Enquanto inquérito não conclui, Braskem segue negociando com órgãos públicos seu lugar no desastre ambiental

Confira a segunda reportagem da série Desinformação e Mineração: a desinformação, os acordos afastados dos moradores e as violações a direitos humanos
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    Bebedouro desocupado após ser afetado por mineração. Foto: Arnaldo Sete/ Marco Zero Conteúdo

Em maio de 2019 – pouco mais de um ano depois dos abalos sísmicos e da ampliação das rachaduras nas casas, que posteriormente mudariam a vida de cerca de 55 mil pessoas, em Maceió – os estudos do Serviço Geológico do Brasil (CPRM) afastaram uma série de hipóteses levantadas pela Braskem sobre o “fenômeno geológico” ser proveniente de causas naturais, ao afirmar que expressamente que “Há evidências que comprovam que a deformação nas cavernas da mineração teve papel predominante na origem dos fenômenos que estão causando danos na região estudada.” O estudo completo pode ser acessado clicando aqui .

Mais de quatro anos depois do relatório que atribuiu de forma conclusiva a determinação da mineração da Braskem sobre os danos nos bairros, a responsabilização criminal é uma lacuna que permanece. Sob sigilo, as investigações da Polícia Federal (PF), iniciadas ainda em 2019, após requisição do Ministério Público Federal (MPF), ainda não foram finalizadas. A Mídia Caeté procurou o órgão, que informou não ser possível emitir qualquer declaração a respeito.

Já leu a primeira reportagem desta série? Clica aqui para conferir!

Oficialmente sem culpa, ao menos até o momento, a Braskem tem o pilar necessário para se colocar como ‘colaboradora’ de toda a situação, ao tempo em que coleciona acordos com órgãos públicos que já lhe renderam a compra dos terrenos dos quatro bairros afetados pela mineração que ela mesma proporcionou. De acordo em acordo, a violação dos direitos humanos é evidenciada contra as pessoas mais afetadas da mineração e que se veem, desde então, afastadas dos processos decisórios.

Acordos

O primeiro acordo que abriu uma vantagem abismal da Braskem em relação às vítimas da mineração ocorreu em 30 de dezembro de 2019. O Acordo com os Moradores estabelecia um Programa de Compensação Financeira e Apoio à Relocação – propagandeado pela empresa com grande apelo publicitário e endossamento pelos órgãos públicos, que concordaram com o que era estabelecido: os Ministérios Públicos Federal e Estadual e as Defensorias Públicas Estadual e da União.

Sem citar qualquer termo relacionado à ‘indenização’, o acordo ainda constava a controversa Cláusula 14 – que definia de forma expressa que os valores pagos aos moradores representavam a compra daquele imóvel compulsoriamente desocupado.

Na decisão da 3ª Vara Federal, a desocupação dos imóveis foi concedida nos seguintes termos:

“Tendo em vista a notícia nos autos do risco iminente de desabamento dos imóveis situados nas Áreas de Risco dos bairros atingidos, ameaçando as vidas dos moradores, determino à Secretaria do Juízo que participe aos órgãos públicos competentes, nomeadamente à Defesa Civil do Maceió, o teor do Termo de Acordo ora homologado, para que providenciem a desocupação dos imóveis ainda habitados, se necessário com apoio da força policial, tudo segundo o cronograma já definido pela Prefeitura de Maceió, sendo dia 15 de janeiro para desocupação das Áreas de Risco de criticidade 00 dos Setores 00, 01 e 02, e 15 de fevereiro para desocupação das Áreas de Risco de criticidade 00 situadas na Encosta do Mutange e Bom Parto”.

É possível visualizar na íntegra clicando aqui

Nesse sentido, há alguns elementos ilustrativos no acordo, ao pontuar – no parágrafo quarto – que “havendo discordância por parte dos atingidos quanto aos valores ofertados pela Braskem, fica facultada a propositura de medida judicial por qualquer das Partes”, mesmo tal possibilidade se apresentando apenas após o ingresso no Programa de Compensação.

