A Reza Alta de todos os dias: guardiões da memória do Quebra de Xangô, povos dos terreiros se articulam por resistência em AL

Enfrentando a intolerância na manifestação da fé, os povos dos terreiros seguem resilientes e encampam uma resistência baseada na articulação crescente, na busca por direitos, e na socialização de suas celebrações
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Xangô Rezado Alto em memória ao Quebra de 1912. Foto: Wanessa Oliveira

Mais um episódio de racismo religioso toma a mídia e o debate público, com o ataque promovido por participantes do reality show Big Brother Brasil ao médico Fred Nicácio, adepto ao IFÁ, culto tradicional Iorubá. Uma vez mais os povos de axé de todo o país são impelidos a impulsionar mais uma discussão em resposta à violência contida pelos “brothers” Key Aves, Gustavo e Cristian.

Caso isolado? Alagoas, que passou dos 111 anos do que hoje é considerado o maior ataque aos terreiros de todo o país, o Quebra de Xangô, sabe que não. A experiência escrita na história – embora pouco disseminada nas salas de aulas – é inscrita nos corpos de quem carrega a memória de seus ancestrais, expressa em relatos orais e é renovada a cada novo episódio de racismo religioso vivido na atualidade. É demarcada também nas ruas, que mantêm os terreiros com as sinalizações discretas enquanto estampam em placas – por vezes gigantes e luminosas – os múltiplos templos religiosos cristãos, especialmente neopentecostais que cresceram em cerca de 400% num espaço de 20 anos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Entre as violências brutais, adoecimento e grandes evasões que sucederam a madrugada de 2 de fevereiro de 1912, povos de santo que ficaram no estado passaram a celebrar sua fé no que hoje é chamado de Xangô Rezado Baixo, ou o Candomblé Silencioso. Não se ouvia mais atabaques, apenas palmas e cantos em voz baixa. Felizmente, o silêncio que nunca foi completo se rompeu de vez, e o Xangô Rezado Alto se estabeleceu no início dos anos 2000 em AL.

A Reza erguida não coibiu inteiramente os ataques. Mais quebras aconteceram ao longo do tempo, e mais ataques e perseguições religiosas vêm acontecendo todos os dias. Inclusive, nem todos devidamente oficializados. A Ordem dos Advogados do Brasil em Alagoas (OAB-AL) registrou cinco denúncias formais durante o ano de 2022, todas tendo como alvo pessoas de religião de matriz africana. Na oportunidade, a presidente da Comissão de Igualdade Racial, Ana Clara Alves, declarou que a subnotificação se dá, muitas vezes, em razão do estigma e preconceito que gera ainda a revitimização no processo judicial, além da ausência de punibilidade. A matéria da OAB-AL pode ser visualizado na íntegra através deste link. 

Coordenadora do grupo Àbúrò N’ilê- Juventude de Terreiro do Estado de Alagoas, Lucélia Tayná, Luh dos Turbantes. Foto: arquivo pessoal

Coordenadora do grupo Àbúrò N’ilê- Juventude de Terreiro do Estado de Alagoas, conselheira estadual de Juventude Religiosa, a dançarina Lucélia Tayná, é envolvida em múltiplas atividades que reúnem ofício, religiosidade e identidade. Uma delas, inclusive, literalmente lhe identifica em vários espaços: Luh Turbantes. E foi exatamente com o turbante que Lucélia foi alvo de intolerância em meio à prova de vestibular.

“A gente sofre constantemente com os Quebras, começando com o apagamento da memória. Denunciar um ato de intolerância dói na alma. Eu, Lucélia, já passei por um, por vários, mas o que me marcou na memória foi ser abordada de forma totalmente preconceituosa e ser impedida de usar turbante durante prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2015. Uma hora após início da prova, enquanto eu estava nervosa fazendo aquela prova, a coordenadora da sala chegou atrás de mim, tocou e me disse para eu fazer o favor de ‘não chegar com isso amanhã na prova’. Eu já estava nervosa e fiquei desnorteada, terminei a prova nos chutes porque não consegui mais responder nada”, conta.

“Só queria sair dali, porque queria falar com meu pai de santo pra saber se poderia ou não usar o turante para a prova. Isso porque, antes de ser Lucélia, já consigo viver como a Luh turbantes. Leio constantemente e, no meio das minas leituras, não tinha encontrado nada dizendo que eu não podia. Tanto que fiz de fato a prova de turbante”, conta.

