BNDES perdoa R$ 10 milhões e legitima Recuperação Judicial que esvazia dívidas trabalhistas

Denúncia de credores remonta a calote e ofertas abusivas, além da falta de fiscalização do MP durante todo o processo
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Wanessa Oliveira (Mídia Caeté) e Felipe Farias (Acta)* 

 

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social sinalizou que pretende perdoar mais de R$ 10 milhões de dívidas do senador Fernando Collor e seus sócios, no processo de Recuperação Judicial das Gazetas, empresas que compunham o complexo de comunicação da Organização Arnon de Mello (OAM). O processo segue na iminência da terceira e última sessão de assembleia de credores, entre trabalhistas e quirografários, e o Banco já sinalizou que pretende aceitar receber apenas R$ 4,3 milhões dos R$ 14,4 milhões devidos. Além desta proposta, a Empresa também indica que pretende limitar o pagamento até 10 salários mínimos aos ex-funcionários demitidos, ainda que algumas dívidas cheguem a superar R$ 500 mil.

 

As informações vêm a partir de credores trabalhistas, que relataram ter procurado o BNDES para informar sobre a intenção de elaborar um plano alternativo, que ofertaria o pagamento devido da dívida, não só para os credores trabalhistas, como também para quirografários – que é o caso da financeira. No entanto, os credores foram surpreendidos pela resposta do banco de que pretendia receber o valor ofertado pela OAM e os demais sócios, adiantando o intento de que pretendem aceitar a proposta.

Para o advogado Marcelo Andreatta, que representou o grupo de credores, esta situação vem sendo fora da curva. “Esse deságio agressivo não é normal. É excepcional. Trata-se de um banco público que, na última assembleia, recebeu a informação de que haveria construção de plano alternativo. Em seguida, credores tentaram contato informando sobre melhor pagamento, mas o BNDES não quis aceitar e sinalizou intenção de que abre mão deliberadamente de mais de R$ 10 milhões”, relata.

O advogado explica ainda que não há lei que proíba o banco público de efetuar negociação de acordo com suas variáveis, entretanto, permanece incompreensível o aceite das condições ofertadas. “Posso dizer com segurança que o Banco do Brasil, por exemplo, jamais aprovaria um plano, mesmo por sua postura histórica de absoluto cuidado com recuperação judicial e um excesso de cautela por saber que poderia se comprometer “, explica.

Com 70 anos de existência, o BNDES passou a ser comandado, há um ano, por Gustavo Montezano, à época secretário adjunto da de Desestatização e Desinvestimento do Governo. O presidente Jair Bolsonaro comemorou publicamente a posse de Montezano, rememorando a amizade de infância do agora gestor com seus filhos, Eduardo e Flávio Bolsonaro.

 

Jair Bolsonaro, atual padrinho de Collor nas eleições para Governo do Estado;, e Gustavo Montezano, atual presidente do BNDES

De natureza pública, o BNDES tem seus recursos levantados principalmente a partir do Tesouro Nacional, do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), e do PIS/PASEP, além de outras fontes de natureza trabalhista como o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS ) e seu Fundo de Investimento (FI-FGTS). Em sua página oficial, o Banco chega a trazer algumas informações sobre estes recursos.

Informações retiradas no site oficial do BNDES

A reportagem da Mídia Caeté e do Portal Acta entrou em contato com o BNDES para questionar sobre os mais de R$ 10 milhões que a Financeira abriria mão, apesar de sua alegação de que “não dá” dinheiro para empresa. O Banco limitou-se a responder, por meio de assessoria, que “não comenta negociações em curso. ”

Com a aceitação da proposta, e figurando como o maior credor, o banco garante a Collor e demais sócios o “sucesso” no plano de Recuperação Judicial da empresa – ao menos nesta etapa da assembleia – ainda que a oferta apresente montante irrisório aos trabalhadores, perto do que foi sentenciado pela Justiça do Trabalho, aproveitando a legislação que hoje suspende totalmente os valores originais e reconhecidos.

Demissão, calote, e ofertas abusivas: a denúncia dos credores no processo de Recuperação Judicial.

