Homens armados aterrorizam famílias agricultoras em Atalaia

Denunciado como mandante, ex-deputado estadual não respondeu à MC; CPT registra aumento de 257% de conflitos no campo
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Trabalhadores rurais flagram momento em que homem já desce armado em uma Hilux de placa ORL 0800 (Foto: Arquivo Pessoal)

Longe de se manter nos livros de história, a violência no campo, esta mesma que faz parte da formação histórica do Brasil, continua se valendo da impunidade, enquanto cresce e se legitima por atualíssimos discursos de autoridades e ruralistas. A mais recente escala de agravamento não deu trégua sequer durante a pandemia do Coronavírus, vitimando, nesta semana, cerca de cem famílias trabalhadoras rurais da Fazenda Santa Tereza, no município de Atalaia.

A comunidade, que vive há mais de cinco anos na região, foi atacada por um grupo de homens armados sob ordens de um suposto arrendatário, identificado pelas vítimas como o ex-deputado estadual Nailton Felizardo. Os agressores envenenaram e tratoraram grande parte da produção da roça, agrediram fisicamente trabalhadores, atirando para cima enquanto ameaçavam de morte mulheres, crianças, homens e idosos.

Militantes do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra se deslocaram ao local para prestar assistência aos agricultores. De acordo com o militante do MST, Ermany Dornele, o conflito começou ainda na terça-feira, quando o suposto arrendatário surgiu no território, levando outros cinco tratores, enquanto dizia ser o dono da terra. “Ele já chegou dizendo a todos que ou saíam por bem ou por mal. Os tratores chegaram a passar por cima de boa parte da produção”, relatou. “Tudo isso em meio a uma pandemia de Coronavírus, onde a falta de alimentos é um grande problema”.

No dia seguinte, os agricultores decidiram se reunir para discutir a situação e foram surpreendidos novamente pelo grupo, segundo Dornele. Inicialmente ficaram observando as famílias dentro do veículo. Em seguida, partiram para mais uma ofensiva.

 

Entre os veículos relatados pelos agricultores, foram identificados alguns da usina Santa Clotilde. Representantes da Usina negaram envolvimento na ocorrência e informaram que não possuem vínculo no local. Um outro veículo, uma Hilux, também teve a placa anotada. “Quando eles desceram dessa Hilux, começaram a atirar para cima e ameaçar o povo de morte”, disse. “Acionamos equipes do Centro de Gerenciamento de Crises e esses ainda ficaram lá por um bom tempo”. Os relatos foram divulgados também no site do MST, que você pode conferir clicando aqui.

“Aos gritos. Dando tiros em cima da cabeça”, relata superintendente.

O superintendente de Igualdade Racial da Secretaria de Direitos Humanos, Mirabel Alves Rocha, relata o grau de violência. “Nós tomamos conhecimento de que havia um acampamento de trabalhadores que tinha sido invadido por várias pessoas armadas, que bateram nos trabalhadores e atiraram para cima, como forma de amedrontar e humilhá-los. Inclusive determinaram que os cidadãos se ajoelhassem, destruindo grande parte da roça dessas pessoas”, relatou.

 

Representantes da Secretaria Estadual da Mulher e dos Direitos Humanos chegam ao local. (Foto: Cortesia)

Quando os representantes da Secretaria chegaram ao local, segundo Mirabel, as equipes da Polícia Militar já estavam presentes, colhendo relatos das vítimas. Segundo Mirabel, alguns agressores também ainda estavam no local, incluindo Nailton “Ele inclusive chegou a admitir lá mesmo que envenenou os alimentos das pessoas. Declarou que era arrendatário, mas em nenhum momento apresentou qualquer documento que comprovasse, nem para a Secretaria, nem para a Polícia”, comenta. “Avalio que a intervenção feita foi necessário porque, caso a Polícia não tivesse chegado ou a Secretaria, certamente a situação iria se agravar. Os agressores que estavam no local estavam bastante imbuídos desse sentimento. Havia marcas de tiro de pistola, espingarda 12”, comenta.

