Rompendo Silêncios

"A ideia era essa. Não era para ninguém sair tranquilo desse encontro". Em dois atos, Marília Silveira rompe silêncios com duas histórias de ficção baseadas em fatos bem reais
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Por Marília Silveira*

Um fino fio de sangue escorre entre as minhas pernas. Sangrarei ciclicamente uma parte da vida. Somos mulheres. Mesmo sem útero, sangramos violências por onde andamos. Esta é uma história de ficção em dois atos, baseada em finos fios de sangue reais.

ATO 1:

Numa universidade qualquer, um grupo organiza um evento qualquer sobre assédio. Um estudante, acusado numa denúncia de assédio, é o primeiro a entrar na sala, sorridente e falante. Os homens brancos, incluindo o acusado, são os primeiros a chegar e conversam sorridentes e falantes. Algumas mulheres negras e brancas entram juntas na sala, entre elas, a vítima do assédio.
Uma funcionária assiste o movimento e pergunta:
– Minha filha está me esperando. Ela pode participar também?
– Como é seu nome? – Indaga uma estudante branca.
– Dandara – A menina negra se apresenta. Dandara entra enquanto a mãe finaliza a faxina.
Uma narrativa ficcional, a partir do relato da vítima de assédio, foi preparada para iniciar o debate. O relato é lido. O silêncio torna o ar da sala sufocante. Em silêncio, professoras e alunas sangram finos fios em direção a uma grande poça de sangue no meio da sala. Pequenos papéis são entregues para as pessoas escreverem, de forma anônima, o relato de algum assédio.
Todas as mulheres presentes escrevem. Todos os homens seguram seus papéis.
Os homens brancos se inquietam nas cadeiras, porque suas mãos ficam sujas de sangue enquanto cada história escrita pelas mulheres é lida. Um deles interrompe uma leitura limpando as mãos na camisa: – eu fui criado por mulheres fortes, por isso aprendi a respeitar as mulheres.
– Eu também – engatam em uníssono outros três professores brancos.
– Curioso -inicia Dandara- todas as mulheres presentes relataram violências, e todos os homens brancos presentes respeitam as mulheres. Vocês conhecem algum assediador?
-Nenhum! – Orgulha-se um professor branco. Os homens assentem a mesma resposta.
– O que será que isso significa? – Insiste Dandara.
Um professor branco inicia um choro contido. – Sinto muito essas coisas acontecerem ainda com vocês – murmura.

O acusado se levanta, cruza a sala e o abraça.
– Eu me solidarizo com vocês – um estudante branco diz.
– Solidariza? – repete Dandara com voz irônica – com quem?
– Este evento está acontecendo porque houve uma situação de assédio e queríamos trazer o tema ao debate – uma professora branca interrompe,
contendo a discussão.
– Esse choro de vocês, esse abraço, o que é? Culpa? – insiste Dandara.
– Vocês querem nos tornar algozes! – diz o acusado. – Um homem não pode ser bom, respeitador? E esse sangue brotado nas minhas mãos? De onde ele vem?
– Vocês percebem o movimento? – interroga Dandara – As mulheres, as vítimas, relataram os assédios e, de repente, um homem branco fala, todos concordam, outro chora, outro abraça e pronto: todos os homens são vítimas perguntando como suas mãos ficaram sujas de sangue?
O acusado sai da sala. Os homens saem. Pisam no sangue e marcam o chão. O evento termina. Os finos fios da violência nos acompanham por onde andamos. Aos homens brancos falta sempre autoreflexão, seus modos de existir são carregados de preconceitos e eles se protegem entre si. Nunca assumindo culpas, nunca se reposicionando. Seus lugares são privilegiados e eles nunca pensaram sobre isso. Às vezes os homens brancos aqui nomeados também são negros.

***

ATO 2:

Numa empresa qualquer, o chefe chama as mulheres que organizaram um evento sobre assédio no trabalho, com o rosto pesaroso e as mãos sujas de sangue lamenta:
– Me senti mal durante o evento.
– A ideia era essa. Não era para ninguém sair tranquilo desse encontro – respondo.
– Se não pudemos levar adiante uma denúncia de assédio, nos resta constranger os assediadores – argumenta a colega.
O chefe muda o tom de voz e vocifera: – Vocês passaram do limite, a proposta era uma palestra sobre assédio. Não era para constranger, nem acusar ninguém!
– Houve uma situação de assédio, precisávamos falar sobre isso – pondero.
– Ok, mas não se pode tomar partido, nem julgar. É preciso escutar as partes – discursa ele, o patriarca.
– Quer dizer, se escutássemos todas as partes isso nos daria uma visão supostamente imparcial de um todo em que uma violência, então, pudesse não ser mais considerada uma violência? – sustento, mantendo o tom de voz inalterado.
O chefe perde a linha e dispara: – desse jeito nós teremos problemas em renovar o seu contrato – ouço o riso cínico do patriarca.
– Isso é uma ameaça? Sustento.
– Vai me acusar de assédio? Ele ironiza e suaviza o tom – Mas… nós somos amigos… ele murmura. E muda de assunto: – por que vocês chamaram aquela menina? O que era aquela neguinha, que audácia! O que ela estava fazendo lá? A discussão virou um barraco! Aquela faxineira está demitida!

***
Fios de sangue escorrem pelas minhas pernas, encontram os fios da colega na sala comigo, da estudante assediada, da faxineira demitida, das mulheres violentadas. Vertentes percorrem o caminho da empresa até a poça gigante da universidade: um rio de sangue une os corpos de todas as mulheres em qualquer lugar. O ocre na boca coagulado em texto. Afio a ponta do lápis como outrora afiamos lâminas. Limpo a
lâmina de sangue e escrevo outra vez. O silêncio não me protege.

 

 

 

Marília Silveira – Uma mulher marcada pela pele branca, pelo sotaque sulista brasileiro, pela ausência de deficiência, pelas escolhas afetivas lésbicas, pelo posicionamento feminista e em processo de letramento racial. Provocadora de práticas psis (de escrita, de pesquisa e de vida) que objetivam a produção de mundos mais democráticos e inclusivos, menos machistas e preconceituosos.

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