Investigação na Saúde e as parcerias com o Terceiro Setor

"Operação Florence" levanta discussão sobre privatização, recursos públicos e precarização do trabalho
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Foto: Divulgação / Polícia Federal

No dia 11 de dezembro de 2019, a “Operação Florence – Dama da Lâmpada”, deflagrada pelo Ministério Público Federal (MPF), Polícia Federal (PF) e Controladoria Geral da União (CGU) saiu às ruas em Alagoas. 

A investigação apura supostas fraudes e desvios de recursos públicos nos serviços de órtese, prótese e materiais especiais (OPME) em hospitais do estado. Diversos mandados de prisão e busca e apreensão foram cumpridos, inclusive contra servidores da Secretaria Estadual de Saúde (Sesau). 

De acordo com as investigações, nos últimos três anos, R$ 30 milhões foram repassados a uma Organização da Sociedade Civil (OSC), entidade sem fins lucrativos, responsável pelos serviços de órtese, prótese e materiais especiais (OPME). Além disso, teria ocorrido monopolização dos serviços de OPME em Maceió e no agreste alagoano, com pagamentos sem comprovação das atividades prestadas.  

À parte os potenciais envolvidos, essa não é a primeira vez em que suspeitas recaem sobre as parcerias firmadas entre o poder público e entes do terceiro setor na área da saúde. 

Em linhas gerais, o que se percebe nos últimos anos é que a administração pública no Brasil segue coordenando e financiando os serviços, mas transfere o gerenciamento para um ente público não estatal, prática que é conhecida como publicização e que, para alguns estudiosos, trata-se de uma forma de privatização não clássica. 

As parcerias costumam ser firmadas com organizações sociais (OS) ou Organização da Sociedade Civil de Interesse Pùblico (OSCIPs), qualificações concedidas pelo poder público a uma instituição sem fins lucrativos. O reconhecimento por parte da administração desperta o interesse, sobretudo, pela concessão também de benefícios, tais como isenção fiscal, repasse de bens, dentre outros.

O pesquisador Lucas Soares se debruçou sobre a privatização da saúde no seu mestrado, tomando como norte o subfinanciamento do Sistema Único de Saúde (SUS) a partir da implementação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH). 

Para Soares, um fator que impulsionou a publicização no Brasil foi o crescimento do neoliberalismo na América Latina a partir da década de 1990. Sob a justificativa da eficiência, sustentabilidade e equilíbrio fiscal, o Estado deixa de executar a política de saúde, que sobra para a iniciativa privada e o terceiro setor. 

“No modelo neoliberal e gerencial, a lógica empresarial é aplicada aos Estados, que devem se livrar de tudo aquilo que não contribua para o seu desenvolvimento econômico, sendo este entendido meramente como garantia de superávit fiscal. Por tal razão, privatizações, flexibilizações e desregulamentações de direitos que desestruturam legislações sociais protetivas passam a ser consideradas necessárias e urgentes”, afirma.

Os especialistas consultados pela Mídia Caeté para comentar o tema apontam que os riscos da adoção desse modelo de gestão no Brasil podem ir de problemas na fiscalização e transparência dos recursos públicos a uma precarização dos trabalhadores, como se verá adiante. 

Um histórico de problemas 

Foi a Lei nº 9.637/1998 que estabeleceu diretrizes para a qualificação de uma entidade sem fins lucrativos como organização social (OS). Um ano depois, a Lei nº 9.790/1999 disciplinava as relações da administração pública com as OSCIPs, impondo requisitos mais rígidos após a experiência problemática com as organizações sociais. 

O pesquisador Daniel Borba estudou em sua dissertação de mestrado, sobretudo, os reflexos da atuação das organizações sociais na área da saúde em Maceió. Para ele, os referidos diplomas normativos não puderam evitar as práticas fraudulentas. 

“Não é raro encontrar a formação das relações de parcerias com ofensa aos princípios da eficiência, isonomia e impessoalidade, além de mencionar o risco da cooptação do terceiro setor pelo Estado, ou mesmo de beneficiamentos indevidos, em virtude da discricionariedade da escolha do ente parceiro, talvez um dos maiores problemas destas leis por não prever mecanismos de escolha do parceiro”, assegura.

