“A gente tem que parar de falar que a Polícia é despreparada”, alerta educador.

Em evento sobre letalidade juvenil, tema foi o que mais agitou os jovens; participantes reiteraram que comunidades querem se apropriar das decisões sobre segurança pública
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Atividade do CEDECA Zumbi dos Palmares debateu letalidade contra jovens em Alagoas. Foto: Wanessa Oliveira

A segurança pública foi o tema que mais gerou repercussão entre os jovens dos territórios periféricos de Maceió, reunidos a partir de um encontro realizado pelo CEDECA Zumbi dos Palmares no último dia 16 de novembro. Durante o evento, que promoveu uma discussão entre sociedade civil e poderes públicos sobre enfrentamento à letalidade contra a juventude, a violência policial foi retratada pelos jovens como um dos maiores obstáculos para a credibilidade da Polícia em relação às comunidades, que desejam se apropriar e tomar decisões também sobre o segmento.

Com falas que reivindicam que as comunidades tenham voz e poder decisório sobre a segurança pública nos territórios, as juventudes e representantes de entidades debateram sobre expectativas e realidades.

Para o educador de hip hop do Projeto Erê, José Otaviano, é preciso entender as condutas efetuadas pelos operadores da segurança pública a partir da compreensão de como as forças policiais se constituem desde as raízes mais profundas, e não por uma ‘falta de preparação’ para atender à população.

“A comunidade em que trabalho, que foi onde cresci também, sofre constantemente com abuso policial. Enquanto defensor de Direitos Humanos, a gente tem que bater nessa tecla que é não falar mais que a polícia é despreparada”, afirma. “ A ideologia que tem dentro dos quartéis gera as forças policiais. Isso tem método, estratégia, e tem inimigo a ser combatido. É uma política de morte gerida pelo Estado”, relata.

Educador de hip hop, José Otaviano fala sobre os símbolos e como condutas não refletem ‘despreparo’ das forças policiais. Foto: Wanessa Oliveira

Para o educador, os símbolos e condutas demonstram a natureza dessa relação. “A gente não pode achar comum ter forças policiais que tem o símbolo de uma caveira, de um pitbull, ou quem trabalha todo o tempo com o método de implantar terror em comunidades. O edifício da Polícia Militar tem que passar por uma reforma, que não é de tapar os buracos, mas construir uma forma em que a sociedade civil possa ter controle”.

A perspectiva do educador vem ao encontro da defesa por desmilitarização da Polícia Militar. No âmbito legislativo, o tema que chegou a basear uma Proposta de Emenda à Constituição, em 2013, foi arquivado desde 2018. Ainda assim, a bandeira da desmilitarização continua levantada por numerosos segmentos entre defensores de Direitos Humanos e da segurança pública popular.

“A gente não pode ficar à mercê de uma polícia que é julgada por seus próprios pares, ou de uma polícia que sai do quartel, arranca a identificação, sai de balaclava e passa atirando de moto, aterrorizando todo mundo, ou quem eles colocam como inimigo”, defende José Otaviano. “Então a gente precisa desmilitarizar, para que ela seja civil e dê resposta à sociedade civil enquanto igual e não como superior”, defende.

Outro método mencionado, de maneira mais imediata, é a câmera no fardamento. “É algo que já existe nos outros estados, e que se tem informação de que tem a letalidade caindo. Apesar que muitos policiais ainda burlam isso, se colocando na frente na hora de fazer alguma coisa, mas já dá para avançar alguma coisa”, menciona. “Para que a comunidade comece a respeitar a polícia, a polícia precisa respeitar a comunidade e ser criada uma outra ideologia, que não essa fundamentada atualmente nos quartéis”.

Mesmo os adolescentes que participaram do evento também se pronunciaram sobre o tema. O jovem V, de 14 anos, cuja identidade não será revelada, declarou: “O objetivo da polícia é proteger, mas muitas vezes, por parte de alguns específicos, acaba não acontecendo. A polícia é necessária na comunidade, desde que se tenha uma certa vigilância por parte dos governos e outras autoridades. Que sejam supervisionados, para não abusar do poder, e que tenham a devida punição caso haja alguma dessas ações. Eu acredito que assim traria ações beneficentes para a comunidade. E, por sua, vez, a comunidade passaria a não odiar mais a polícia”, reflete.