Tendo como uma das grandes marcas de sua história o confisco à poupança de brasileiras e brasileiros em 1990, Fernando Collor obrigou a população a fazer um “empréstimo forçado” de recursos ao Governo Federal por mais de um ano, levando um incontável número de pessoas ao adoecimento físico e mental. Dois anos depois, com a moeda já desvalorizada e uma série de denúncias de corrupção, Collor é enxotado da presidência da república em um processo de impeachment, mas leva cerca de 30 anos para pedir “desculpas” pelo ato do confisco. Muitos morreram sem receber um centavo. Alguns tentam até hoje reaver o dinheiro na Justiça.

Capa do jornal O Globo em 1990, quando Collor bloqueou recursos da poupança de milhares de brasileiras e brasileiros. Crédito: divulgação

Hoje senador da república e candidato ao Governo do Estado sob apadrinhamento de Bolsonaro, Collor é chamado mais uma vez de “caloteiro”. Desta vez, por centenas de trabalhadores que foram demitidos da OAM ao longo dos últimos cinco anos e que, até o momento, não receberam seus direitos trabalhistas.

Grande parte dos chamados credores trabalhistas foram alvo de demissões em massa da empresa: é o caso de gráficos, de jornalistas da Gazeta de Alagoas em 2018, e da retaliação a jornalistas grevistas da TV Gazeta de Alagoas, em 2019. Faz parte deste universo de trabalhadores sem rescisão: técnicos de diversas áreas, porteiros, funcionários de serviços gerais, motoristas, funcionários de setores administrativos, entre outros. Com sentenças e acordos judiciais homologados na Justiça do Trabalho, grande parte dos trabalhadores viram os prazos passarem batido e nenhum centavo ter sido pago pela empresa.

Diante de mais dívidas não pagas – incluindo R$ 296 milhões com a União -, a Justiça Federal chegou a levar a leilão três prédios da Organização. Um dia antes da data programada, no entanto, a empresa teve o pedido de recuperação judicial acolhido pela 10ª Vara Cível da Capital, recurso que caiu como um golpe contra os ex-funcionários em plena pandemia do Coronavírus.

Elementos de sadismo

Instituída pela Lei 11.101 em 2005, a Recuperação Judicial é um recurso oferecido às empresas à beira da falência para que possam se recuperar da crise econômica, a partir da suspensão das dívidas, e reorganização da gestão da empresa sob o monitoramento de um administrador judicial. Em 2020, entretanto, entra em vigor uma nova Lei 14.112 de RJ, cujo relator foi o deputado federal Isnaldo Bulhões Junior, filho da atual suplente do senador, Renilde Bulhões. Segundo dados da consultoria Serasa Experian, o número de empresas que recorrem a esse procedimento só tem crescido desde então, e em 2021 atingiu a marca de 3,6 mil pedidos.

A partir de seu acolhimento, toda as sentenças trabalhistas são suspensas e os trabalhadores passam então a figurar na lista de credores, devendo aguardar o que a empresa ofertasse de pagamento. Em tese, no caso de recusa da maioria dos credores em relação às propostas –levando em conta pesos distintos de votos entre quirografários e trabalhistas – a empresa pode, aí sim, ir à falência. Pela nova lei, há a possibilidade ainda de credores apresentarem um plano alternativo, trazendo um cenário que aproxime mais de suas necessidades.

No caso da OAM, o pedido de RJ foi endereçado em 2019 à 10ª Vara Cível da Capital, que tem como titular o juiz Erick Oliveira. A função de administrador judicial foi designada ao escritório de advocacia Lindoso & Associados, com sede no Recife (PE). O administrador judicial, como o nome diz, é a presença da Justiça na empresa, devendo enviar relatórios periódicos ao juiz do caso, do que está acontecendo, até a finalização da assembleia de credores com o desfecho da proposta.

Com vasta experiência em atuação e ensino de Recuperação Judicial, o advogado Marcelo Andreatta, conta que há características muito específicas neste caso em questão, se comparado aos demais. “Existem três variáveis que, no meu ponto de vista, não são comuns. Primeiro é esta negociação com um deságio absurdo de pagamento de créditos anteriores à aprovação. Não é praxe na Recuperação Judicial. A prática na lei é que o pagamento do crédito ocorra conforme o plano que venha a ser aprovado na assembleia”, afirma.

