Assassinato de professor da Ufal escancara violência contra comunidade LGBTQPIA+

Estado desponta como mais violento para comunidade, com 4,8 mortes para cada milhão de habitantes; assassinato do professor José Acioli Filho reforça esse quadro
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Um cruel e revoltante crime chocou Alagoas na última semana. O professor, cenógrafo, figurinista, artista visual e bonequeiro, José Acioli da Silva Filho, foi assassinado em sua casa, no bairro do Jaraguá, em Maceió.

Acioli, como era carinhosamente chamado pelos amigos e colegas, foi docente do Curso de Teatro Licenciatura (Ufal), doutor em Ciências da Educação e foi Diretor do Museu Théo Brandão, em uma gestão que uniu acadêmicos e artistas populares em projetos de visibilidade para arte popular alagoana.

Mapa com dados do NE em 2020 | FONTE: Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+.

Esse vil e covarde crime diz muito sobre o caráter intolerante e preconceituoso que tem ganhado força através de discursos de ódio, perseguições e agressões contra a população LGBTQPIA+. Dados do último relatório do Observatório das Mortes Violentas de LGBTI+, em 2020, apontam que 237 LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) tiveram morte violenta no Brasil, sendo vítimas da homotransfobia – 224 homicídios (94,5%) e 13 suicídios (5,5%). 

Em 2020, a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) registrou um número recorde de assassinatos contra travestis e mulheres trans: 175 casos. Só no primeiro semestre de 2021, já foram registradas 89 mortes de pessoas trans. 

Porém, um outro número serve ainda mais de alerta. Ainda segundo o relatório, nesse contexto, Alagoas desponta como o Estado mais violento do NE e do BR, acumulando 4,8 mortes para cada um milhão de habitantes. Infelizmente, o assassinato do professor José Acioli Filho entrou para essa estatística, sendo 12º neste ano – de acordo com o Grupo Gay de Alagoas (GGAL).

Na última sexta-feira, o Instituto de Medicina Legal (IML) de Maceió divulgou que o resultado da necropsia no corpo do professor indicou morte por asfixia causada por estrangulamento. Além disso, Acioli apresentava hematomas com equimoses, um tipo de ferimento que comprova que ele foi espancado antes de ser assassinado.

“Nesse caso, a gente consegue perceber claramente a questão da homofobia. Não foi o simples fato de matar, ele se preocupou em torturar justamente na partes íntimas da vítima. Não teria sido qualquer tipo de tortura”, explicou o delegado responsável pelo caso, Ronilson Medeiros, como noticiou o Portal G1/AL.

LGBTFOBIA COMO CONSTRUÇÃO SOCIAL

O secretário-geral e gestor de Recursos Humanos do Centro de Acolhimento Ezequias Rocha Rego (CAERR), Carlos Eduardo Vicente de Lima, cita a cientista política e educadora norte-americana, Carolina Heldman, para mostrar que precisamos compreender que a LGBTfobia surge de uma construção social heterocisnormativa, que precisa ser desconstruída. 

Tabela com levantamento de 2020. | FONTE: Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+.

De acordo com a Doutora Caroline Heldman – no documentário ‘The Mask You Live In’ – tal visão vem da construção e do desenvolvimento da masculinidade que ocorre nos estágios iniciais da infância por meio da violência, da não demonstração de sentimentos, da rejeição de características ditas femininas e, sobretudo, da inferiorização da mulher.”, diz o secretário.

E complementa: “A quebra desse olhar acontece através da educação acerca da diversidade que não destitua o ‘outro’ de sua humanidade, mas o tenha e o compreenda como um igual. Dessa forma, mostraremos a práxis da igualdade e daremos início a desconstrução deste preconceito”.

O CAERR é a 1ª casa de acolhimento a população LGBTQPIA+ de Alagoas.

O advogado e Doutor em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), André Rocha Sampaio, segue uma linha semelhante de pensamento. Para ele, vários fatores contribuem para um crime, com pontos preponderantes. No caso da violência contra a população LGBTQPIA+, temos uma situação de preconceito que deve ser combatida com a normalização do exercício da sexualidade.

“Nós ainda temos [na sociedade] uma heteronormatização, nós ainda usamos o hétero como padrão. Tudo isso contribui invariavelmente para que aquele que não exerce uma sexualidade hegemônica seja colocado na margem da sociedade e que, portanto, fique mais vulnerável e receba menos proteção institucional e social. Precisamos pautar mais o tema com toda importância que ele demanda para que possamos, ao menos, reduzir os quadros de violência e intolerância”, afirma André.

A MÍDIA COMO PROPULSORA DA INTOLERÂNCIA

Carlos Eduardo Vicente de Lima acredita que a mídia desempenha um papel na consolidação desse status quo, tanto através de falas carregadas de ignorância como ao não dar à discussão a relevância e o peso necessários. 

Sim [a mídia tem participação], inclusive, por alguns comentários maldosos e repletos de ignorância e, por outro lado, pela não exposição didática das raízes causais que geram a violência contra LGBTs. Saliento que precisamos visualizar que a problemática social supracitada surge da mesma raiz que a misoginia intrínseca, onde há hipervalorização das características masculinas e quem se encontra fora desse padrão pode ser inferiorizado, maltratado e morto”, comenta. 

Segundo o advogado André Sampaio, os canais de comunicação ainda pautam os assuntos do nosso cotidiano através de um circuito de retroalimentação e têm a sua parcela de responsabilidade pela propagação da intolerância. 

Secretário Carlos Eduardo Vicente de Lima | FOTO: Arquivo pessoal.

