A uruguaia que sobreviveu a 11 campos de concentração

Em entrevista à Mídia Caeté, o filho e coautor do livro, Miguel Kertesz, critica revisionismo histórico sobre o nazismo
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Miriam Bek e outros sobreviventes do holocausto pouco tempo após a libertação dos campos de concentração nazistas
Foto: Arquivo Pessoal

Após cinco dias e noites, o trem repleto de judeus oriundos de Kolozsvár chegava a Auschwitz. A viagem, realizada em vagões de gado, privou-lhes do mais básico: água, luz, comida e banheiro. O dia recém-amanhecera e logo foram separados por idade e sexo. “Olha, é como na ginástica: dois para cá e um para lá; quatro para cá e dois para lá”, disse a jovem Miriam Bek para a mãe, sem saber que aquele mês de abril seria a última vez em que veria a mãe, o padrasto e os demais homens da família.

Auschwitz foi o primeiro dos 11 campos de concentração pelos quais Miriam, uma jovem de 17 anos, passou. Durante um ano, a sobrevivente viveu períodos obscuros em Cluj Nápoca, Dundaga, Stutthof, Glöwen, Ravensbrück, Malchow, Rechlin, entre outros. Ao olhar para trás, não sabe dizer precisamente como escapou com vida das mãos dos nazistas.

“Talvez tenha tido sorte. Quem sabe”.

A história, em formato de testemunho, é contada em detalhes no livro “Una voz para la memória: testimonio de una uruguaya que sobrevivió a once campos de concentración”. Escrito em parceria com o filho Miguel Kertesz, a obra está em sua terceira edição, tendo sido publicada originariamente em 2012 pela Editora Planeta, e narra as agruras de um período sombrio da humanidade.

O holocausto foi o genocídio cometido pelos nazistas ao longo da Segunda Guerra Mundial que vitimou em massa os judeus (que chamam o período de Shoah). Antes de 1941, Miriam conta no seu livro que a Hungria tinha cerca de 825 mil judeus, dos quais aproximadamente 500 mil morreram durante a ocupação alemã e 63 mil de antes da chegada dos nazistas. Em todo o continente europeu, especialistas estimam uma cifra de cinco a seis milhões de mortos ao fim da guerra.

A tragédia, dada a sua dimensão, nunca sai de pauta, e ganhou contornos dramáticos no Brasil de 2019 quando o presidente Jair Bolsonaro, então em solo israelense, declarou não ter dúvidas de que o nazismo foi de esquerda. O episódio repercutiu negativamente no mundo e o Museu do Holocausto se posicionou para afirmar exatamente o contrário. Mais recentemente, o então Secretário de Cultura do governo federal fez um discurso semelhante ao de Joseph Goebbels, ministro da propapanda de Hitler na Alemanha. Após fortes pressões e reações da sociedade, acabou corretamente demitido.  

Seria o revisionismo histórico uma via de ofensa direta às vítimas?

“Queria pensar que Bolsonaro se equivocou por ignorância. O negacionismo tenta confundir quem escuta a mensagem. Tanto o Holocausto como os extermínios de civis armênios por parte da Turquia e outros, como los coloniais na África são planificados por movimentos de direita por razões egoístas, enquanto a esquerda tem ideias solidárias”, afirmou Miguel Kertesz, em entrevista à Mídia Caeté.

O processo de abrir o coração e colocar as memórias no papel não foi, obviamente, fácil. A experiência traumática impunha barreiras. Antes de 1990, Miriam quase não falara com ninguém sobre o tema, e decidiu relatar a história para que a conheçam os filhos, netos, vizinhos e qualquer outro interessado, tendo em vista que sua geração está desaparecendo rapidamente. Mas impôs uma condição especial para expor ao mundo o que viveu: nenhum toque de poesia nem literatura deveria ser dado à publicação.

A imersão nas páginas da Hungria pré-ocupação corrobora as afirmações de que o antissemitismo fora alimentado ao longo de muito tempo. Nascida em Haifa, hoje cidade do norte de Israel, mudou-se com apenas um ano de idade para Kolozsvár. Após a morte do pai, a mãe decidira regressar à Europa. Viveram em um prédio com outros familiares e todos costumavam se reunir às sextas.

