Por que especialistas criticam Centro de Telepresença para audiências penais virtuais

Defensores veem prejuízo na comunicação do defensor com o preso, além de dificuldade para relatos de torturas ou agressões
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Imagine que um parente seu esteja preso sem que tenha sido decretada a sua culpa pela Justiça. Você gostaria que ele fosse ouvido presencialmente ou à distância, por meio virtual, pelo (a) magistrado(a)? A audiência ocorreria em um tempo necessário para uma boa defesa ou em formato de cadeia de eficiência? As situações descritas podem se apresentar com o Centro de Telepresença de Alagoas, inaugurado pelo Governo do Estado em junho e criticado por especialistas na área penal.

O Centro de Telepresença de Alagoas está localizado no complexo penitenciário da capital. A estrutura foi orçada em quase R$ 1,2 milhões de reais e conta com 321,69m² de área construída, possuindo oito celas com capacidade para até seis pessoas cada e seis salas de audiência com capacidade para até 12 pessoas. Na prática, o preso não precisaria mais se deslocar até o Fórum de Maceió para um encontro presencial com o (a) juiz(a), bastando se apresentar diante do sistema de videoconferências Polycom, utilizado pelo Tribunal de Justiça de Alagoas (TJ-AL) para a realização de sessões telepresenciais cíveis, trabalhistas ou criminais. 

A estrutura foi anunciada como pioneira no país na cerimônia de lançamento, no último mês de junho, e também nas divulgações oficiais à imprensa, destacando-se a “maior segurança para a sociedade” e a “economia aos cofres públicos” proporcionados com o agora desnecessário deslocamento dos presos até o fórum para o encontro cara a cara com o (a) juiz (a). O evento contou também com a presença da Ordem dos Advogados do Brasil seccional Alagoas (OAB-AL) e Defensoria Pública do Estado de Alagoas (DPE-AL), que representam os atores da defesa em um processo.

É recomendado, contudo, manter o olho aberto toda vez que o discurso econômico se sobrepõe a um direito, especialmente se a tomada de decisões pelo poder público não acompanha um embasamento em estudos ou dados sólidos. A Mídia Caeté enviou seis perguntas à Secretaria de Estado de Ressocialização e Inclusão Social (Seris) sobre o Centro de Telepresença recém-inaugurado. Duas delas não tiveram resposta: quais estudos ou dados embasam o argumento da “economia” e da “segurança à sociedade”. 

“É recorrente a baixa credibilidade que é conferida às produções acadêmicas no que se refere à adoção de políticas públicas. O que vemos é que o cuidado de realizar um estudo de impacto parece ainda mais distante da realidade”, pontuou o professor de Direito Processual Penal e Criminologia e doutorando pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Vinícius de Assis Romão, antes de prosseguir.

“É muito grave pensar em economia com deslocamento dos presos para o judiciário, quando o real custo advém de políticas de segurança pública e decisões judiciais que produzem superlotação carcerária e manutenção de prisão a quem, por lei, deveria estar solto, como se constatou em diversas pesquisas durante a pandemia. A inauguração de um centro com essas proporções acelera um movimento preocupante que tende a aprofundar os distanciamentos e blindar ainda mais o poder judiciário e as polícias em relação às suas práticas”.

A Convenção Interamericana de Direitos Humanos – conhecida como Pacto de San José -, assinada e ratificada pelo Brasil, estabelece que toda pessoa deve ser conduzida, o quanto antes, à presença de um juiz para a análise da legalidade da prisão, papel desempenhado pelas audiências de custódia. Esse é o momento no qual o preso pode ser ouvido cara a cara pela primeira vez, podendo ter a prisão relaxada ou mantida. 

A realização das audiências de custódia por meio virtual tem gerado um debate acentuado no meio jurídico: os mais garantistas, aqueles preocupados com aspectos mais ligados à defesa e garantias fundamentais, posicionam-se, em geral, de forma contrária ao uso, por entender que há prejuízos na ampla defesa; os mais voltados ao lado da acusação dizem não haver diferenças e apontam maior eficiência da Justiça como um dos benefícios.