Seu caso, como lembra, esteve longe de ser isolado. “Nesse mesmo ano, escutei diversos outros casos em outros estados de pessoas que foram impedidas e sequer chegaram a fazer a prova. Imagine como está a saúde mental desse povo? De jovens, crianças, dos mais velhos dos terreiros. Porque é uma forma de apagar a memória do outro se não pode usar turbante, fio de conta, um axó, Dói na memória e na gente”.

E assim Lucélia atenta como os casos frequentes de racismo religioso, perseguição e intolerância religiosa foram minando a confiança no ato da denúncia. “Nosso povo foi tão calado que parou de reclamar, e tentar procurar solução onde não conseguia encontrar. Começou a resguardar e compartilhar apenas com os seus”.

Presidente do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial e conselheira municipal de Políticas Culturais de Maceió pelo segmento Afro, Salete Bernardo

A influência da intolerância a partir de fundamentalistas religiosos é um problema apontado pela Presidente do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial e conselheira municipal de Políticas Culturais de Maceió pelo segmento Afro, Salete Bernardo. “Ainda somos vistas como religião do demônio, anticristã. Precisamos ir às ruas para fazer com que a sociedade acabe com essa intolerância. Que saiba que somos unidos e que respeitamos todos os credos e queremos ser respeitados”, explica.

“Ainda hoje a polícia vai às portas dos nossos terreiros pedir para acabar ‘o barulho’ que alguém denunciou, mesmo tendo igrejas na rua que fazem muito mais barulho. Ainda hoje, temos notícias de terreiros invadidos, depredados, e seus fundamentos destruídos”, enumera.

Para o Pai Valmir, uma das faces em que sentiu o preconceito de forma mais grave foi em relação ao trabalho. “No trabalho, eu sofri preconceito com mais um colega de trabalho. Houve uma reunião. Eu não me senti incomodado pelas pessoas, mas ele sentiu e disse que ‘aqui eu sofro muito preconceito porque sou do Candomblé e o Valmir também é do Candomblé’. Acontece que, até então, eu não tinha me revelado. Me relevaram. Ele foi demitido após a reunião, e eu permaneci. Outras pessoas que também eram do Candomblé ficaram com receio de falar e ser demitido”, conta. Tempos depois, ele mesmo sofreu com ameaça de demissão de uma supervisora.

Pai Valmir

Apesar dos desafios que atravessa, afirma que a união dos povos de santo vem fortalecendo as defesas contra o racismo religioso. “O povo está mais unido. É uma situação boa porque não vamos temer ninguém e dá mais coragem ao grupo. Sozinho a gente não resolve nada, mas em família mexeu com um mexe com todos. E todos vão ajudar”.

As investidas de silenciamento vão persistindo ainda na ausência de disseminação do tema nas escolas, dentro do estado que foi berço de Quilombo e, ao mesmo tempo, do grande Quebra.

Luh Turbantes analisa: “Se formos avaliar se escolas e academias trabalham com a Lei 10.639, se falam sobre Quebra aqui no nosso estado? Mas não é lembrado. E falo porque estou dentro da universidade e são poucas as vezes em que se fala sobre Quebra de Xangô. E falo enquanto mãe de criança no terreiro, porque tenho criança no meio escolar, em educação infantil, e não vejo isso. Se não é no próprio terreiro, ou se não sou eu que sou mãe, não se fala na escola. Não se fala sobre o ato terrível”, acrescenta.

De silêncio em silêncio, a reparação vem de forma lenta, quando ela acontece. “Olha quanto tempo depois foi ressurgir o Maracatu em Alagoas. E olha quanto tempo depois o primeiro Afoxé do estado aparece? Se a gente parar pra refletir, até a educação formal tenta nos apagar da mesma forma”, diz.

A desinformação é também mencionada por Salete Bernardo, sobretudo enquanto professora de políticas públicas da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas (UNCISAL). “É por isso que precisamos fortalecer a educação antiracista, enaltecer a nossa raça. Precisamos lutar pelo país laico, então queremos só o que é de nosso direito”, afirma, acrescentando ainda o papel de coletivos e movimento negro para fiscalização de situações como fraude às cotas e investida de pressão para que novas leis venham a ser implementadas.

Os vários Quebras

Retomar a madrugada do dia 1º ao 2 de Fevereiro de 1912 é, para os povos de Santo, buscar a garantia de que o acontecimento nefasto não volte a acontecer, uma vez que episódios semelhantes já tenham sido vividos.

