A influência das lives no comportamento e no consumo de conteúdo

Artistas alagoanos, comunicadores e psiquiatras comentam sobre alternativa durante isolamento
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Wado e Mopho durante live, no dia 02 de maio

Diferentemente do método negacionista empregado pelo atual Governo Federal, pensar e refletir sempre foram costumes do ser humano, sobretudo no que diz respeito ao comportamento social e à evolução da comunicação dentro da sociedade. Sendo assim, é interessante retornar a alguns pensadores clássicos para entender um fenômeno que tem ganhado força e sido uma alternativa de entretenimento e interação durante a quarentena: as lives.

Stuart Hall, teórico e sociólogo sul-africano, sempre abordou questões sobre a hegemonia e a cultura e explicou que a linguagem é um importante operador das relações sociais. Hall também defendeu uma visão de que as pessoas são produtoras e consumidoras de conteúdo ao mesmo tempo e que a cultura é um “local crítico da ação social e de intervenção, onde as relações de poder são estabelecidas e potencialmente instáveis”.

Aristoteles, Marx, Engels e Hall acreditavam que a interação social era essencial à humanidade

Outros três renomados pensadores da nossa história também merecem menção neste texto: Aristóteles, Karl Marx e Friedrich Engels. Por mais que o grego não seja contemporâneo dos dois alemães, eles concordam em um ponto chave para a nossa discussão: a relevância da sociabilidade dos homens e das mulheres. Eles acreditavam que para o ser humano viver, em sua plenitude, era essencial o convívio social e que isso definia os rumos das civilizações ao longo dos anos. 

Aristóteles tinha a ideia de que as pessoas precisavam uma das outras por serem carentes e que isso influenciava diretamente na felicidade dos indivíduos. Já Marx e Engels defendiam que os homens são essencialmente seres sociais e que o caráter individualista foi uma consequência da reestruturação política e econômica do mundo. 

Por mais distantes cronologicamente que sejam, a intersecção dessas linhas de raciocínio culmina no ponto central dessa matéria: a importância da interação e do convívio social para as pessoas. 

O surto de COVID-19 modificou a maneira de agir e a rotina de todos, principalmente pela necessidade de isolamento social. Nesse contexto, ocorreu o advento do boom das lives, onde diversos artistas – de dentro e de fora do Brasil – se apresentam para o público, ao vivo pela internet, através de redes sociais e plataformas de streaming, como YouTube e o próprio Instagram.

Para Wado, as lives são o único caminho no momento e precisam ser estudadas mais afundo

Aqui em Alagoas, não foi diferente. Músicos locais seguiram essa tendência e transmitiram suas apresentações online. Um deles foi o cantor e compositor Wado, radicado no Estado há décadas. O artista recentemente participou de uma live ao lado da banda alagoana Mopho, como uma atração do Festival Carambola. Ele acredita que a pandemia acarretará em uma longa crise e entende a relevância das lives nesse cenário.

“A live é a primeira saída para uma crise que deve durar muito. Não temos como prever quanto tempo passaremos. Há estimativas que falam em retorno das atividades em 2022 e outras que falam que a pandemia pode durar 5 anos. Então, as lives são o único caminho que consigo ver, além de serem um tipo de linguagem que precisamos conhecer, estudar e aprofundar”, afirma.

Outro aspecto citado por Wado é o alcance que esse formato tem e como ele consegue aproximar as pessoas, mesmo que em lugares distantes. O músico cita também que as transmissões mantém a informalidade dos shows presenciais. 

“Apresentações assim chegam a um grande número de pessoas. Recebi relatos de espectadores até de outros países que nos acompanharam e se emocionaram. A informalidade desse tipo de linguagem lembra muito a TV ao vivo e o que acontece nos shows. É uma adrenalina boa! Foi uma experiência muito positiva e que teve um resultado mais satisfatório do que a gente imaginava”, disse o cantor.

 

Naná Martins pretende fazer novas lives e usar o formato para estar mais perto do público. | Foto: Arquivo pessoal.

Outra artista que utilizou as lives para manter o contato com o público foi a cantora Naná Martins. Ela confessa que sente a falta do calor humano e da intensidade que uma apresentação convencional permite, mas afirma que o importante agora é levar a música da forma mais bonita possível ao público, para que ele se sinta acolhido mesmo do outro lado da tela.

“A gente sente saudade de todo o calor humano, das pessoas pulando e dançando e de toda aquela energia que o show proporciona. Procuramos manter um repertório intenso e alegre, que se encaixasse, nesse novo formato, sem perder a essência e a parte dançante do espetáculo. Mesmo online, o objetivo é fazer com que as pessoas sintam-se perto de nós”, revela.