“A videoconferência não permite acesso a marcas visíveis de agressões bem como dificulta a coleta e registro das denúncias de tortura, já que, além desestimular relatos das pessoas custodiadas, torna inviável a aplicação do procedimento previsto pela Resolução 213/2015 do CNJ, elaborado de acordo com o Protocolo de Istambul das Nações Unidas. A campanha “Tortura não se vê pela TV” expôs os riscos do modelo telepresencial, demonstrando que com a suspensão de audiências presenciais na pandemia, as denúncias de tortura caíram 84% no país”, destaca Vinícius, que teve como objeto de estudo no mestrado justamente as audiências de custódia. 

A possibilidade de relatar e demonstrar tortura ou maus tratos durante a audiência é só o primeiro dos pontos que diferenciam uma audiência virtual da presencial no âmbito penal. Romão também vê riscos de aumento no número de prisões preventivas com o uso mais frequente do sistema telepresencial, além de tornar mais distantes os juízes, promotores, defensores e, principalmente, os presos ou acusados.

O sistema prisional alagoano é estudado pelo advogado criminalista Roberto Moura desde a sua graduação – ele tem apontado, inclusive, para os alarmantes números de presos preventivos em Alagoas, aqueles que ainda não tiveram a culpa auferida pela Justiça. Assim,  as condições carcerárias degradantes somadas a um impedimento no acesso presencial ao juízo acarretaria em uma dupla violação aos direitos fundamentais.

“Quando a gente pensa em prisão cautelar, um dos fatores mais importantes é a pessoalidade e a dignidade humana. Por que digo isso? Porque quando a gente pensa no Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil, um dos maiores interesses era gerar maior humanização do sistema judiciário para que os presos pudessem ter um contato presencial – já que há uma relação de pessoalidade – com o magistrado, ou seja, o acesso à Justiça é mais do que uma prestação jurisdicional, é também um contato com o magistrado. Então, essa relação de humanização acaba sendo uma “desumanização duplicada” porque já temos um sistema de cumprimento e de prisões extremamente degradante e aí seria uma completa vitimização duas vezes: pelas condições em que [os reeducandos] ali se encontram e pelo óbice entre o reeducando, a pessoa que está cumprindo pena processual e o magistrado”, comentou.

Roberto critica veementemente o Poder Judiciário pelo que chamou de “passagem da boiada” no meio da pandemia: com as restrições impostas pelo coronavírus, uma liminar do ministro Nunes Marques, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorizou, no fim de junho, a realização de audiências de custódia de forma virtual. Esse passo adiante na consolidação das audiências virtuais penais representa, também, mais um golpe à defesa.

“Se você não tem um contato direto com o seu cliente, ou seja, o advogado vai ter óbice seja no acesso do magistrado que vai se contaminar com as palavras trocadas entre o advogado e cliente ou um desconforto do advogado por achar que a conversa está sendo gravada ou supervisionada de alguma maneira. Isso gera um desconforto e também afronta a ampla defesa, a prerrogativa do advogado de poder se comunicar com o cliente de forma sigilosa”.

Questionada a esse respeito, a Seris afirmou que utiliza “uma tecnologia muito segura, o sistema Polycom, cedido pelo Tribunal de Justiça de Alagoas e que assegura o sigilo das audiências realizadas no Centro”.

Centro de Telepresença abre brechas para processos em ritmo de “fast food”

A Seris informou à reportagem que o novo sistema instalado no sistema prisional alagoano permite a realização de “até 48 audiências por dia. Havendo a necessidade, pode-se aumentar esta quantidade, considerando o protocolo sanitário de prevenção à Covid-19”. Seria exagero questionar que estaríamos diante de um modelo “fast-food” de julgamento? Não para Roberto.

“A gente está criando, de fato, um sistema penal fast food que só vem a corroborar com a lógica eficientista e autoritária, pois não está pensando nas garantias fundamentais, mas no resultado a todo e qualquer custo”.

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