No mais, alguns outros parágrafos vão indicando a posse da Braskem sobre os imóveis. É o caso da Cláusula Nona que inicia com “Após assumir a posse dos imóveis a serem desocupados e dos que já estão desocupados…”

Na cláusula 13, que já começa partindo do ponto da “inexistência, por ora, de responsabilidade da Braskem, e não reconhecimento, por parte dela, para viabilizar a desocupação prevista, a braskem compromete-se a pagar valores equivalentes a danos morais e materiais … conforme acordos individuais entre BENEFICIÁRIOS e Braskem”.

Na sequência, surge finalmente a cláusula 14 que expressamente coloca que “Os pagamentos referentes aos terrenos e edificações pressupõem a transferência do direito sobre o bem à Braskem, quando transferível.”

O acordo – que pode ser visualizado na íntegra clicando aqui – é considerado pelas vítimas como divisor de águas em relação a como a mineradora seria oficial e extraoficialmente posicionada e responsabilizada. Não foram poucas as reclamações sobre a ampliação na desigualdade de tratamento entre empresa e vítimas da mineração, com ‘negociações’ inseridas em cláusulas de sigilo, e uma constante memória de que – sem encerrar as negociações – as famílias estariam condenadas a uma espera sem fim pela Justiça.

A hackerativista Evelyn Gomes,  diretora da LabHacker que vem se debruçado sobre o caso dos bairros atingidos, é uma das pessoa que faz esta análise. “O acordo que o Ministério Público avalizou deu muitos poderes para a empresa. A permissão dessas cláusulas de sigilo, os acordos individuais, o apontamento de dizerem quanto vale a casa e o dano moral. É absurdo uma empresa causadora ter esse poder”, analisa.

A falta de dados também configura um grande problema. “O reconhecimento da sobrecarga no sistema jurídico vem sendo ainda – muitas vezes – utilizado para que órgãos públicos incentivem a continuidade destas negociações diretas. Além do mais, Prefeitura de Maceió e o Ministério Público não endossam um portal organizado de transparência. O que existem são transparências parciais. O MP cumpre com transparência sobre o que tem a ver com o MPF, mas não há um lugar que reúna todos os estudos técnicos. Isso tudo faz parte da desinformação. Os dados como o do estudo do CPRM mesmo, você só encontra no portal do Governo Federal, porque o da Prefeitura caiu. Quem não sabe fazer pesquisas, tem muita dificuldade de acessar essas informações”, reforça a hackerativista.

De fato, a Mídia Caeté buscou os dados sistematizados sobre o caso em diversos portais de órgãos vinculados aos acordos, como Prefeitura de Maceió, do Governo do Estado, Ministérios Públicos e Defensorias, e apenas o MPF possuía link sistematizado, de relativamente fácil acesso à população, com notícias e documentos sobre o assunto. Acesse clicando aqui. 

Em artigo produzido por pesquisadores de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), intitulado “SUBSIDÊNCIA DO SOLO E REMOÇÕES FORÇADAS EM MACEIÓ-AL: AS DISPUTAS PELA CIDADE”, Caroline Gonçalves, Gustavo Figueiredo e Júlia Amorim utilizam o termo “refugiados ambientais urbanos” para identificar as 57 mil pessoas forçadas a deixar sua moradia diante de uma perturbação ambiental acidental. Na pesquisa, que você pode ter acesso na íntegra clicando aqui, os autores acrescentam a diversidade de características destes refugiados – são de perfis socioeconômicos diversos – além das diversas outras perdas.

“O cenário é devastador, com as remoções em curso em uma área de cerca de 274 hectares, salienta-se também a necessidade de desativação de inúmeros equipamentos urbanos, sendo: 24 relacionados à saúde, com destaque para 4 hospitais ; 24 escolas, sendo pelo menos 5 municipais e 12 estaduais; 13 templos religiosos; 17 equipamentos de uso institucional, incluindo o próprio Instituto do Meio Ambiente de Alagoas (IMA), órgão responsável pela aprovação do licenciamento ambiental, além da fiscalização e monitoramento das condicionantes para renovação; ao menos 4 praças públicas; uma estação ferroviária e com isto, a interrupção da via férrea; bem como supermercado, mercadinhos de bairros e outros serviços de abastecimento e comércio. Acrescenta-se ainda a interdição de inúmeras vias, atravancando o sistema viário, que já apresentava baixa conexão.“

“SALVO SE”