Andreatta refere-se ao fato de que, há meses, a OAM vem efetuado “negociações” com credores escolhidos sob critérios desconhecidos, oferecendo um valor aleatório e, frequentemente, ínfimo. Sob anuência do administrador judicial e também do juiz designado, parte do valor a estes credores vem sendo liquidada antes mesmo da assembleia.

“O artigo 49 da lei diz que todos os créditos referentes à RJ devem ser suspensos. Ou seja, não devem ser pagas dívidas até a aprovação do plano. Então muito me estranha essa mediação com pagamento parcial. sem ter plano aprovado. Não é praxe, não está na paisagem da RJ e da legislação brasileira”, reforça. “Por que fizeram isso? Porque, ao fazer, pressionaram trabalhadores que estavam com dificuldades até o limite para atender a mediação e condicionar o pagamento à aprovação do plano. Em nosso entendimento, é chantagem”, define.

A situação é confirmada nas primeiras assembleias de credores trabalhistas, quando um numero significativo passou a ser representado exatamente pelo advogado que representa a empresa. “Há um tom de sadismo. Eles fizeram isso no período mais grave da história recente brasileira, quando pessoas morreram por falta de vacina, passaram dificuldade por falta de comida. Isso tudo fez com que muita gente boa fosse forçada a aceitar, porque ou isso ou não teria comida em casa, ou não teria dignidade na relação com os familiares. Neste sentido vejo que tem tempero de sadismo”.

Andreatta acrescenta então mais um ponto que considera singular em relação a outros processos de RJ: os valores ofertados aos credores. Isso porque, no segundo aditamento enviado em junho deste ano, a empresa chegou a ofertar o pagamento de até 10 salários mínimos aos credores, o que corresponde a R$12.120,00, divididos em 12 meses.

A quantia impressiona ainda mais ao ser comparada com os valores das dívidas, já consolidadas pela Justiça Trabalhista, que mostram quantias de até quase R$ 700 mil em alguns casos. Com a quantia padrão oferecida, a Gazeta pretende pagar porcentagens que chegam a menos de 0,01% em alguns dos valores sentenciados pela Justiça Trabalhista.

Em cálculos de regra de 3, é possível identificar a porcentagem do que a empresa oferece perto das dívidas que não pretende pagar aos trabalhadores.

“Até 2020, não era permitido o deságio, que é esse desconto todo no valor e em até um ano o trabalhador tinha que receber o valor integral, porque se trata de verba de natureza alimentar, de comida, de tempo de trabalho prestado”, comentou Andreatta, acrescentando que, não fosse todo este contexto precarização no mundo do trabalho, credores trabalhistas não teriam este tipo de tratamento.

Entra, ainda, um terceiro fator estranhado por Andreatta: a ausência de elementos contundentes que apontem que a empresa de fato vem reorganizado suas contas. “A Recuperação Judicial tem o intuito de suspender as dívidas por um período determinado com o objetivo da empresa se reorganizar, para que ela não finalize a atividade. Gera a contrapartida de que ela implemente novos elementos de governança corporativa, de troca de gestão, busca de player para o seu nicho e qualificação. Não é o que vimos neste plano apresentado pela Recuperanda”, relata.

Segundo Andreatta, o que se vê na proposta da empresa, sobretudo avalizada pela atual legislação que trata da Recuperação Judicial, é mais uma fragilização das sentenças trabalhistas. “Trata-se de um perecimento dos direitos coletivos do mundo do trabalho, e está no bojo do cenário de precarização, uberização, instabilidade. Se o mundo do trabalho não estivesse tão ruim, não haveria essas legislações. A Lei anterior garantia proteção do crédito fiscal e trabalhista. Nesta nova lei, o crédito fiscal continua protegido, mas o trabalhista vai sofrendo. Antecipando esses pagamentos, eles conseguiram fragilizar a resposta da classe e tiveram validação jurídica do sindicato, acentuando o problema”, comenta.

Ato público realizado por jornalistas alagoanos contra demissão

A reforma trabalhista implementada no Brasil foi emblemática em 2017 por instaurar o desmantelamento dos direitos de trabalhadoras e trabalhadores, aprofundando e inserindo novas tecnologias de precarização. (leia aqui matéria sobre o assunto). No entanto, pouco se fala sobre uma série de microrreformas que vieram nos anos seguintes, ou mesmo as reformas “silenciosas” inseridas em outras áreas do direito e que, anteriores ou não à trabalhista, afetam diretamente quem está no campo hipossuficiente da equação: este vem sendo o caso da Recuperação Judicial.

