Falta de forró e apagamento da cultura popular tomam as críticas do São João de Maceió

Prática crescente em todo o nordeste também acontece na capital alagoana, que centralizou contratações milionárias para segmentos do sertanejo universitário e relegou artistas locais a condições precárias
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O São João organizado pela Prefeitura de Maceió vem sendo alvo de críticas crescentes fundamentadas no apagamento da cultura popular, ao relegar forrozeiros a cancelamento de shows, falta de estrutura, e escanteamento para palcos menores. No palco principal, os contratos são direcionados a celebridades nacionais – especialmente do sertanejo universitário – o que vem replicando o mesmo tipo de lógica recorrente em outros lugares do Nordeste.

O alerta vem dos lugares mais diversos, mas começa pelos próprios grupos de forró, na medida em que perceberam como o evento da Prefeitura estava distribuindo as atrações. Enquanto os lugares com maior estrutura vêm sendo destinados aos nomes do sertanejo e do axé, o lugar escolhido para que os 20 trios de forró pudessem apresentar foi o Coreto de Jaraguá.

Em seu portal, a Associação dos Forrozeiros de Alagoas (Asforral) descreve o tamanho do problema. “Definitivamente não é um local apropriado para esse tipo de evento”, diz a nota. “É aberto por todos os lados e, devido a altura, qualquer chuvisco põe em risco os equipamentos de som, enchendo todo espaço de água, possibilitando a ocorrência de acidente, devido a passagem de corrente elétrica, que pode atingir a qualquer pessoa que esteja utilizando um microfone ou outro equipamento”.

Artistas do Forró estão apresentando show no Coreto, sem estrutura adequada. Foto: Karol Lessa / forroalagoano.com.br

À Mídia Caeté, o presidente da Asforral, forrozeiro Zé Lessa, contou que os transtornos vêm sendo generalizados.

“Do ponto de vista da organização, vem sendo um desastre. Tivemos uma ideia de palco na Marcílio Dias como um lugar melhor para as pessoas se divertirem. A Prefeitura criou um palco só para as bandas de forró e nos jogou para o Coreto, que é um local totalmente inadequado”, reforçou.

“Não colocou nenhuma estrutura. A Associação é que colocou tendas no local, porque a Prefeitura sequer previu que teria chuva”, comenta. “Por falta de pagamento na Marcílio Dias, o som foi retirado. Então, o local – que seria para banda de forró – deixou de existir, assim como em Fernão Velho. No Clima Bom, terminou por não acontecer também, porque teve um problema com ônibus. Eles marcam e desmarcam a toda a hora. O artista vai apresentar e quando chega está suspenso”.

O marca-desmarca mencionado por Zé Lessa teve maior repercussão quando da retirada da banda Fulô de Mandacaru de seu horário programado para o show. A apresentação, programada e divulgada para as 20 horas, teve modificação sem prévio aviso para as quatro horas da madrugada. Nas redes sociais, a banda relatou a situação e pediu satisfações para a Prefeitura.

Postagem da banda Fulô de Mandacaru levanta discussão. Foto: Instagram

A diferença não pôde deixar de ser notada, quando em comparação com o palco principal. Na nota da Asforral, mais detalhes vêm à tona. “Condição totalmente diferenciada é o palco consagrado aos grandes astros, a exemplo de Ivete Sangalo, Wesley Safadão, Gustavo Lima, entre outros, que estão se apresentando em um palco com toda segurança e beleza estética, luz, painéis de led etc, basta olhar o palco do forro e o palco dos grandes astros globais, para perceber, para entender o tratamento diferenciado que é dado a cada um deles”.

Zé Lessa acrescenta: “o único palco que ele se preocupou, que foi o principal, só tocou as bandas nacionais e mal teve cultura local. Ontem houve esse incidente com a Fulô de Mandacaru e acabou que eles não se apresentaram. Foi tudo feito para jogar o verdadeiro forró para as cucuias”, acrescenta. “Infelizmente vejo isso como a maior desorganização num São João dos últimos 13 anos de associação dos forrozeiros”, conta.

