Famílias indígenas retomam território e reconhecem nova etnia

Em contexto de retirada de direitos indígenas em todo o país, comunidade multiétnica Pankaxuri surge resgatando e preservando identidade, cultura e religiosidade
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Preparar a terra, defender direitos, resgatar e garantir a preservação da cultura e da identidade. Estes são os rumos  assumidos por vinte e oito famílias indígenas antes desaldeadas e vivendo em condições precárias na zona urbana do município de Palmeira dos Índios. O grupo decidiu recuperar um território ancestral e reconhecer a nova etnia que hoje já tem seu nome: Pankaxuri. O movimento de retomada e aldeamento, que ocorre em uma área desocupada da cidade que já passou por processo de demarcação, vem representado um movimento de resistência local importante em meio a um contexto de ataques brutais aos povos indígenas em todo o país, ainda mais agravados durante esta pandemia.

A auto-organização e a instalação no território vão garantindo, pouco a pouco, a estruturação da comunidade multiétnica, cujo nome já foi escolhido com fundamento em suas origens.“Estamos nessa luta ocupando a terra que já foi de nossos ancestrais e pretendemos fazer esse reconhecimento da nova etnia que vem dos Pankararu e Xucuru Kariri. Pankararu porque meu avô era Pankararu da Aldeia Breja dos Patos. E minha avó Xucuru Kariri de Palmeira dos Índios. Eles formaram essa família que quero dar o nome Pankaxuri, para que a gente fique independente e também evite problemas”, relatou o Cacique Chiquinho Xucuru-Kariri, que vem conduzido o movimento.

Acompanhando a trajetória do grupo há alguns anos, o pesquisador Parmênides Justino relata como o processo de constituição desta nova nação vem, na verdade, a partir de uma trajetória bastante antiga. “O momento atual é de retomada, mas é um grupo que já tem história. Cacique Chiquinho participou de movimentos históricos como a retomada da Serra dos Macacos, recrutado por Maninha Xucuru, importante liderança”, cita. Desde então, Cacique Chiquinho se aldeou e desaldeou em função de conflitos entre lideranças Xucuru-Kariri, até decidir guiar-se em outro tipo de mobilização.

“Ele construiu o que a gente chama de etnogênese, que é um movimento político antropológico em que um grupo autoafirma. Não mais como uma facção Xucuru Kariri, mas como uma nova nação”, explicou Parmênides. “A FUNAI se pauta em convenção da OIT de que o grupo precisa se autoafirmar e também ser reconhecido entre os pares. Cacique Chiquinho vem sendo reconhecido por diversos pares. Inclusive várias nações já vieram e fizeram aqui o toré”, relatou.

 

A escolha da terra também teve um significado. Segundo explica Cacique Chiquinho: “Optamos por retomar uma das áreas que fazia parte da demarcação do povo Xucuru Kariri, quando na época era de 13.020 hectares, mas foi reduzida para 7 mil. Essa área ficou fora. É uma área que foi desapropriada em decreto durante o Governo do Lula, em 2003, e estava abandonada porque nenhum dos parentes entrou. É uma luta justa, honesta e pacífica”.

Longe da mata

Ainda que este seja o começo de uma nova etapa para a comunidade que acaba de se constituir, as lutas vêm sendo acumuladas, mesmo nesta geração, há algum tempo. Entre as lutas mais recentes, Cacique Chiquinho conta ter vivido, na Aldeia Monte Alegre – retomada pelos Xucuru Kariri desde março de 2008, quando a área havia sido confiscada pelo Governo Federal das mãos de Denisval Basílio, indicado pela Operação Carranca. “Sabíamos que a área estava confiscada e então resolvemos entrar. A luta foi ganha graças ao grande espirito e tudo bem. Entramos lá, plantamos, nos organizamos”, relata.

Entretanto, segundo a líder indígena, uma série de conflitos internos, muitos estimulados pela inserção de pessoas de fora da comunidade, terminaram por fazer com que sua família deixasse a aldeia e partisse para a periferia da cidade no fim de 2016.