Exatamente um ano depois do Acordo com os Moradores que ensejou o Programa de Compensação, vem outra trativa entre a mineradora e órgão públicos. Identificado como “Acordo Socioambiental”, o documento possui elementos que até indicam algumas trajetórias mais reparadoras, a exemplo da Cláusula 25, que apresentam alguns princípios a serem observados quando do Diagnóstico Ambiental e da elaboração e execução do Plano Ambiental. São eles: “| = princípio da reparação integral; Il — princípio da solidariedade; Ill — princípio da função social da propriedade; IV — princípios da prevenção e precaução; V-— princípio do poluidor pagador; VI — conservação do equilíbrio ecológico; VII — prioridade da capacidade de autorregulação e autorregeneração do meio ambiente; VIII — participação popular; IX – indisponibilidade do interesse público; X – sadia qualidade de vida.”

Entretanto, o poluidor pagador reafirma a relação de propriedade sobre a área degradada na Cláusula 58, quando se refere à execução das intervenções sociourbanísticas. Trata-se do parágrafo segundo, que traz a seguinte expressão:
“A Braskem compromete-se a não edificar, para fins comerciais ou habitacionais, nas áreas originalmente privadas e para ela transferidas em decorrência da execução do Programa de Compensação Financeira, objeto do Termo de Acordo celebrado em 03 de janeiro de 2020, salvo se, após a estabilização do fenômeno de subsidência, caso esta venha a ocorrer, isso venha a ser permitido pelo Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano da Cidade de Maceió — AL. “

O documento pode ser lido na íntegra clicando aqui. 

Os termos colocados causaram espanto às vítimas, pesquisadores e ativistas. Diante de toda a pressão popular, órgãos que formalizaram o acordo com a empresa chegaram a encaminhar notas públicas comunicando que a Braskem não teria autonomia para construção. Contrariando os títulos animadores, que conduziam leitores desavisados a de fato perceberem que a Braskem não teria todo este poder, o texto trazia – contraditoriamente – outra informação, abrindo esta possibilidade de construção da Braskem para o que desejasse – caso a área fosse estabilizada e, finalmente, houvesse permissão pelo Plano Diretor.

 

Procurado pela Mídia Caeté, o Ministério Público Federal relatou que todo o processo de discussão e construção dos acordos e indenizações se deram tendo como prioridade a segurança da população e a urgência imposta à época pelo salvamento das vidas, diante do que até então não tinha expectativa de estabilidade.

“Quando o acordo socioambiental foi discutido e construído, o acordo de indenizações aos atingidos já havia sido assinado e já estava sendo executado, desde janeiro de 2020. Ou seja, a partir do primeiro acordo, com as indenizações, a empresa passou a ter a propriedade dos imóveis. Neste acordo não há previsão de destinação futura, justamente porque em 2019 e 2020 não havia qualquer expectativa de estabilidade da região, contrariamente, a expectativa era de desastre iminente, era de necessidade urgente de salvamento daquelas vidas”, relatou o órgão, através de assessoria.

Ainda segundo o órgão, foi ao longo de 2020 que a destinação da futura da área passou a ser uma preocupação, quando da expectativa de que aquela área pudesse – ainda que remotamente – vir a ser estabilizada em algum momento num futuro distante. “Daí porque o acordo socioambiental, de dezembro de 2020, buscou garantir que a Braskem não tivesse liberdade para gerir a região como quisesse, e a forma encontrada foi vincular à estabilização da área e ao plano diretor, que é um instrumento legislativo que prevê a realização de audiências públicas, a participação da população, da universidade e a discussão parlamentar, incluindo a participação do próprio Poder Executivo Municipal, sendo pois a Câmara de Vereadores o espaço mais adequado para o atendimento do interesse público”, explicou o MPF.

