Maceió: falta de transparência e atraso no Plano Diretor excluem população de decisão sobre a cidade

São mais de sete anos de atraso e silêncio da Prefeitura de Maceió sobre os rumos do Plano, mesmo com desastre ambiental e mudanças profundas
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Pensar no desenvolvimento de uma cidade inteira parece impensável sem apontar as interferências econômicas ou políticas que atravessam cada passo dessas mudanças e, não raramente, o orientam. Dos impactos sociais aos ambientais, do lugar que se destina e legitima culturas e comunidades, tudo passa pelo uso do espaço.

A história de Maceió nos permite visualizar o entrelace. Ainda que os registros mais “oficializados” já comecem a apontá-la pelo século XVIII com o engenho de açúcar Massayó, seu próprio termo indígena, aliás – que significa a “terra que tapa o alagadiço” – vem com a memória do que insiste em existir desde antes e para além. Assim, muito antes dos primeiros intercâmbios comerciais, do uso do porto natural em Jaraguá; da exportação de açúcar e da madeira; muito antes da exploração de sal-gema e da indústria do turismo com suas praças e “monumentos instagramáveis”;  e para além do petróleo, das águas cristalinas e do agronegócio, existia gente. E gente vivendo das maneiras mais diversas, seja em comunidades pescadoras ou agricultoras, tradicionais, indígenas ou quilombolas, gente, enfim, cuja relação de produção vinha vinculada à reprodução da vida.

É aí que é possível compreender o quanto o curso de vida na cidade não deve acontecer de forma aparentemente aleatória ou descaradamente secundarizada por interesses de uma minoria econômica, a despeito do bem-estar de toda gente diversa e sua capacidade de participar dos processos decisórios. E aqui não se trata de uma opinião, mas de uma norma diretiva. Regulamentado pela Lei 10.257 de julho de 2001, o Estatuto da Cidade estabelece princípios para nortear o desenvolvimento das cidades a partir da função social da propriedade e da participação democrática no seu percurso.

O Estatuto da Cidade é resultado de intensa pressão popular surgida desde a década de 1980 – antes mesmo da própria Constituição Federal de 88 – principalmente a partir de entidades e movimentos sociais urbanos. Diante do crescimento populacional e da desigualdade geradora de diversos problemas sociais, além da má distribuição da terra, o Estatuto veio para regulamentar artigos da CF voltados à política urbana. A partir de uma série de diretrizes direcionadas aos municípios, o Estatuto já dispõe no segundo capítulo sobre o planejamento municipal da política urbana, iniciando pelo plano diretor – apresentado como “instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”.

Como ferramenta legal, o Plano Diretor é responsável, inclusive, por nortear o orçamento no município, de modo que suas diretrizes sejam incorporadas no plano plurianual, nas diretrizes orçamentárias e orçamento anual.

E há mais algumas regras: sua lei deve ser revista a cada dez anos, pelo menos. Em seu processo de elaboração, os Poderes Legislativo e Executivo municipais devem garantir a promoção de audiências públicas e debates com população e entidades, publicidade quanto aos documentos produzidos e o acesso livre a qualquer pessoa interessada nas informações.

Não é o que acontece em Maceió, no entanto. Faz 17 anos que o primeiro e único Plano Diretor foi aprovado na capital alagoana e não é por falta de demandas sociais que sua atualização não acontece, desde as mudanças profundas que aconteceram em praticamente todo o território, e uma série de afetações e prejuízos ambientais causados pela mineração ou intervenções privadas das mais diversas. Ainda assim, o PD não aparece.

Linha do tempo

No artigo assinado pelas pesquisadoras Débora de Barros, Isadora Padilha e o pesquisador Renan Durval, a linha de tempo imbuída de atrasos aparece em detalhes. Os autores relembram que o PDDM de 2005 estabeleceu um Sistema Municipal de Planejamento e Gestão Urbana, que deveria coordenar o planejamento, monitorar e fiscalizar o cumprimento do PD. Também deveria ter sido constituído um Conselho do Plano Diretor de Maceió, com início imediato dos trabalhos. No entanto, não houve nenhuma execução.

Participando ativamente desse processo de construção, o presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil – seccional Alagoas, Pablo Fernandes, completa o mosaico dessa história de interrupções .“Dois anos depois de lançado o primeiro Plano Diretor, com o lobby do mercado imobiliário, é criado o código de edificações, em 2007, que coloca parâmetros mais definidos, uma vez que o Plano Diretor em si estava mais abrangente e conceitual. É o Código de edificações que especifica recuos, até quantos andares se pode construir. Ele ajudou a regular as diretrizes”, explica.