Apesar disso, nenhum agressor foi preso no local.

Nenhum agressor foi preso no local. (Foto: Cortesia)

De acordo com o superintendente, os agressores não foram presos em flagrante, mas denunciados. Equipes da Polícia Militar conduziram as vítimas à delegacia, para que fosse feita uma notícia-crime. “Foi aberto um inquérito. E ele foi acusado de ameaça de morte, destruição de patrimônio, violência física e uso de arma de fogo por pessoas não autorizadas. Eles dizem que uma das pessoas que usou a arma é policial, mas ainda que seja não estava exercendo sua função, mas a serviço de interesse particular”.

Nailton também não foi preso, desta vez. “O suposto arrendatário chamado Nailton, que estava no local. repetia que era arrendatário, mas não apresentou contrato de arrendamento. Conversei com ele e orientamos no sentido de que ele não deve exercer a autotutela, que é um procedimento que não admitimos em dias atuais, o uso da violência. Nós precisamos aplicar o que está na Constituição”, afirmou. Apesar disso, também foi denunciado. “Ele foi denunciado pela autoria intelectual do caso. Duas vítimas que chegaram a ser agredidas fisicamente foram ouvidas na Delegacia de Atalaia. Outras duas testemunhas também foram agendadas para serem ouvidas” disse.

Aos trabalhadores, a sugestão foi de que procurem a Defensoria Pública de modo que tenham direito de defesa no direito à terra. “Sugerimos que eles proponham uma ação para proteger a posse deles, que se trata de uma posse velha, de modo que medida liminar não pode retirar o posseiro, ainda que o dono venha a expedir”, explica. “Nós vamos continuar acompanhando e vamos noticiar todas as autoridades sobre o que está acontecendo. E também vamos procurar o Ministério Público para que outras providências sejam tomadas”, atentou.

Destruição de alimentos em meio à pandemia

Macaxeira, milho, mandioca, feijão, batata-doce. “Dava para ver que os alimentos já estavam perto do momento de colheita. Muita coisa destruída pelo trator que eles passaram por cima”, conta o superintendente. Não bastassem ser amedrontados, os trabalhadores ainda tiveram grande parte e sua roça destruída exatamente em um período de pico de Coronavírus no país – e em Alagoas – que já intensifica, por si só, processos de empobrecimento, dificuldade de escoamento de alimentos e de sustento através de trabalho.

Outros elementos apontados por Mirabel Alves são: o desrespeito aos protocolos de reintegração, o descumprimento ao decreto estadual de isolamento social, e a exposição das famílias a ainda mais riscos. “Estamos em meio a uma pandemia. Qualquer reintegração de posse, no campo e na cidade, tem passos a serem seguidos. Não é pegar ordem judicial, levar policial e arrancar as pessoas. É uma questão social e é preciso que protocolos sejam seguidos. Que tenha ordem judicial. Neste momento de pandemia, então, atos de reintegração não podem ser praticados sob pena de causar danos à saúde da população. Estamos submetidos a isolamento. Então isso viola tudo, inclusive o decreto estadual que impõe o isolamento. E uma reintegração dessa é exposição absurda porque as pessoas retiradas são vulneráveis socialmente. Agrava a exposição ao Coronavírus”.

O “dono” da terra

Não há resposta precisa sobre quem teria direito legal sobre a terra. As informações colhidas no local, segundo o superintendente, de forma extremamente preliminar, são de que a terra daquela Fazenda Santa Tereza faz parte de uma massa falida da usina Uruba, pertencente a João Lyra. O usineiro declarou falência, deixando 2,1 milhões em dívidas, incluindo com trabalhadores. “Não sabemos quem é o responsável, mas quando é proveniente de massa falida, há todo um protocolo e o território não pode ser alugado ou onerado tão facilmente, enquanto o processo está existindo. O senhor Nailton alega ter arrendado, mas não apresentou nada que comprovasse”.