“As instituições entenderam à época da celebração do acordo que definir de forma unilateral a destinação futura daquela área não se mostrava a decisão mais adequada. Contrariamente, garantiram que a população e o poder público Executivo e Legislativo participassem e conduzissem a discussão, convergindo quanto ao uso futuro – caso um dia seja possível. Há de se registrar a posição do MPF e da Promotoria de Urbanismo (MPAL)  de que toda e qualquer destinação da área deve servir ao interesse público, motivo pelo qual continuam acompanhando de perto essa questão e reforçam a importância de um processo transparente e criterioso para a tomada de decisões sobre a área afetada, especialmente considerando que ela precisará ser monitorada por muitos e muitos anos. O objetivo é garantir a segurança das pessoas, da área e evitar novos danos. Os Ministérios Públicos Federal e do Estado de Alagoas estão atentos para fiscalizar o cumprimento das normas e assegurar que os interesses da população sejam adequadamente respeitados e protegidos”.

Cássio Araújo, Procurador Regional do Trabalho e integrante do Movimento Unificado de Vítimas da Braskem.

Para os moradores, entretanto, os interesses da população foram continuamente deixados de lado durante o processo. O procurador do trabalho, Cássio Araújo, que também foi um morador do bairro do Pinheiro e atualmente integra o Movimento Unificado de Vítimas da Braskem (MUVB), afirma como permanece a percepção  de que a Braskem segue se beneficiando pelo que cometeu. “É juridicamente um absurdo e mostra que o crime compensa. Cometo um crime e me aproprio do que causei. Outra questão é a reparação integral. Quem cometeu um dano precisa reparar integralmente, não só do ponto de vista financeiro, como moral, psicológico e simbólico. Ela ficou com uma terra que pode explorar como quiser e o Acordo com a Prefeitura só reforça isso, porque até das áreas públicas ela vai ser dona”, diz. “Se for fazer parque, vai ser um parque da Braskem. Essa questão de que não será possível interferir por conta do Plano Diretor não existe. Como ela não poderá interferir nesse PD em tudo o que diz respeito a ela? Na melhor das hipóteses, pensar isso é não trabalhar com a realidade, é muita ingenuidade”.

Já a pesquisado

Rikartiany Cardoso. Foto: Maurício Carlos

ra e mestranda em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Rikartiany Cardoso, pontua como a atuação reconhecidamente limitada do Ministério Público endossou a revitimização contra as vítimas. “O MPF fez o melhor que podia dentro do contexto em que ele se colocou. A empresa disse até onde iria e, se quiser, é isso. Negociou em condições muito desiguais e revitimizadoras para a população afetada e, ao fim, não deu um processo indenizatório, e sim de compensação”, comenta e completa:

“Como a pessoa entra, depreda, oferta valor irrisório e torna-se proprietário do que danificou? Isso no direito não existe. Tenho tanto para lhe pagar e é um valor pífio. Ou você entra na Justiça e, se vira, em meio ao risco de desabamento, pandemia”.

Para Cássio Araújo, ainda que o instrumento do Plano Diretor seja democrático, a partir do momento em que a Braskem detém a posse de toda a área, as determinações para a área ficarão preponderantemente com a empresa. “Era para ser discutido com a população e entre a população o que fazer com a área, se um parque da cidade, um memorial, espaço de práticas esportivas, enfim. E não dar a área para a Braskem e agora ficar negando o que foi escrito. É só ler”, comenta. 

E, assim, “dona” de uma área que abrange pelo menos cinco bairros, e com saldos de lucro positivos ano a ano, é possível assegurar – conforme avaliam as pesquisadoras – que a Braskem não foi impactada financeiramente, nem nos rendimentos anuais. “É preciso deixar ratificado que só o que ela ainda não conseguiu foi a venda, que estava tentando, mas de resto, em relação ao desastre mineral vem funcionando como um acordo de investimento imobiliário”, frisa, desta vez, Isadora Padilha, coordenadora do Instituto Ideal e uma das escritoras do livro “Rasgando a Cortina de Silêncios: o lado b da exploração da salgema em Maceió”.

O Poder de não ter culpa

Afinal, enquanto “colaboradora” e “responsável pela solução”, a Braskem – de algum modo – pode ser oficialmente responsabilizada criminalmente pelo afundamento dos bairros e por todos os danos gerados às milhares de famílias, afetando ainda toda a cidade?

Área de residências desocupadas compulsoriamente, após inserção em Mapa de Risco. Foto: Arnaldo Sete/ Marco Zero Conteúdo

Ao responder à Mídia Caeté sobre o assunto, o Ministério Público Federal ressaltou que a responsabilização criminal não foi afastada em razão da existência dos acordos, sendo então vinculada ao resultado do inquérito aguardado pela PF.