Ao fim, a Prefeitura ainda trouxe outra sugestão, segundo o forrozeiro: que os artistas que não se apresentaram fossem deslocados para um outro evento, após o São João.

A Mídia Caeté procurou a Prefeitura de Maceió. Até o momento da revisão desta reportagem, nenhuma resposta foi emitida. 

A entrega do São João: Turismo, os milhões para o sertanejo universitário e a pasteurização da cultura nordestina

A disparidade de tratamentos foi notada até mesmo por organizações e profissionais de outros setores que, de alguma forma, atuam com patrimônio. Nesta quinta-feira, a nota de repúdio publicada pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB) chamou a atenção para a forma como os robustos investimentos de mais de R$ 7 milhões foram organizados para promoção de grandes artistas que não configuram a autenticidade da cultura nordestina, sobretudo dentro do período mais demarcado por esta identidade – e que, por consequência, mais deveria valorizar seus construtores.

Palco principal com megaestrutura traz grandes nomes do sertanejo universitário. Foto: Juliete Santos/Secom Maceió

A gestão JHC na Prefeitura de Maceió, através da Fundação Municipal de Ação Cultural (órgão que deveria fomentar a cultura autêntica de nosso lugar), celebra, com mais de R$ 7 milhões, aquilo que não é nosso. Pior! Promove a desarticulação dos grupos tradicionais como será demonstrado a seguir. A FMAC cumpre sua função?”.

“O que é mais autêntico de nosso Nordeste do que os festejos juninos? As Cirandas do Nordeste e as Matrizes Tradicionais do Forró são Patrimônio Cultural Nacional, e o Coco de Roda encontra-se em vias finais para igual reconhecimento. Aliás, o IPHAN, em 2022, no maior e mais antigo prêmio nacional (Prêmio Rodrigo Mello Franco de Andrade), em uma das categorias, deu o primeiro lugar ao projeto Coco de Alagoas”, mencionou.

O tratamento relegado aos grupos locais foi especificado na nota. “No último final de semana, grupos representantes da arte popular, que se apresentariam num palco muito menor que o palco dos “sertanejos-de-todo-tempo-do-ano”, foram literalmente arrancados do mesmo. Alegou-se falta de pagamento na estrutura de palco e som. Perdeu-se a chance de fomentar grupos, detentores, praticantes e público – o que deveria ser a principal motivação da malfadada FMAC.

Afinal, os artistas dos super cachês dos sertanejos e similares poderiam estar em qualquer outro momento do ano na programação de Maceió. Por que agora? Por que em detrimento do tradicional? Por que, numa modelagem onde o que é culturalmente nosso e das festas juninas, nem passaram perto do que seriam as atrações principais?

Desde que iniciou as divulgações sobre o megaevento do São João de Maceió, a Prefeitura vem publicado os números de investimentos privados, focando ainda no mercado turístico e nas expectativas de maior injeção econômica. Em resposta à recomendação feita pelo Ministério Público de Alagoas de cancelar o megaevento, inclusive diante do decreto de situação de emergência em Maceió num prazo de 180 dias por parte da própria Prefeitura – o prefeito João Henrique Caldas (PL) respondeu que R$ 8 milhões não afetarão, por exemplo, os recursos destinados para atendimento de pessoas em situação de risco, em decorrência da chuva.

A Prefeitura ainda chegou a divulgar uma projeção, elaborada junto ao Fecomércio, de que 15 dias de programação renderia uma injeção de R$ 100 milhões, beneficiando 9,4 mil empresas, aumentando a ocupação hoteleira, e “sacudindo o mercado informal”.