O que se pode ter certeza, entretanto, é que há pessoas vivendo e trabalhando no local há mais de dez anos. Com produção farta, as famílias oriundas do próprio município – muitas desempregadas desde a falência – passaram a manter o sustento a partir da roça naquele território onde, até então, não havia mais qualquer atividade produtiva. Algumas poucas pessoas residem em outros locais, mas possuem um espaço de plantio.

Nailton Felizardo não respondeu

A Mídia Caeté entrou em contato com Nailton Felizardo, chegando a informar do que se tratava a entrevista. Por telefone, ele informou que no momento não poderia falar pois estava dirigindo, mas retornaria depois. Ligamos novamente e não conseguimos mais contactá-lo. O espaço permanece aberto para possíveis respostas.

O aumento da violência no campo em Brasil e em Alagoas e o amparo na impunidade

Longe de ser isolado, o caso da violência sofrida por trabalhadoras e trabalhadores rurais em Atalaia integra toda uma escalada de conflitos no campo em todo o país, e também no estado. São muitas as distinções, sobretudo entre as vítimas mas prevalece uma perspectiva muito comum que é, via de regra, a certeza da impunidade.

Em seu caderno Conflitos no Campo no Brasil 2019, a Comisão Pastoral da Terra (CPT) estendeu diversos tópicos em que descrevem como a impunidade se coloca na prática. De acordo com as palavras do professor de Direito Agrário Carlos Marés, encontradas no documento: “A impunidade não se dá apenas porque não há ação policial adequada, mas também porque o Judiciário age com todo o formalismo que o processo penal exige. Quer dizer, a fraca ação policial gera a possibilidade do formalismo processual não atingir a punição dos responsáveis, principalmente quando acompanhados por eficientes advogados. Esta situação de impunidade de mandantes
e executores contrasta com a criminalização  das lideranças e dos movimentos sociais. As ações de milicianos, jagunços e matadores e seus mandantes têm sido frequentes e a punição, ou mesmo a investigação pelas polícias, tem estado muito aquém da necessidade social, servindo como incentivo à ação criminosa. Portanto a balança da Justiça pende fortemente para um lado e a venda que deveria encobrir seus olhos está visivelmente diáfana”.

Segundo os dados levantados pela CPT, os conflitos no campo cresceram em 257,14% em um espaço de um ano, em Alagoas, entre 2018 e 2019. Em 2018, foram registrados sete casos de conflitos no campo, sendo cinco casos de conflito por terra, dois casos de conflitos relacionados à exploração de trabalho escravo. Já em 2019, o número de casos de conflito por terra subiu para 21, houve ainda 4 casos de conflito por água, totalizando 25 conflitos no campo. Vale ainda ressaltar que, segundo as tabelas de violência contra a ocupação e a posse, 647 famílias foram despejadas, 127 sofreram ameaça de despejo, outras 100 sofreram tentativas ou ameaças de expulsão, 53 casas e 78 roças foram destruídas, e houve ainda o registro de 100 ações de pistolagem.

No Brasil, as informações repassadas pela Comissão apontaram um crescimento de 14% no número de assassinatos, 7% a mais de tentativas de assassinato, 22% mais ameaças de morte. Através de dados do Centro de Documentação Dom Tomás Balduino, da CPT, 2019 é posicionado como o ano em que houve o maior número de assassinatos de lideranças indígenas dos últimos 11 anos. “De 9 indígenas assassinados em conflitos no campo no ano, 7 eram lideranças. Além disso, há mais uma vez os conflitos pela água que, em 2018 já haviam batido recorde com 276, aumentaram vertiginosamente. Foram registrados 77% a mais desse tipo de conflito em 2019”, relatou a assessoria. O relatório completo pode ser verificado no link

 

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