“Atuação da PF se dá no âmbito de um inquérito policial que foi instaurado por requisição do MPF ainda em 2019. Desde então foram inúmeros os ofícios expedidos para que a PF desse prioridade à esta investigação, sendo, portanto, alvo de atenção do MPF. Importante lembrar que a apuração e a configuração da responsabilidade criminal ocorrem com base no que está previsto na legislação específica”, explicou o órgão, via assessoria.

O órgão também acrescenta a Cláusula 100 do acordo socioambiental, onde a Braskem assume responsabilidade pela reparação dos danos socioambientais decorrentes do “do fenômeno de subsidência percebido nas áreas afetadas pelos Impactos PBM, obrigando-se a adotar as medidas necessárias de mitigação, reparação ou compensação socioambiental, conforme estabelecido no presente acordo, garantindo os recursos necessários para seu fiel cumprimento”.

Assim, conclui que “portanto, não se sustenta a alegação de que os acordos ou a atuação ministerial possam de alguma forma beneficiar a empresa petroquímica Braskem. Inclusive, se hoje os atingidos do Mapa de Risco (o bairro Mutange e parte dos bairros Bebedouro, Bom Parto, Pinheiro e Farol) ou a região dos Flexais (no bairro Bebedouro) recebem algum tipo de reparação pela empresa se dá em decorrência da atuação dos MPs e da DPU.”

Para as vítimas que se viram obrigadas a deixar suas casas, entretanto, a referida reparação vem se configurado mais uma consequência de uma falta de opção, onde, segundo pesquisadores, a intimidação processual termina por ser sentida. Cardoso ressalta: “Há aí também um processo de desinformação, em que você diz para uma família que – ou ela sai com aquela oferta que a empresa dá – ou você fica em risco iminente de desabamento. É uma intimidação processual e judicial. Não só criada pela empresa, como pelo próprio discurso do Judiciário pela morosidade”, acrescenta

Essa mesma comunicação sobre a morosidade foi reforçada pelo próprio Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que celebrou o “grande acordo” entre os Ministérios Públicos Federal e Estadual e as Defensorias Estadual e da União. A partir de um aditivo, foram extinguidas as ações contra a Braskem. O que foi comemorado pelo Conselho na nota “Caso Pinheiro: a maior tragédia que o Brasil já evitou” (Leia aqui na íntegra), o órgão descreveu:

“Um dos maiores triunfos da mobilização liderada pelo Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão, de acordo com o juiz do caso, Frederico Dantas, foi resolver o mérito da questão sem necessidade de uma decisão judicial, que levaria a um percurso de recursos e anos para conceder o direito a quem precisa de reparação imediata, sem deixar de avaliar as responsabilidades da empresa Braskem”.

Em seguida, comemoram ainda celeridade do acordo. “De acordo com a conselheira do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) Fernanda Marinela, a “velocidade com que o problema vai se desenvolvendo é impressionante”. No atual estágio, em que as autoridades que assinaram o acordo vão acompanhar o cumprimento, é preciso atenção ao cronograma de indenizações e pagamentos, ao processo de definição de valores das indenizações, que variam assim como os perfis das moradias dos diferentes bairros, e à constante atualização da cartografia do risco da área.

Para a pesquisadora Rikartiany Cardoso, os acordos realizados deram uma tutela para a Braskem. “Não foi construído democraticamente. Os moradores não participaram. Os órgãos chegaram com documento pronto para negociar com a mineradora e não existiu uma abertura de diálogo pré-documental. Foram partes que não faziam parte do conflito para mediar sem participação dos moradores”

Os órgãos públicos funcionaram, nesse sentido, como um protecionismo governamental e empresarial. “Os órgãos públicos tinham dever fiscalizatório, mas onde está o IMA agora? Foi um dos que perdeu inclusive um prédio para a mineradora e hoje está funcionando no Shopping Cidade. Como ele está atuando? Até o momento, tudo o que recebemos foi ele lançando nota se protegendo e protegendo a mineradora na situação da areia retirada do Francês. Protege a Braskem, porque é impossível se protegerem sem proteger a mineradora.