A partir daí, foram intensas as mudanças na configuração da cidade. Fernandes destaca que, em 2014- um ano antes do fim da vigência do PD de 2005 – foi feito um estudo levantando 52 empreendimentos de prédios construídos à beira mar. Houve ainda a derrubada de uma vila de pescadores em Marceneiro, em São Miguel dos Milagres. Derrubaram a Vila e construíram um condomínio que chamava também Vila dos Pescadores.  Igual ao The Square, que era um terreno público e originalmente deveria ser feita uma praça. Fizeram alguma permuta com a Prefeitura, colocaram o prédio gigantesco que chamam de “The Square” (A praça, em inglês)”, acrescenta .

O tempo foi passando sem monitoramento periódico do plano, previsto através do Sistema Municipal de Planejamento e Gestão Urbana, aproximando ainda o fim do prazo para o novo Plano. Fernandes relata que, após provocar o Ministério Público Estadual, alguns coletivos, grupos e movimentos sociais vinculados ao direito à cidade conseguiram formar, em junho de 2015, uma audiência pública. “A sociedade organizada esteve toda lá, capitaneada também pelo Abrace a Garça, a Bicicletada, professores de direito, urbanismo, ambientalistas, geógrafos. O discurso dos empresários era basicamente que quem joga esgoto nas praias são os pobres e que eles eram os bonzinhos porque davam empregos. Mas, enfim, foi a fala deles contra de todo um conjunto de diversos outros segmentos, trazendo até exemplos práticos. Um deles foi a destruição de matas e morros para colocar a Josefa de Melo e o Parque Shopping, com a promessa de que seria sustentável. Qual a sustentabilidade deste shopping?”.

Segundo o presidente do IAB, apesar da atividade pública, foi apenas no fim de setembro de 2015, três meses antes do prazo final, que o processo de revisão do Plano Diretor iniciou de fato. Primeiro a partir de pré-reuniões, elegendo o conselho do Plano Diretor de Maceió, dividido em cinco categorias: institucional, educação, ONGs e movimentos sociais, associações de bairro e entidades de classe. “O até então secretário Manoel Messias cooordenava o conselho e entrou com exigência de um CNPJ, excluindo assim o Abrace”, conta. “Para se redimir, criaram um corpo técnico para ajudar o conselho sem direito a voto, podendo participar três movimentos sociais e três entidades de classe, que foram o CREA, CAU e CRESSI”, relata.

Embora o prazo de conclusão pela lei fosse até 2015, o ativista relembra que a prefeitura conseguiu estendê-lo ao longo de 2016. “Foram mais de 50 encontros até agosto de 2016, alguns provocados pela Prefeitura, pela Ufal, algumas pela CAU. A Ufal entregou documento, nós no Abrace também entregamos, o Ideal também. Vencemos quase todos os pontos e ficou faltando só o meio ambiente”. O acordo é que haveria mais uma audiência com esse tema. “Seria a decisiva para bater o martelo, mas ela nunca aconteceu. A prefeitura teve o papel de entregar a minuta 15 dias antes do prazo para ser aprovado ou reprovado. Estava tudo praticamente pronto, em voz uníssona no sentido da cidade compacta com exceção de meia dúzia de construtores que tinham voz de lucro por metro quadrado, mas aí o assunto sumiu do mapa”.

FOTO: Jonathan Lins.

Os autores do artigo relatam que, via de regra, e apesar do momento de maior produtividade, uma série de atuações desestimulava o processo mais democrático. Desde a inexistência do Sistema Municipal de Planejamento – e, em seu lugar, a contratação de uma consultoria de fora que ‘liderava’ o processo –  a uma série de outras situações. “A ausência de procedimentos preparatórios, divulgação adequada e distribuição espacial pelos bairros, gerou um afastamento da sociedade civil em geral. Destaque-se que, no que diz respeito à divulgação, foi pontuada na primeira audiência a necessidade de divulgação da revisão por meio de rede aberta de televisão, quando foi dito que o alto custo de veiculação e a “falta de recursos” para viabilizá-la, impossibilitaria o uso desta mídia”.