“Quando chegamos na zona urbana, minha mãe alugou uma casa, onde ficaram seis famílias morando. Faltava espaço. Com o auxílio emergencial, conseguimos alugar uma casa. Eu, meus irmãos e filhos, mas não tivemos condições de continuar pagando aluguel porque não temos salário fixo. E era aluguel, água, energia”, explica.

Sem qualquer outro mecanismo de proteção social do Estado ou mesmo assistência dos órgãos de proteção, a situação só se agravou quando o programa de auxílio emergencial foi cortado. “A gente ia morar na rua”, relata. Diante dessas mazelas, até mesmo as possibilidades de vivenciar a religião e a cultura foram negadas pela retirada de direitos e a consequente falta de estrutura.

“Antes já era difícil, pois, para participarmos de nossa religião sagrada, tínhamos que nos deslocar sete ou oito quilômetros para a aldeia. Meu pai mesmo bem idoso precisou se deslocar muito a pé de lá para cá. Tudo isso causa sofrimento. Às vezes, a gente não tinha condições na cidade de balançar um maraca para cantar um toré. Até fazer nosso artesanato, a gente era obrigado a fechar nossa porta de casa, para o branco não ter acesso, para não verem a gente trabalhar da forma que a gente trabalha, que é para podermos preservar nossa cultura e continuarmos tendo ela. Então é esse o tipo de sofrimento que a gente vivia na zona urbana da cidade”, detalhou.

Sem direitos, com ataques

As condições enfrentadas por cacique Chiquinho e sua família não estão desvinculadas da realidade vivenciada por indígenas desaldeados em todo o país. Ainda mais invisibilizados institucionalmente, esses grupos sofrem o apagamento típico ao se deslocarem para as periferias urbanas, geralmente em razão da falta de demarcação e de constantes ataques de invasores em suas terras. Nesses espaços urbanos, o desafio é a sobrevivência diante da falta de acesso a condições básicas, já que mal conseguem obter uma fonte de renda e não possuem o mínimo de estrutura para dar continuidade aos ritos religiosos e culturais.

A ausência de interesse, em execução de políticas específicas, é tão evidente que sequer há registros mais precisos sobre a distribuição de indígenas das diversas etnias nas áreas urbanas. No máximo, há estimativas da Fundação Nacional do Índio (Funai) que apontam uma estimativa: de 560 e 650 mil pessoas, 460 mil vivem em aldeias, enquanto se dimensiona de 100 a 190 mil cidadãos residentes fora das terras indígenas e em áreas urbanas.

Mesmo indígenas aldeados enfrentam consequências nefastas agravadas desde o início da pandemia do Coronavírus. Sem assistência material durante período de isolamento social, as comunidades não conseguiram escoar as produções artesanais, ter acesso a insumos para plantio de suas roças, além de sofrerem limitações no acesso à saúde  da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) estiveram suficientemente disponíveis, seja para o enfrentamento da Covid-19, seja para outras doenças. Foram diversas as comunidades precisaram, por conta própria, construir barreiras sanitárias para evitar invasão e ainda mais contaminação do vírus.

Cacique Chiquinho conta como, também neste caso, nenhum reforço foi disponibilizado pelo órgão. “A Funai não prestou assistência em nada. Estamos abandonados. A vacina ninguém tomou. Tem pessoas idosas crianças e não tomamos vacina. E para além da vacina e do Covid, há várias outras doenças, questões de saúde, que a gente precisava de uma assistência e não teve”, afirma Chiquinho.

“Quanto ao nosso movimento, estamos na construção dos ranchos, nossos guerreiros já estão tocando a terra para limpar e a gente poder plantar. E vamos levando na boa vontade, na ansiedade de plantar do meu povo e na força de vontade de trabalhar com a terra”, completa.

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O governo Bolsonaro vem concentrado o maior número de ataques contra os povos indígenas há diversas gestões. Desde o início de sua posse, diversas mobilizações em Brasília vem denunciado o papel devatador que a gestão desempenharia nas relações com os povos indígenas. Os ataques foram tão diretos quanto escandalosos, começando com a transferência da FUNAI para o Ministério da Damares (Mulher, Família e Direitos Humanos), sucedendo ao assédio sistemáticos de fundamentalistas – inclusive providos de recursos públicos – contra povos indígenas. A entrega das demarcações às mãos de ruralistas, o que literalmente paralisou qualquer processo de demarcação.