Entre todos esses poderes, um do mais mencionados é a ausência de responsabilização criminal, mesmo após todo esse processo.

“Analisei todo o discurso incutido nos acordos, e vi que a Braskem não coloca responsabilidade nenhuma sobre o que foi feito”, conta Evelyn. “Agora, sobre dizer que é crime, é possível mais seguramente a partir da questão dos muitos mangues que foram extintos”, pondera Gomes, referindo-se ao fato de que, com o deslocamento, muitos mangues ficaram alagados.

Já para Rikartiany, não há tanto problema em torno dessa tipificação. “Aqui é possível colocar desastre ou crime, porque não existe uma análise unívoca da natureza, mas parto de uma análise do sentido teórico de que é, sim, um crime, assim como todos os outros fenômenos que são tidos como desastres”, menciona. ‘A mineradora ainda trata como fenômeno geológico, mesmo hoje em dia no século 21. Analiso principalmente a partir do direito à cidade”, acrescenta.

E nessa discussão do direito à cidade, a pesquisadora explica que, ao invés de desenvolvimento social, todo o problema vem resultando um processo de remoção forçada e um “descolamento ambiental”, onde pessoas são deslocadas dentro de seu próprio território, forçada por desastres e crimes ambientais.  Além do mais, após todos estes anos e as mudanças finalizadas, as condições de invisibilização e vulnerabilização se tornam ainda maiores.

“Foi um processo que vulnerabilizou 60 mil pessoas. Não é porque saíram que deixaram de ser afetadas. Pelo contrário. Quando a gente acha que o crime cessou é o momento mais vitimizador, porque é quando os grupos vitimizados vivem um processo de invisibilização. E aí são revitimizados pelo silenciamento”, explica.

Violações de direitos humanos: separar, fragilizar, silenciar e desmobilizar

Do ponto de vista dos Direitos Humanos, a violação não é posta em dúvida por seus defensores. É o que explica a pesquisadora Rikartiany Cardoso quando põe a discussão já no sentido jurídico.

“Foram vários os direitos violados. Desde o acesso à informação organizada, àss investidas para dispersar a organização coletiva, os direitos à restituição e uma indenização que abarque os danos causados. Esses direitos precisam ser uma realidade porque estão constitucionalmente resguardados, protegidos nacional e internacionalmente, seja proteção aos direitos civis e políticos, por normativas que vieram antes de 88 e ratificadas em 88, ou mesmo por recepcionar outras novas normativas”.

Além do mais, a pesquisadora de Direitos Humanos ressalta como o acesso à informação e a coibição de organização da coletividade são direitos cotidianamente e corriqueiramente violados para não serem efetivados ou serem violados em situações de desastres ambientais.

“Esse processo de silenciamento repercute na própria coerção contra as mobilizações. Foi feito um ato com diversos movimentos, como o Movimento Unificado de Vítimas da Braskem (MUVB), MTST, em frente à Braskem, e a Polícia bateu lá para acabar com a movimentação, mesmo se tratando de uma movimentação pacífica e em frente ao local”, exemplifica.

No mais, o desconhecimento também é tornado instrumento. “Colocaram um ‘Braskem Explica’ que é um programa intensamente problemático, que dissemina fake news. Dizem que ofertam atendimento psicossocial para a população, mas escondem a informação de que é descontado do valor da indenização. São muito elementos que geram confusão e falta de entendimento”, diz. “A gente reivindica só aquilo que conhece. O que desconhece não tem como modificar. E, quando a gente se organiza coletivamente, além de criar força e grupo solidário, cria reivindicações que podem ser objeto de ações coletivas”.

Rikartiany Cardoso também apontou mais uma estratégia utilizada para fragilizar a força das vítimas de mineração: a individualização da luta, a partir do momento em que a mineradora passou a ofertar os acordos individuais, respaldados pela Justiça, dividindo moradores, ofertando determinadores valores que não oferecem danos morais, só materiais. “Quando faz isso em um bairro, e vai em outro e diz que sequer eles seriam inclusos no mapa de risco, como é o caso de Mutange e Flexais, você acaba colocando uma outra pauta para estes bairros que é direito de se incluir. Ao individualizar, as pessoas buscam informações de forma individual”.

