? Porque um lugar revitimizador não vai estimular uma denúncia. Como ela vai voltar para casa depois, antes da medida protetiva? de ônibus? Temos mecanismos, mas falta a fiscalização. Temos a Patrulha com profissionais valorosos, mas enquanto ela não tem medida protetiva, quem lhe garante a segurança?’

A Mídia Caeté entrou em contato com a Secretaria Estadual de Segurança Pública (SSP), mas até o momento não obteve nenhuma resposta. 

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