Em 2017, com a mudança de gestão para Rui Palmeira, a reordenação de secretarias foi utilizada como justificativa para paralisação do Plano. Embora o conselho tenha se rearticulado e envidado esforços para dialogar com o então prefeito, as reuniões de Palmeira limitavam-se aos segmentos econômicos do mercado imobiliário. Após provocação dos conselheiros ao Ministério Público, já em 2017, foi recebida a resposta de que a Prefeitura trabalhava “internamente” na produção do PDDM.

“Documentos básicos relacionados ao Plano Diretor haviam deixado de estar disponíveis no site da Prefeitura, o que foi alertado por Conselheiros, e assim permaneciam. No momento em que este capítulo é escrito, apenas alguns documentos podem ser encontrados de forma dispersa em páginas da Prefeitura e da SEDET”, complementam.

Interesses, impactos e desastre

Em artigo assinado por Camilla Ghisleni para o portal Arch Daily, a “cidade compacta” é definida como um modelo urbano “associado a uma ocupação mais densificada com a consequente sobreposição de usos (residências, comércios e serviços) e o favorecimento do deslocamento de pedestres, ciclistas e usuários do transporte público”. O posto àquele da cidade dispersa, o modelo pressupõe uma disponibilidade de serviços, equipamentos públicos e outros acessos nas proximidades, que reduz a necessidade de deslocamentos maiores, fortalecendo ainda a perspectiva de comunidade.

Quando associada a diretrizes de sustentabilidade, a ideia da cidade compacta vem se apresentando como solução em contextos de crises ambientais. “Quanto mais compacta, menos você gasta”, explica Fernandes. “Se você tem transporte aqui, hospital, escola, casas, mercados, tudo próximo, óbvio que você se locomove em distância menor”, explica.

Segundo o presidente do IAB, na iminência da aprovação do plano, havia já uma consonância grande em relação à ideia de cidade compacta para o PD, mas a Prefeitura mostrou ter outros planos. “Era primeiro dia de audiência, depois de todos os debates précios, e saiu uma capa em um dos grandes jornais da cidade estampando “Maceió começa a expandir para o Litoral Norte”. Ou seja, a gente vai começar a discutir o PD e o prefeito já dá uma entrevista de capa. O mote do Plano Diretor era ‘cidade compacta’, mas o prefeito decidiu que a cidade vai crescer”.

Para além da extensão, Pablo Fernandes cita a verticalização nas áreas litorâneas, incentivada pela especulação imobiliária. “Em Maceió, a paisagem que a gente via do litoral norte eram as falésias. Era icônica. Quando a gente olha de lá para cá já vemos os prédios, à beira mar. Dependendo da altura, começam a fazer sombra na praia, interferindo na fauna, na flora. E o esgoto vai para onde? Em 2008, havia barreiras de concreto em cada prédio, e até hoje as línguas sujas ficam correndo para a praia. Vai ser o mesmo no litoral norte”, reflete.

Há ainda a interferência nas comunidades tradicionais, desde a afetação de sua cultura e estilo de vida ao próprio processo de gentrificação e expulsão. “O mais grave é a especulação imobiliária”, acrescenta, “que obriga o Estado a colocar infraestrutura em um ligar onde não tem, para levar a população para lá, enquanto você tem toda uma cidade com grave ausência de saneamento básico. Gasta dinheiro onde não precisa e deixa o lugar onde há necessidade ainda mais carente de infraestrutura e por mais tempo”, conta.

As incoerências mantidas pela ausência de um plano que ordenaria os caminhos da cidade vão se aprofundando e agravando, colocando no embrulho o que já é considerado o maior crime ambiental urbano na cidade – embora nenhum órgão oficial do Estado tenha devida e oficialmente apontado seu culpado. O afundamento de solos provocado fundamentalmente pela exploração desenfreada da Sal-gema por parte da mineradora Braskem, afetando pelo menos cinco bairros em áreas estratégica de Maceió, retorna para a mineradora em forma de compra de terrenos sem indenizações, e ainda muito pouco conhecimento sobre o que será feito nas áreas.

FOTO: Jonathan Lins.

Os impactos, aliás, já são sofridos sem qualquer ordenamento, com déficit habitacional, valores desproporcionais de aluguel e dificuldades de adaptação ante mudanças abruptas e necessidade de reorganização das rotinas e vidas da população que precisou deixar o bairro de maneira compulsória.