“A mídia tem uma espécie de circuito de retroalimentação com a sociedade. Sendo assim, se ela propaga qualquer tipo de violência contra a população LGBTQPIA+, ela contribui para a normalização da intolerância. Então, comentários homofóbicos de apresentadores de programas policiais, comentários com sarcasmo, ironia ou dupla conotação e até o humor – quando segrega quem exerce uma sexualidade diferente da ‘padrão’ – contribuem sim para esse cenário”, frisa.

Em um texto publicado no The Intercept Brasil, em agosto de 2020, o jornalista Fábio Marton fala justamente sobre a relação entre o fundamentalismo e os programas policialescos vespertinos, que passam na TV. Na publicação, Marton lembra como “o sensacionalismo educou os brasileiros no ódio” e “alcançou um lugar especial no coração dos fundamentalistas”.

Recentemente, o apresentador Sikêra Jr, que já trabalhou em Alagoas, perdeu anunciantes após se referir à comunidade LGBTQPIA+ como “raça desgraçada”.

 

ANUÊNCIA POLÍTICA E PRECONCEITO

André Sampaio crê que estejamos passando por um período histórico bastante conservador e reacionário, que atinge vários escalões da sociedade, desde o legislativo até o executivo. Para o advogado, isso contribui para que tenhamos um cenário de ainda maior vulnerabilidade para a população LGBTQPIA+. 

“A necessidade de políticas públicas é urgente. Propiciar meios para que os cidadãos possam exercer de forma saudável e livre a sua sexualidade traz para a sociedade algo muito maior do que essa heteronormatização que obriga pessoas a não se expressarem pelo ‘bem da família tradicional’; ou que não possam expressar o seu amor para não violar ‘valores tradicionais’. A partir do momento em que consigamos engendrar um ambiente de normalização de uma sexualidade diferente da que se tenta impor, acredito que possamos ter uma diminuição dos quadros de violência e intolerância”.

O secretário-geral do CAERR, Carlos Eduardo Vicente de Lima, concorda que a ausência de políticas públicas impacta negativamente e escancara a estigmatização da população LGBTQPIA+. Carlos fala ainda sobre a atuação do Poder Executivo nesse contexto. 

Professor André Sampaio | FOTO: Arquivo pessoal.

“O Poder Executivo liderado – ou pior – à disposição do desgoverno de Jair Bolsonaro tem causado inúmeras violências a LGBTs, a exemplo: a corrida legislativa/judiciária para nos negar/retirar os poucos direitos que conquistamos com muita luta e, muitas vezes, a custas de vidas. Na verdade, a ausência de políticas públicas para LGBTs vem reafirmar/desmascarar o quão estigmatizados e marcados pela intolerância estamos, mas iremos resistir. A desesperança é um sentimento reacionário e sabemos que há muitos direitos a serem reivindicados e lutaremos pela aplicação de um a um pelos Três Poderes”, ressalta.

MECANISMOS DE LUTA E RESISTÊNCIA

No período compreendido entre 2011 e 2019, o Disque 100 registrou, em média, 1.666 denúncias anuais de violências contra pessoas LGBTQI+, segundo a última edição do Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Para André Sampaio Rocha, denunciar crimes de LGBTfobia é fundamental.

“É muito importante denunciar esses crimes, pois é necessário um mapeamento mais preciso para que tenhamos essas estatísticas firmes e não simplesmente o automatismo. Não há um tipo penal específico para isso, porém essa atitude facilita o registro e a criação de políticas públicas que englobem essa questão. Em uma democracia, esse é o caminho. Temos instituições que devem proteger constitucionalmente e legalmente essa população”, opina.

O secretário Carlos Eduardo completa lembrando a importância da educação e de um acompanhamento pedagógico desde a infância. Ele afirma que esse é um meio de combater os sintomas da intolerância, mas que ainda existem barreiras.

“O CAEER acredita que a Comunidade Escolar ainda é muito resistente às pautas da diversidade para que possamos trabalhar com a profilaxia dos sintomas da intolerância. Nossa sociedade está psiquiatricamente doente. A educação precisa ser utilizada como uma ferramenta de enfrentamento dos preconceitos e estamos dispostos a fazer os apontamentos”.  

Voltando ao relatório do Observatório das Mortes Violentas de LGBTI+ de 2020, outros pontos merecem menção. 

O risco de uma LGBT+ ser assassinada em Alagoas é 6 vezes maior do que em Santa Catarina – Estado que computou mais votos em Jair Bolsonaro nas eleições 2018. Já os municípios de Rio Largo e São José da Laje tiveram a mesma incidência de crimes letais de sete capitais pelo país.

Tabela inclui Rio Largo e São José da Laje entre os mais violentos. | FONTE: Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+.

A Mídia Caeté entrou em contato, por meio da assessoria de imprensa, com a Secretaria de Segurança Pública de Alagoas (SSP). Confira a resposta na íntegra. 

“As forças de segurança vêm trabalhando para elucidar os casos e punir criminalmente os responsáveis por práticas homofóbicas e transfóbicas, como tem sido feito com o caso do professor José Acioli da Silva Filho, que teve a atenção devida, mobilizando diversos órgãos e sendo esclarecido em um curto período. Sobre as informações apresentadas, informamos que a Secretaria de Segurança Pública de Alagoas (SSP) só comenta dados próprios.

A Secretaria de Segurança Pública de Alagoas (SSP) tem um diálogo constante com entidades que representam a comunidade LGBTQPIA+, sempre dando atenção às pautas e reivindicações. A SSP também participa de uma rede de apoio composta por outras secretarias que buscam a promoção de direitos para a população LGBTQPIA+ em Alagoas.”

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