Ausência de fiscalização em todo o processo e perguntas que ficam sem resposta: por onde andou o Ministério Público Estadual?

Além deste, são vários os elementos que no mínimo causam estranhamento no mundo jurídico dentro do processo de Recuperação Judicial. Há outros pontos levantados, no entanto, como por exemplo a apresentação de um empréstimo efetuado aos sócios da empresa no valor de R$ 127.207.603,59 via Contrato de Mútuo, em meio à crise financeira, e onde não há no anexo o Contrato em questão, ou mesmo informações sobre quando ele foi realizado.

Outro questionamento é sobre o acompanhamento das negociações e pagamentos antecipados feitos pela empresa a credores, ou o pagamento de dívidas trabalhistas a outros funcionários demitidos, homologados por fora da Recuperação Judicial – a despeito da fila de credores.
As perguntas vêm sendo efetuadas nas assembleias, mas emana o silêncio, inclusive, do órgão a quem caberia a fiscalização deste processo: o Ministério Público Estadual. A situação ocorre em razão da ausência de promotor direcionado para o caso durante os três anos de processo.

De acordo com informações recolhidas dentro do processo e a partir de relatos dos credores, o promotor da 10º Vara declarou-se impedido em razão de ter um familiar na empresa. O caso foi então conduzido ao promotor suplente da vara, que também declarou-se suspeito. A partir de então, o órgão não designou mais nenhum promotor, deixando todo o caso correr sem qualquer fiscalização. Finalmente, em junho deste ano, às vésperas da terceira sessão de assembleia, foi designado um promotor na Vara de Arapiraca, mas nenhum procedimento chegou a ser efetuado.
A reportagem procurou o Ministério Público Estadual, enviando as perguntas por e-mail e buscando contato pelo telefone disponibilizado em seu portal oficial, mas até o momento não obteve resposta. Já a Organização Arnon de Mello também foi procurada, através de seu diretor executivo Luís Amorim. As perguntas foram enviadas por meio de whatsapp em seu telefone, mas até o momento da conclusão da reportagem, não houve resposta. A reportagem também buscou a assessoria de comunicação de Fernando Collor, que informou que as questões administrativas da OAM não cabiam ao senador e sócio majoritário da empresa.

*Quem são os autores da reportagem: uma breve carta aos leitores

Já superamos há muito a cartilha de que o bom jornalismo perpassa por qualquer ideia de neutralidade. Acreditamos no peso dos fatos e na denúncia de violação de direitos como força motriz para o nosso trabalho. A transparência é, para nós, a maior demonstração de respeito que podemos ter a cada uma de nossas leitoras e leitores. E é em nome desta transparência que comunicamos aqui o lugar de onde escrevemos esta reportagem. Somos ex-funcionários da Organização Arnon de Mello e credores trabalhistas da Recuperação Judicial. Como credores, temos vivenciado ao longo dos últimos três anos este processo de violação de direitos.
Como jornalistas, seguimos nossa cartilha ética da reportagem, contactando todas as pessoas e entidades mencionadas na reportagem, e lhes garantindo devidamente o direito de resposta. Asseguramo-nos ainda em garantir as provas documentais e testemunhais de cada um dos fatos– por sinal, também relatados por outros credores.
Frisamos ainda que a decisão de publicarmos a reportagem em nossos respectivos veículos é também fruto da dificuldade que tivemos, mesmo sendo jornalistas, em alcançar visibilidade nesta situação – uma vez que o maior complexo de comunicação pertence ao sujeito apontado na reportagem, e diversos outros veículos procurados também têm impedimentos políticos, patronais ou publicitários, ainda que colegas jornalistas tivessem e tenham a melhor das intenções e solidariedade com a causa.
Se construímos a mídia independente para falar sobre o que veículos de comunicação corporativos não podem ou não querem falar, compreendemos finalmente que este é um caso de violação cuja pertinência também vale ser visibilizada. Agradecemos aos demais veículos que se propuserem a publicar a reportagem, ou mesmo procurar-nos para elaborar suas próprias produções.

 

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