“Hoje as famílias de baixa renda dos bairros afetados estão entregues à própria sorte. Quando recebem o valor para aluguel ou indenização da Braskem, os recursos têm se mostrado insuficientes para alugar ou comprar algo nas proximidades, onde a sua vida se desenrolava, pois os preços subiram assustadoramente. Restam bairros distantes ou mesmo a ida para outras cidades, onde as vidas se alteram, via de regra, para piores condições. Por exemplo, uma das escolas de Bebedouro perdeu no último ano mais da metade de seus 1000 alunos, ou seja, crianças podem estar sendo prejudicadas no seu desenvolvimento educacional”, retratam os autores no artigo, que você pode ler na íntegra clicando aqui. 

As audiências como pressão popular

Ao invés da esperada minuta da Prefeitura – resultante dos debates com sociedade civil e conselhos – e sua devida destinação à Câmara de Vereadores para aprovação, o que se vê é uma situação contrária: debates que partem da mobilização popular junto à Câmara, e que agora vêm se difundindo a partir de audiências públicas externas. Verdade que, sem participação da Prefeitura, o PD não possa efetivamente sair do papel, mas segundo Fernandes, os debates têm a expectativa de minimamente pressionar o Município a cumprir o dever. “A ideia é levar a discussão aos distritos, às regiões administrativas, provocando debates nas regiões e também propor a reativação do Conselho, porque – por mais que a gente discuta – quem pode provocar é a Prefeitura”.

Até o momento, entretanto, por parte da Prefeitura de Maceió o que se recebe é o silêncio. Inclusive para esta reportagem. A Mídia Caeté tentou contato, via assessoria, emitindo os questionamentos pertinentes ao Plano e ao direito público à informação, mas não houve resposta por parte da gestão municipal.  A partir da pergunta principal – onde está o plano? – pontuamos outras como qual o respaldo para a regulação do que se constrói na cidade, para a distribuição orçamentária, quais reuniões vêm acontecendo junto a segmentos do mercado imobiliário em detrimento daquelas com participação da sociedade civil, entre outras.

A Mídia Caeté também buscou o Sinduscon – Sindicato dos Empresários da Construção Civil. Questionando se têm existido reuniões ou espaços de debate entre o segmento  e a Prefeitura sobre planejamento da cidade, e também sobre a especulação imobiliária como uma das problemática apontada frequentemente entre pesquisadores e ativistas que discutem a cidade. A única resposta recebida, via assessoria, foi que há três anos o Conselho do Plano Diretor não se reúne e, portanto, o órgão não têm “conhecimento suficiente” para responder a nenhuma das cinco perguntas realizadas.

“A quem interessa a não revisão do PDDM?”

Onde faltam respostas, multiplicam as perguntas. E, assim, mais do que um relato de linha do tempo, o trabalho realizado por Débora de Barros, Isadora Padilha e Renan Durval, destacam um questionamento-chave: a quem interessa a não revisão do PDDM?

Interpor sobre as motivações de tantos atrasos, sem acatar apressadamente a tese da negligência, estimula um olhar mais cuidadoso sobre a potência de um Plano Diretor que de fato regule e, inclusive, breque, situações e condições que atualmente acontecem na cidade sem maiores interferências deste tipo de regulação. A exploração intensa do mercado imobiliário é um destes fatos incontestáveis. O silêncio da Prefeitura segue sendo o outro.

“O que se pode efetivamente comprovar é a existência de vários projetos já implantados na região com prejuízos urbano-ambientais ainda não calculados em uma área de grande vulnerabilidade, além de grandes reservas de terra à beira mar, de propriedade de construtoras, guardadas atrás de muros em toda a extensão do litoral norte”, descrevem. Acrescentam, ainda, toda a mobilização que se manteve por parte do CPDM para retomada e continuidade das discussões, incluindo petição online, evento que gerou construção de diretrizes para o desenvolvimento de Maceió”. Embora candidatos tenham assinado as diretrizes, os autores registram que o atual prefeito de Maceió, João Henrique Caldas, não o fez.

A pergunta então, já com mais pistas da resposta, se completa com o distanciamento de um parâmetro ainda distante de se cumprir registrado pelos autores: de um PD com o “envolvimento de todos os atores urbanos em um projeto conjunto, colaborativo de cidade, onde todos ganhem, mas principalmente os que historicamente têm sustentado a riqueza do país, mas que vivem em condições indignas.”

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