R$ 1,7 Bi para a Prefeitura de Maceió em troca de isenções e áreas públicas

Em julho deste ano, mais uma negociação entre Braskem e órgão público – homologada pela Justiça Federal, com anuência dos Ministérios Públicos Estadual e Federal – é colocada em evidência por moradores afastados do alcance das decisões. A partir de três acordos com a Prefeitura de Maceió, nomeados como Termo de Adesão Parcial, Termo de Adesão Total e mais um Termo de Adesão Particular, a Braskem repassou o montante de R$ 1,7 bi para a Prefeitura e – em troca – passa a se beneficiar da quitação de todo e qualquer dano relacionado a questões sociourbanísticas, além de ter acesso a todas as isenções antes direcionadas às vítimas da mineração.

Nas disposições gerais do ponto 7, o acordo especifica: “Observadas as medidas previstas nos itens i e ii abaixo, o Município, neste ato, confere plena, rasa, geral, irrevogável e irretratável quitação à Braskem por todo e qualquer dano relacionado ao escopo do Acordo Socioambiental, decorrente direta ou indiretamente do fenômeno da subsidência e consequente desocupação na área identificada no Mapa de Linhas e Ações Prioritárias- versao 4 divulgado pela Defesa Civil em 11 de dezembro de 2020, para nada mais reclamar ou cobrar em qualquer título em juízo ou fora dele”.

Na lista de imóveis que passam a se tornar posse da empresa, são listadas os seguintes prédios: CRAS Bom Parto, Abrigo Institucional Acolher, UBS Bebedouro, PAM Bebedouro, USF São Vicente de Paula (Farol),  UBS São Vicente de Paula (Pinheiro), Sede do III Distrito Sanitário de Saúde (Pinheiro), Mercado Municipal do Bebedouro, Cemitério Municipal Santo Antônio (Bebedouro) , Centro Municipal de Educação infantil Luiz Calheiros Junior (Pinheiro), Escola Municipal Major Bonifácio da Silveira (Bebedouro), Escola Municipal Radialista Edécio Lopes (Pinheiro), Escola Municipal Padre Brandão Lima (Pinheiro), Centro Municipal de Educação Infantil Vereador Braga Neto. Desses, apenas o cemitério não terá transferência.

Escola Padre Brandão Lima, que funcionava no PInheiro, passa a ter atividade na Cidade Universitária (parte alta de Maceió. Fotos: Google/Ascom Semed

Além disso, 12 vias se tornam posse da Braskem. São elas:

Além desse benefício, a empresa também terá a isenção de diversos impostos que haviam sido direcionados, anteriormente, para as vítimas da mineração, quando – no Acordo Particular – formaliza a quitação de todos os tributos objeto de isenção prevista na lei municipal de nº 6900/2019.

O procurador do Trabalho e integrante do Movimento Unificado de Vítimas da Braskem (MUVB), Cássio Araújo, explica essa movimentação. “A Lei 6900 que concedia isenção fiscal de IPTU, ISS..  para pessoas que estavam no local, de modo a ajudar essas pessoas”, conta. “Com este acordos, agora, praças e ruas do município – que não são da gestão municipal – mas do uso comum do povo – serão transferidos para a Braskem. Não obstante tudo isso, a Prefeitura vai ficar com esse pagamento de R$ 1,7 bilhões, dando quitação total e ampla, inclusive de fatos ou descobertas futuras que venham a acontecer a respeito dessa situação. Foi o melhor negócio”, relata.

E por tais questões futuras, Araújo menciona – por exemplo – todas as alterações nas dinâmicas de locomoção e acesso a serviços provenientes do esvaziamento dos bairros. “Quando colocam expressamente que R$ 390 milhões alocados para mobilidade urbana quita mais do que o suficiente o prejuízo causado pela mineradora, mesmo que haja diversos outros problemas no futuro pela distância das pessoas que foram morar mais longe, a Braskem já não tem mais responsabilidade nenhuma sobre isso. Mesmo que mais adiante se venha a descobrir que o que foi feito não foi feito o suficiente, que precisaria por exemplo de mais posto de saúde ou escola, não é possível mais reclamar”.