“O Quebra foi, na verdade, um massacre da milícia armada identificada como Liga dos Republicanos, que invadiu os terreiros do nosso estado, quebrando, tocando fogo e destruindo os nossos artefatos sagrados”, acrescenta Luh Turbantes. “Sendo assim, após todo esse massacre, o Xangô começou a ser rezado baixo, porque nosso atabaque era confiscado a todo e qualquer ritual que a gente fizesse. Começamos a rezar baixo, bater palmas e professar nossa fé dessa forma. Em 2007, isso se rompe entra o primeiro Xangô rezado alto. É significado de poder, no sentido de que já podíamos cantar, louvar os nossos orixás, de uma forma alta, festiva e poderosa”.

Parte desse levante também se dá ao reconhecimento de que, de fato, houve outros episódios que de alguma forma moveram e ameaçaram a permanência dos terreiros. O historiador e babalorixá Pai Célio enumera uma série deles.

“Houve um Quebra em 1965, com o extermínio da população negra do Quilombo. O segundo foi em 1817, com a separação de Pernambuco e Alagoas, quando nossa cultura e formação ideológica de terreiro se repartiu para Pernambuco. O terceiro, de 1912, que foi de fato e direito o Apertheid. Grupo de pessoas que saiu do estado de Alagoas, como o caso de nossa Xambá, que está situada em Olinda. Outro Quebra aconteceu no período de Vargas e outro no período de Ditadura Militar. O Quebra ainda acontece hoje quando passamos por determinadas situações em que nos olham com ideologia negativa – é o chamado Quebra velado”, menciona.

E vem a Reza alta

Se as perseguições continuam, por outro lado, a reza também se ergue tão alto quanto à resistência. Pais, mães, filhas e filhos de Santo vêm se colocando publicamente e demandando do estado mais direitos para que os Quebras não mais aconteçam.

Luh Turbantes conta como esse movimento vem acontecendo. “Temos a rede de povos de comunidades tradicionais de terreiro em que tentamos lutar cotidianamente e manter vivas nossas tradições para que nosso povo possa exercer sua fé sem sofrer perseguições. Em nossa tradição, todos nós somos irmãs, irmãos, pais, mães, filhos e filhas. Hoje, temos como avanço o fato de conseguirmos manter nossa rede, nosso fórum. Durante a pandemia, conseguimos realizar com uso de meios virtuais. Nosso povo sempre teve a resistência como base”, explica.

A articulação entre movimentos e entidades é também evidenciado pela religiosa. Inclusive ao demandar e, agora, ver se concretizar, a Delegacia Yalorixá Tia Marcelina.

“Vejo a delegacia Tia Marcelina como um marco para nossa história, de povos e comunidades tradicionais de Terreiros de Alagoas. Depois de tudo o que sofremos, em 2012 veio o pedido de perdão do Governo do Estado. Chega a Delegacia, depois o Instituto do Negro (INEG), Conepir, a articulação das casas de Axé e diversos outros mecanismos para manter viva nossa memória de resistência. Conseguimos muito mais apoio para além dos nossos, entre nós, porque se tem uma coisa que a gente sempre soube fazer foi abraçar nosso irmão, estando presente um pelo outro”, afirma.

Luh Turbantes, Pai Célio e povos em celebração.

Para o Pai Célio, a resiliência e a postura sempre ativa – inclusive na permanência das atividades religiosas públicas – são também avanços de organização. “Desde 2005 que temos celebração. Demos uma parada e, em 2012, acontece o Centenário do Quebra e o Governo do Estado pede perdão em praça público a todas as pessoas de religião afrodescendentes pelo crime cometido. Apoiamos o decreto que pede o perdão. Mediante isso, vários fatos aconteceram”, conta, mencionando também a delegacia.

Os avanços, entretanto, vêm ainda com desafios numerosos. O próprio Xangô Rezado Alto, deste ano, foi alvo de críticas à organização da Prefeitura, que procedeu com uma série de ausências de estrutura, transporte para os religiosos – muitos em idade já avançada – além de uma série de outros problemas citados, que prejudicaram a permanência de participantes.

“Neste próprio evento, você não encontra a presença da Fundação Municipal de Ação Cultural (FMAC), mesmo tendo sido ela que montou essa ação junto aos povos de terreiros. Conseguimos palco e iluminação, graças à emenda parlamentar, também, mas faltou transporte. Estamos na periferia. Faltou água. Não houve alimentação para religiosas e religiosos. Não tem banheiro químico. Enfim, uma série de problemas, que mostra o quanto é necessário repensar as organizações para promover uma festa digna para o povo de axé.”

 

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