Houve ainda a extinção de órgãos importantes que, em um atravessamento de situações, prejudicou a comunidade, como a extinção do Consea, da Secretaria de Educação Continuada. Houve, ainda, as declarações nefastas legitimando a violência contra indígenas: “nenhuma terra será demarcada”. Diversos ataques podem ser acompanhados em movimentos como o do portal Nação Indígena (clique aqui para acessar).

Apesar dessa intensificação mais arrasadora, os registros de uma aceleração na retirada de direitos indígenas já havia iniciado desde 2016, durante o governo de Dilma Roussef, quando começaram as reduções significativas de orçamento das Frentes de Proteção Etnoambientais. Com a chegada de Temer, o país vivenciou então a pior série de demarcação desde 1985. Neste mesmo período foi efetuado o contingenciamento de 55% dos recursos discricionários da Funai,  limitando ainda mais a possibilidade de assistência em novos projetos.

Hoje, são diversas as críticas direcionadas à condução do órgão federal, já envolvida em denúncias de estagnação, de auxiliar ou promover conflitos entre diferentes nações de modo a isentar-se de sua responsabilidade sobre a assistência, gerando mais mais expectativas de conflito e disputas pelos poucos recursos que restam.

A despeito das significativas diferenças entre os governos, os ataques vêm se estendendo aos três poderes, combinando principalmente acordos entre Executivo e Parlamento. Com empenho da bancada ruralista e outros setores empresariais, se prossegue o impedimento das demarcações, a permissividade para as invasões a terras indígenas e a legitimação para os ataques contra os povos indígenas que concretiza o denunciado genocídio.

O resgate

“Nessa área, a gente pede que vejam nossa situação para a gente não se acabar na zona urbana da cidade. Esperamos que vejam a situação desse povo, dessas famílias que estão perdendo a cultura”, relata o Cacique Chiquinho.

A comunidade hoje é composta por idosos, mulheres, homens e uma média de 20 a 25 crianças. “A gente precisa de sementes, arames para os animais não entrarem e não comerem a roça, e de ferramenta para trabalho. Tudo isso até agora não veio”, conta. A Mídia Caeté buscou contato com a FUNAI, que se limitou a responder que as perguntas estão sendo “avaliadas”.  Até o momento, a ”avaliação” continua. Já funcionários da coordenação regional informaram que o setor ainda não havia sido informado sobre a retomada.

Entretanto, as lideranças mostram que foi enviado no dia 03 de março deste ano um documento à FUNAI, diretamente À coordenadoria regional, cujo conteúdo não só informa sobre a existência da comunidade multiétnica, como também apresenta  demandas do grupo.

 

Fragmento de ofício elaborado pelo grupo Pankaxuri destinado à FUNAI.

No ofício, o grupo relata ter encontrado degradação na mata nativa, risco sofrido nas fontes de águas, e ocupação da terra por posseiros,  grileiros e fazendeiros. As demandas apresentadas são listadas em cinco reivindicações: o direito ao território; o cadastro de indígenas autoafirmados, e reconhecidos pleo clã, que ainda se encontram fora do acesso aos direitos sociais; o acesso à saúde indígena, vacinação contra a Covid-19, e medidas contra a pandemia; que seja acionado o Ministério de Desenvolvimento e Combate à Fome para assistência urgente em segurança alimentar, dadas as condições atuais de vulnerabilidade em que se encontram expostos; segurança contra grileiros e posseiros; e, finalmente, uma postura ativa de interferência quando da discriminação ou situações violentas enfrentadas pelos integrantes da comunidade.

Apesar da falta de acesso aos direitos, ao menos até agora, são grandes as expectativas de uma melhora de vida com este retorno. A esperança vem forjada com o trabalho da própria comunidade.  “A gente pretende de agora em diante resgatar o que foi perdido, plantar, colher, alimentar o nosso povo. Essa luta pode nos trazer muita felicidade pela infelicidade que a gente vem sofrendo esses anos”, conta.

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