Em nota oficial encaminhada à imprensa sobre o assunto, a Prefeitura de Maceió declarou:

“A Prefeitura de Maceió informa que fechou acordo de reparação ambiental com a Braskem nesta sexta-feira (21). O acordo assegura ao município indenização de R$ 1,7 bilhão em razão do afundamento dos bairros, que teve início em 2018. Os recursos serão destinados à realização de obras estruturantes na cidade e à criação do Fundo de Amparo aos Moradores (FAM). É preciso destacar que o acordo não invalida as ações ou negociações entre a Braskem e os moradores das regiões afetadas. A gestão de Maceió segue construindo uma cidade melhor para todos.”

Falta de informação sobre Mineração e Estado: Negócios

Impactos, benefícios reais, como funciona, o que acontecerá. A falta de informação quando se trata de mineração – no caso concreto da extração da salgema –  começa muito antes dos primeiros tremores, quando sequer a população maceioense fazia ideia dos danos que poderiam ser causados a partir das extrações de minas subterrâneas. Segue-se às confusões que se seguiram desde o susto e das rachaduras e chega, finalmente, à manutenção da população vitimizada pela mineração em um local mais escanteado das condições de negociação. Cada etapa do processo é reconhecida por um certo modus operandi comum a tantos outros casos. Rikartiany relata outros exemplos de relação entre mineração e Estado no país.

“O relator do Código de Mineração que está em discussão – que seria um desastre ambiental no país se passar – foi financiado pela Vale Verde. Esse processo criminoso acontece desde que as terras começaram a ser mineradas e desde que o Brasil foi invadido. É o velho revestido de novo”, relata. “O Estado é continuamente viciado nesse processo de que tem que existir mineração. A mineração é questão de Estado desde que negras e negros foram escravizados e indígenas foram assassinados em decorrência da mineração. Foi assim que a Europa acumulou riqueza. E o processo de desinformação acontece também por proteção por parte do Estado.”

Nesse sentido, a estudiosa comenta o papel dos órgãos que fizeram acordo. “Quando um órgão como CNJ lança uma nota em que coloca como um grande sucesso em um conflito socioambiental, e que dessa forma se evitou o pior, você produz mais uma vez silenciamento e revitimização, invisibilizando os danos reais, e incentivando a desmobilização das pessoas que se sentiram injustiçadas nesse processo. A desinformação acontece aí de forma lamentável. Enquanto criam uma disputa discursiva constante das verdades e das opiniões públicas, o concreto mesmo é isso aqui: 60 mil pessoas removidas, algumas com quatro gerações de familiares que não queriam mas se viram obrigadas a deixar o local numa realocação forçada”. E, completa, esse é só o começo das violações que só vão aparecendo a seguir.

“Diversas violações de assistência humanitária, as mudanças na oferta de escolas e outras necessidades. E o acesso à informação é também um direito humano consolidado internacionalmente, principalmente em desastres socioambientais, assim como moradia, alimentação. E são potencialmente violados em casos como os de Maceió”.

Finamente, há ainda violação ao direito à organizar-se coletivamente, ao processo célere e justo, e à mitigação das perdas. “Todas as comunidades deveriam ter acesso à livre informação, de forma consultiva e decisória, a respeito de tudo o que ocorreu antes mesmo do processo de instabilidade dos poços, durante, e agora, porque seriam medidas de mitigação a serem tomadas. Esse processo de reversão socioambiental, do que fazer com essas áreas porque pertenciam a sociedade. Eram praças, igrejas escola, clínicas. Tudo isso faz parte do processo humanitário que não ocorreu, porque foi enviesado pela atuação protecionista do estado”, explica Cardoso.

Além do mais, conforme atesta Araújo, o dano tem grandes chances de ter sido lucrativo. “Fizemos uma conta por baixo, envolvendo a questão dos moradores, daria no mínimo de R$ 40 a R$ 50 bilhões de reais. Por menos de R$ 5 bilhões no total, a Braskem não só vai resolver já 80% dos problemas, como ainda vai virar dona. Daqui a 10, 20 anos, tendo tempo para a terra se acomodar, e tirando todo desgaste da imagem com o advento de novas gerações, a empresa vai recuperar e acrescer até dez ou vinte vezes mais o que gastou, e olhe lá. Foram negócios”.

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