Gordão da Rima ressalta importância das comunidades terem poder decisório sobre a segurança pública. Foto: Wanessa Oliveira

Também integrando o evento, o artista MC Gordão da Rima completou: “As pessoas pensam que, na comunidade periférica, está a maioria das pessoas à margem da sociedade. E as pessoas que estão à margem da sociedade não se resumem a só pobres, pretos e periféricos, como se fosse só um gênero. É uma pessoa que faz um rap, é um misto de pessoas, a cara estampada da miscigenação. Você vai encontrar branco, preto, vai encontrar gordo, magro, cristão, macumbeiro, vai encontrar LGBTQIAP+. O primeiro passo é a gente sentar, dialogar e chegar no senso comum do que a comunidade quer, como a comunidade vai se sentir segura para que a gente possa propor para as instituições”.

Gordão da Rima também sinalizou como o papel de vigilância da comunidade tem se sobreposto à própria condição de segurança. “Quando eles entram na comunidade, não é para prestar serviço para a população. Desempenham mais um papel de fiscalização de como se comporta a comunidade periférica, na verdade. Nunca entram para saber se nossa comunidade está bem, e sim para ver como ela está se comportando, se tem crime, se está havendo algo. Não é para defender a gente, mas para defender o estado e os números do estado.

No relatório Pele Alvo: A Bala não Erra o Negro, o racismo nas políticas da segurança pública foram quantificadas a partir do registro de que 87% dos mortos pela polícia são negros, uma proporção maior do que a proporção populacional nos estados pesquisados. Foram levantados dados dos estados da Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo. Em 2021, em Alagoas, o Núcleo de Estatística e Analise Criminal da Secretaria de Estado da Segurança Pública chegou a registrar 936 casos de “resistência com resultado morte”, nomenclatura utilizada para substituir o termo “auto de resistência” – e que diz respeito às mortes causadas por policiais durante operações justificadas a partir de confronto com suspeitos.

Casos emblemáticos também demonstram as abordagens hostis efetuadas pela Polícia, uma vez que poucos são denunciados. Ainda no início deste ano, um dos casos denunciados foi a invasão ao terreiro Abassá de Angola, e as torturas feitas contra um adolescente de 18 anos, filho da yalorixá, levado para uma casa abandonada onde foi espancado e torturado.

Durante o evento, a população em situação de rua também foi mencionada a partir das práticas agressivas realizadas pelo policiamento.

Promotora Karla Padilha: “leis precisam ser concretizadas”. Foto: Wanessa Oliveira

Presente na reunião, a promotora de Controle Externo da Atividade Policial, do Ministério Público de Alagoas, Karla Padilha ,declarou como a concretização das leis é fundamental. “A legislação do Estatuto da Criança e do Adolescentes é uma das mais modernas do mundo, mas na prática a gente não tem isso regularizado. Há várias leis depois do ECA. Um exemplo que cito é a Lei Henry Borel, em que as crianças e adolescentes têm direito a prestar depoimento especial. Enquanto vítimas ou testemunhas, precisam ser ouvidas por psicóloga, numa sala separada, sem contato com agressor. No entanto, na prática, nem toda delegacia tem seguido. A lei existe. A dificuldade é impor que seja cumprida”.
Para o articulador juvenil do CEDECA Zumbi dos Palmares, Gabriel Cunha, há um motivo por toda a repercussão gerada pelo tema da segurança pública durante o evento.

“A ênfase dada pelos adolescentes em torno da pauta da segurança pública se dá pela identificação e sentimento de revolta. Tivemos três territórios representados, não só pela vulnerabilidade socioeconômica, quanto na questão da violência, então são comunidades que sofrem continuamente com a violência institucional, com a presença hostil da PM que invade casas e persegue a juventude negra nessas periferias, através de baculejos e abordagens violentas e assassinatos nas comunidades. Gera uma sentimento de revolta na juventude que tenta entender esse movimento e também enfrentar”, avalia.

“Esse espaço para discutir, tanto a violência como a letalidade da juventude negra, foi importantíssimo. Tanto pelo intercâmbio entre os territórios, a troca de conhecimentos, que foram adquiridos durante os últimos meses através de oficinas, encontros e formações, como também para tirar dúvida com o poder público, uma vez que tivemos presença também do Ministério Público e foi possível entender como funciona o aparato de segurança”.

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