Um episódio sempre lembrado remete ao ano de 2012,  quando uma auditoria do Tribunal de Contas da União, realizada em vários estados e municípios brasileiros (São Paulo, Bahia, Rio de Janeiro e Paraíba, dentre outros), concluiu que não foi possível verificar melhora nos serviços transferidos para entidades privadas na área da saúde. Da mesma forma, foram constatadas irregularidades nos processos seletivos ou na contratação de serviços e bens.

Após a intensa pressão dos Tribunais de Contas, Justiça e doutrina, as mudanças ocorreram em 2014, quando um marco regulatório apertou as regras para a escolha da entidade parceira e das compras e contratações firmadas entre esta e terceiros, bem como a exigência de prestações de contas mais rigorosas. 

O balde de água fria não tardaria. Em 2015, a Lei nº 13.204/2015 alterou o que havia sido estabelecido um ano antes, o que, segundo Borba, coloca em xeque o caráter modernizante e moralizador deste diploma normativo.  

“As organizações sociais, as OSCIPs, as entidades filantrópicas e sem fins lucrativos que atuam com o Sistema Único de Saúde, e mais diversas outras instituições foram excluídas do âmbito de sua incidência nos mesmos termos das organizações sociais”, afirma o pesquisador.

Controle das verbas e precarização do trabalho

A forma pela qual o Estado contrata bens e serviços obedece, em regra, a um procedimento denominado licitação. Por sua vez, as entidades do terceiro setor possuem maior flexibilidade nas contratações e gozam de menor controle sobre as suas atividades e finanças, segundo Borba. 

“Trata-se, em verdade, de uma autêntica terceirização no serviço público, a indicar a renúncia do Estado de sua responsabilidade social, e mostra relações público-privadas duvidosas, uma vez que se fazem transferências de verbas públicas para entidades privadas sem planejamento, controle e supervisão”, comenta.

Outro grave problema corriqueiramente apontado é a precarização das relações de trabalho. É que a instituição parceira do Estado pode contratar funcionários para desempenhar as mesmas funções públicas que um servidor público estatutário. O regime, no entanto, é o da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). As consequências diretas são um duro golpe na estabilidade e na independência do trabalhador. 

O médico Bruno Fontan acompanha há vários anos os impactos gerados na saúde pública como membro do “Fórum alagoano em defesa do SUS”.  O Fórum completou recentemente 11 anos e, desde o início, fiscaliza, denuncia e se posiciona contra as parcerias do poder público com o terceiro setor, especialmente as que envolvem as organizações sociais.  

Para Bruno, a precarização impacta fortemente os profissionais de outras categorias da saúde pública. Sem acesso a um mercado de trabalho amplo como o da medicina, o que resta aos demais trabalhadores é sofrer em silêncio para manter o emprego.

“A perseguição é sempre uma ameaça. A possibilidade de denúncia ou movimentação sindical é bem menor. Alguns têm dificuldade de movimentação sindical porque são terceirizados. Você não pode fazer questionamentos, tem o vínculo empregatício mais precarizado, tem o baixo salário também”, ressalta, antes de concluir que o principal prejuízo desse modelo para a sociedade está na diferença entre uma saúde estruturada pela lógica das necessidades humanas e uma saúde que segue a lógica do mercado. “Quando você estrutura um serviço centrado na pessoa, tem determinados serviços que são caros mas que atendem as necessidades da população. Quando é pela lógica do mercado, você tem serviços que têm possibilidade de se sustentar financeiramente; aquilo que não é viável e dá prejuízo, acaba não existindo”.  

Neste ano, a imprensa alagoana noticiou que o governador do Estado, Renan Filho, desistiu de firmar parceria com uma OSCIP para gerenciar o Hospital da Mulher, recém-inaugurado pelo governo. 

A reportagem da Mídia Caeté entrou em contato com a Sesau na última sexta-feira (20) para, entre outros questionamentos, saber se novas parcerias com o terceiro setor figuram nos planos. Até o momento de publicação, não houve retorno. 

Em nota divulgada à imprensa logo após a “Operação Florence”, a Sesau disse que acompanha as investigações e contribui com as informações necessárias para auxiliar a apuração. Além disso, afirmou que será instaurada uma sindicância para apurar e punir eventual envolvimento de servidores do órgão.

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