A perspectiva focada no mercado do turismo soma-se, ainda, a um “fenômeno” identificado e fortemente criticado em outras cidades nordestinas: os contratos multimilionários destinados aos artistas do sertanejo universitário – já beneficiados por robustos investimentos provindos do agronegócio – e que, neste caso, espremem cada vez mais as múltiplas identidades culturais locais. O caso de maior repercussão ocorreu ainda no início do mês, quando o show do forrozeiro paraibano Flávio José foi reduzido em 30 minutos para dar lugar à celebridade do pop sertanejo, Gustavo Lima. Em Maceió, a Prefeitura custeou com Gustavo Lima R$ 980 mil reais. Wesley Safadão vem em segundo lugar no ranking dos “quase milionários com um show”, totalizando R$ 700 mil. Por fim, vem o sertanejo Leonardo com R$ 550 mil.

O Conselheiro superior do IAB, Sandro Gama, identifica esse processo a partir de uma pasteurização dos festejos, que provocam um esvaziamento das expressões culturais, relegando-as a um papel de “enfeite”.

“O fato é que estamos num processo de décadas em todo Nordeste, em que gestores vêm pasteurizando os festejos e os tornam iguais em qualquer lugar do país – uma desterritorialização que poderá dar a impressão de que tudo é comum e enjoativo, e todo lugar os festejos acontecem da forma”.

Conselheiro do IAB, Sandro Gama: o que vem acontecendo no nordeste é uma pasteurização cultural. Foto: Arquivo Pessoal.

Um exemplo citado são as micaretas, cuja padronização minou o interesse das pessoas, segundo o conselheiro do IAB. “Os gestores não compreendem que a mágica está na singularidade, na diferença, no que faz as pessoas quererem pular de uma festa junina para outra. E, pior, o que é tradicional, único, identidade de lugares virou apenas um ‘penduricalho de enfeite’, pra fazer de conta que houve respeito: palcos menores, periféricos, de canto, bem longe das atrações principais – que seriam atrações ótimas para qualquer época do ano. Não as critico diretamente”.

Para finalizar, identifica um futuro ainda mais desolador. “Breve só veremos do Nordeste o nome da festa e as bandeirinhas coloridas. O público se vestirá cada vez mais de cowboy norte-americano, ouvirá e dançará algo que não é identitário. Mal percebem os prefeitos que estão produzindo uma nova micareta: a de Barretos! Será que não dá para ter das duas? Valorizar também do que nos é regional, identitário, e fazer o MicaBarretos em outra época do ano? Veja a programação dos palcos de Maceió – autoproclamado maior São João do Litoral. Vamos contar o que tem de forró ali. 5%? É um projeto de apagamento cultural”.

O forró que está sendo jogado para as cucuias.

Era para ser uma entrevista e se transformou em uma verdadeira aula. A lição é de que, quando se trata de apagamento cultural, há ainda outro aspecto nefasto que se soma à padronização e “barretização”, ao empobrecimento da diversidade da cultura nordestina, e à negligência de recursos que violenta as possibilidades de artistas tradicionais se manterem. Trata-se do esquecimento da contribuição do forró na história de resistência dos povos, desde à escravização aos vaqueiros nordestinos.

O forrozeiro Zé Lessa, atual presidente da Asforral, é também uma enciclopédia viva do forró no Brasil e em Alagoas e – em meio às falas inconformadas sobre a desvalorização do megagênero tradicional – levantava quase que ao mesmo tempo toda a riqueza histórica que faz do forró – Patrimônio Imaterial do Brasil composto por expressões como baião, o xote, o xaxado, o chamego, o miudinho, a quadrilha e o arrasta-pé – um marco que constrói a história do estado e do país. Diversas informações – e músicas – estão reunidas no site forroalagoano.com.br .

“Estamos acompanhando e temos feito também muitas crítica. A primeira é delas é que o prefeito não se preocupa com nossas tradições. A linha de pensamento é contrária ao que pensamos. Enquanto pensamos em preservar a cultura alagoana, ele pensa em destruir. E se é uma agressão àqueles que fazem forró, é também, principalmente, uma agressão a Alagoas”, começa.