Assim como Wado, Naná Martins acredita que as lives surgem como uma relevante opção para o cenário atual e um poderoso elo de ligação entre os cantores, os atores e os demais artistas com a sociedade. A musicista crê que esse modelo tende a se tornar uma tendência, cada vez mais, presente.

“Acho que depois de tudo isso, as lives serão uma importante opção. Um aliado ainda mais forte pra publicizar os artistas, expandir o trabalho, aproximar e ganhar mais público. Estou com outras [lives] em mente. É sempre importante inovar, prender quem nos acompanha e entregar coisas diferentes”, finaliza Naná.

 

As lives e o novo cenário da comunicação 

As mídias digitais são ferramentas com um grande poder de influência na sociedade e estruturam um cenário dinâmico, interativo e em constante mutação. As lives fazem parte desse ambiente. Segundo o professor e especialista em Comunicação Digital, Gustavo Accioly, esse movimento é de suma importância, tanto por proporcionar uma alternativa de atividade para o mercado, como por possibilitar um maior engajamento do público. 

Gustavo Accioly é especialista em Comunicação Digital e professor há mais de 17 anos. | Foto: Arquivo pessoal.

“Esse é um fenômeno que vem crescendo, pois permite a participação de um maior número de usuários, justamente por não exigir um grande aparato para ser colocado em prática – basta acesso à internet e um celular, dependendo do objetivo. Além disso, é interessante frisar o estreitamento dos laços e a participação das pessoas. Um fã agora possui um instrumento mais próximo de contato com o seu ídolo, seja ele um artista, um influencer ou até mesmo uma marca”, afirmou Gustavo. 

O professor reitera que a popularização das lives estabelece um novo modo de produzir e consumir informação e que tende a ser um processo inerente aos indivíduos. O especialista em Comunicação Digital diz ainda que “entramos num viés sem volta” e lembra que existem outros formatos igualmente inovadores, como os webinários. 

“Estamos vivendo um momento difícil, devido à pandemia, e que está influenciando o jeito como nos comunicamos, principalmente no âmbito digital. A tendência é que esse comportamento se intensifique e se expanda ainda mais, com as lives ou mesmo com outros formatos, como os webinários”, finaliza. 

As lives e o comportamento social

Podemos afirmar que as lives são alternativas úteis para enfrentar o isolamento e uma forma de entretenimento válida e de fácil acesso, porém também é preciso compreender os seus impactos comportamentais. Para o psiquiatra Pedro Victor Santos, elas surgiram como uma forma lúdica de adaptação ao novo cenário que nos foi imposto.  

Psiquiatra Pedro Victor Santos acredita que as lives influenciam o comportamento dos espectadores

“Adaptarmo-nos é crucial e as lives vieram supostamente como uma alternativa viável para as pessoas se distraírem durante um momento de grande estresse, além de fornecer alguma ajuda na adaptação à essa nova vida. Porém, elas não podem ser usadas como mecanismos de fuga, é um risco perder a consciência dos problemas que estamos lidando. Vejo nas lives o potencial de ajudar parte da população, que vê em artistas e produtores de conteúdo a capacidade de se adaptar ao que está acontecendo”, afirma o especialista. 

Exatamente por esse ponto descrito, no final da fala acima, que se faz necessário avaliar o comportamento não apenas do público consumidor, mas também do artista que produz o conteúdo. Pedro Victor ressalta que a maneira como os artistas se portam pode influenciar a visão e o comportamento dos espectadores. 

“Os artistas são tidos como espelhos para um grande número de pessoas, que podem passar a normalizar aquele tipo de comportamento. A forma de agir, ao longo das transmissões, pode significar ainda – para as pessoas fragilizadas pela atual situação – que uma das possibilidades é fazer uso indiscriminado de substâncias psicoativas (álcool, tabaco, maconha, entre outras) como uma maneira de lidar com as angústias despertadas pelo atual cenário”, aponta o psiquiatra.

Apesar de considerar que as novas formas de interação impostas pela pandemia possam acarretar em uma intensificação do distanciamento entre as pessoas, Pedro Victor Santos compreende que o atual momento pode trazer também aspectos positivos para a sociedade. 

“Espero que a compreensão de que viveremos em uma nova rotina venha para a população, ao menos para podermos manter alguns dos novos hábitos adquiridos: a higienização de mãos, o distanciamento social mínimo, o respeito pelo espaço alheio e a valorização dos vínculos sociais de que hoje sentimos tanta falta”.

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