Quando a guerra chegou ao país, demoraram a ser levadas pelos soldados, até o dia em que a tia Etel chegou desesperada anunciando a captura do marido. A decisão foi imediata: toda a família permaneceria unida no “ghetto” de Kolozsvár. Não esperavam, contudo, que de lá partiriam em trens com destino a Auschwitz e os dias de terror.

Miriam Bek tinha 18 anos quando foi libertada dos campos de concentração nazistas / Foto: Arquivo Pessoal

A rotina nos campos e o sonho em Dundaga

Os relatos da vida nos campos de concentração são fortes. Os trabalhos forçados iniciavam cedo e terminavam às 19h, com meia hora para o almoço. A comida servida no jantar era uma “sopa” e um pão, que geralmente era guardado para o outro dia, a fim de se evitar a morte pela fome. Em alguns momentos, chegaram a servir comida com bromo. Os travesseiros, desconfiava serem feitos com gordura humana. 

A situação nos campos era tão extrema que testava os limites humanos e as próprias dinâmicas familiares naturais. Um dos capítulos do livro, intitulado “Me roubaram o pão”, revela um drama bastante conhecido pelas prisioneiras: era preciso proteger a própria comida.  

“Uma mãe havia perdido toda a sua dignidade diante da fome. Foi capaz de tirar o alimento da sua filha quando a luz se apagou. Esta era uma situação frequente”, relata Miriam.

Os trabalhos forçados executados por Miriam beneficiavam a IG Farben, conhecida pelo envolvimento na indústria química de ponta e a quem poderia “escrever um livro inteiro” sobre. Ao longo da obra, não faltam críticas pesadas às empresas que cresceram em meio aos horrores do nazismo, citando a Siemens, Bayer, Hoechst, BASF, entre outras.

É no capítulo destinado ao campo de Dundaga, em Riga, na Letônia, que se concentra uma das passagens mais marcantes da obra. Em meio aos relatos sobre a rotina, Miriam conta ter tido um sonho que descreve como muito real. Nele, em certa noite, os soldados nazistas assassinavam a todos. Não escapava ninguém. Só ela se salvava, por ter se fingido de morta. Desde então, um pensamento a acompanhou até o último dos dias: “Eu vou viver”, pensava insistentemente.

A libertação

Em 5 de maio de 1945, Miriam e as demais prisioneiras do campo Malchow foram libertadas pelos russos, quatro dias antes do fim da guerra. As prisioneiras haviam chegado ao campo abandonado de Malchow com os soldados nazistas. Ao amanhecer, no entanto, já não havia nenhum vigilante. Nenhuma das vítimas se atreveu a sair, com medo de serem atingidas por tiros e somente ao meio-dia, com a chegada dos soldados russos, souberam da libertação.

Fora do alcance da “sinfonia macabra”, chegava o momento de buscar uma nova vida. Após dois anos na Romênia, mudou-se para o Uruguai, destino de alguns de seus parentes antes da guerra. Como as passagens eram muito caras, em geral, um parente por temporada cruzava o atlântico em destino ao país da América do Sul. 

Quando está no Uruguai, Miriam roda o país conversando com estudantes sobre os horrores do Holocausto / Foto: Arquivo Pessoal

Foi em Montevidéu que Miriam passou a maior parte dos seus dias e hoje, aos 92 anos de idade, vive há pouco mais de dois com a filha Yenny, que carrega o nome da sua mãe, nos Estados Unidos. Quando está no pequeno país da América do Sul, visita escolas e encontra o público em geral pelo país para dar seu testemunho às novas gerações. Pratica aulas de natação, uma paixão da infância, com frequência, sem ignorar o passado.

Ainda que doa, corte e fira, as chagas do holocausto contadas no livro precisam ecoar.

“A história da minha mãe se repetiu uma e outra vez, com pequenas diferenças. Antes, durante e depois de sua liberação pelos aliados, milhares e milhares de pessoas padeceram – com pequenas diferenças, de fome, sede, devastação, roubos e, muitas vezes, castigos e morte. Manter viva a memoria histórica é um compromisso com o presente e o futuro”, conta Miguel.

Todos os anos, celebra-se no dia 27 de janeiro o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. Foi uma medida encontrada pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2005, em alusão ao aniversário de libertação do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau.

Para que nunca mais, por nenhum motivo, a ninguém, como escreveu Miguel na dedicatória do meu exemplar de “Uma voz para a memória”.

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