Segundo Zé Lessa, o forró já existia em Bebedouro ainda em 1880. “Major Bonifácio da Silveira era grande festeiro e trouxe à tona o Côco. Foi o primeiro ritmo que apareceu. Ano passado, comemoramos os 100 ano do grande artista Jararaca, que levou o baião, forró, o coco e a embolada. Ele nasceu aqui em Maceió e levou esses ritmos e a forma de vestir do vaqueiro nordestino. Muita gente pensou, lá em 1922, quando ele chegava com o chapéu de couro, se ele estava fazendo a apologia ao cangaço. E ele dizia que não, que aquela é a roupa do vaqueiro nordestino, e que os cangaceiros se vestiam dessa forma porque eram vaqueiros nordestinos e era como podiam se proteger nas intempéries da caatinga com seus espinhos. O modo de vestir dos cangaceiros era o modo de vestir do dia a dia dos vaqueiros na caatinga”, começa.

Nesse sentido, Zé Lessa já diferencia: o jeito de vestir do vaqueiro nordestino é bem distante do vaqueiro colocado pelo agropop. “Essa contribuição que Alagoas deu ao longo da história, esse pessoal faz de conta que não existe. Ou quer fazer. Porque até livro eu já deixei na Prefeitura contando essas histórias”.

E de onde saiu essa, vieram muito mais. “Gerson Filho chegou ao Rio de Janeiro e foi o primeiro artista a tocar a sanfona de 8 baixos. Era alagoano e foi o primeiro a gravar quadrilha enquanto gênero alagoano. Ele foi o ‘cabra’ que mais compôs e gravou quadrilhas: foram 48 no total. Em 1953, foi sua primeira composição e ele só tinha 12 anos de idade. Um baião chamado ‘Choveu na minha Roça. Foi considerado o primeiro baião, que ele tocava em Penedo”.

“Olha pro céu, meu amor” e o  Forró como parte da resistência negra do povo alagoano

Tem mais um artista mencionado por Zé Lessa: José Fernandes de Paula, conhecido como Peter Pan, é autor de uma das músicas que está sempre entre ss mais tocadas do São João nos últimos dez anos: “Olha pro Céu meu Amor”. “ Ela foi gravada por Luiz Gonzaga, mas também é do alagoano José Fernandes. Entre as dez músicas mais tocadas, sempre está em primeiro ou segundo lugar. A quarta música é do Gerson Filho, fim de festa. A nona também é dele, Quadrilha Brasileira, de 1948, e que ainda hoje é sucesso”.

O vaqueiro nordestino, diferentemente da cultura do vaqueiro de Barreto, tem um fundamento cuja profundidade só o forró raiz pode alcançar. “Foi fruto da evolução da cultura negra no Brasil. A polca, conhecida como arrasta-pé, assim como frevo, são derivados da música alemã. Só que os negros, ouvindo na casa grande o toque do piano, começaram a modificar e colocaram um instrumento chamado Melê, logo depois substituído pelo atabaque”.

Com o passar do tempo, percebendo que o zabumba era mais fácil e leve de transportar, foi Luiz Gonzaga quem substituiu o melê. E com o forró bodó, que é um termo afrorasileiro, é que os ritmos passaram a sofrer alterações mais profundas. “Luiz Gonzaga 1945 a 1955 imperou ritmo do forró no país. Depois perdeu espaço pra bossa-nova, que apareceu após o baião, mas o forró não morreu. Nunca morreu e nunca vai morrer”, reforça.

“Já passou por crises e mais crises, mas vemos sempre revigorados por novos grupos, com crianças ganhando festivais e por aí vai”, diz. “Toda essa história mostra como o forró naturalmente só poderia nascer em Alagoas, que foi onde se concentrou o maior número de negros da etnia Bantues, que trouxe o batuque responsável por dar origem tanto ao forró como ao samba, inclusive depois enriquecido por culturas indígena e até europeias. O nosso prefeito desconhece a história de resistência do povo alagoano. A gente fica triste, mas não é motivo de arriar a cabeça. Vamos continuar resistindo”, finaliza.

Trio Abanos do Forró. Foto: Karol Lessa (forroalagoano.com.br)

 

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