Achismos e falta de inquérito expressam tratamento dado a crimes contra a população em situação de rua em AL

Reuniões são frequentes entre órgãos públicos, mas resoluções seguem confusas e sem concretude nas elucidações.
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Rafael Machado, coordenador nacional do Movimento Nacional da População em Situação de Rua, em vídeo em que anuncia 30 vítimas letais no ano, e relata caso de preconceito. Imagem: Reprodução/MNPR

Por mais frequentes que sejam as reuniões, seguem difusas as resoluções apresentadas até agora em relação aos crimes contra a população em situação de rua em Alagoas. Sem até momento informar quais casos foram solucionados, ou sequer quantos inquéritos estão abertos, a confusão de dados se estende até mesmo ao número de pessoas vítimas da letalidade e que estavam nesta condição específica de vulnerabilidade.

A busca por informações  sobre a quantidade de inquéritos abertos ou avançados na Polícia Civil vem sendo uma cobrança constante de órgãos públicas, também efetuada pelo Movimento Nacional da População em Situação de Rua (MNPR-AL), que hoje contabiliza 30 mortes de pessoas em situação de rua no estado. O caso mais recente vitimou duas pessoas de uma mesma família e deixou uma terceira ferida, após um atentado ocorrido na praça Sinimbú. O pai morreu na hora e o filho não resistiu, falecendo dias depois no hospital. A mãe segue internada.

O caso se tornou emblemático, não só pela natureza do atentado, como ainda porque, antes mesmo da abertura das investigações, a Polícia Civil já havia divulgado para a imprensa que o ataque tinha sido ocasionado por um possível envolvimento com drogas.

Imagens após ataque a família em situação de rua na Praça Sinimbu (Foto: Reprodução)

A declaração revoltou as pessoas em situação de rua. O coordenador do MNPR, Rafael Machado, retratou como o comunicado da Polícia só reforça preconceitos, ao tempo em que revela a brecha deixada pela ausência de investigação.

“Sempre quando acontece algum assassinato contra a população de rua, já colocam na conta do tráfico de drogas, como se fosse só isso que matasse. Nem deu tempo de investigar e a delegada já foi dizendo para a imprensa que esse ataque na Sinimbú foi por esse motivo. Isso só reforça o preconceito contra as pessoas em situação de rua. O que a gente quer é inquérito. Mesmo porque podem ter sido outras causas. Está sendo muito frequente a violência policial, a tentativa de expulsar a população daquele lugar. Pode ter sido outra razão. O que a gente quer é que seja investigado devidamente”, revela.

Secretário da Comissão de Direitos Humanos da OAB-AL, Arthur Lira. Foto: Wanessa Oliveira

O secretário da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil Seccional Alagoas (OAB), Arthur Lira, relatou que o órgão também oficiou a Polícia Civil para apuração do caso. “A OAB oficiou a Delegacia-Geral para instaurar inquérito e, caso tenha sido instaurado, que passe as informações. Só que bem antes, pouquíssimo tempo após o crime, surgiu a afirmação de uma delegada apontando suposto motivo em curto período. Quer dizer, enquanto estávamos diligenciando para ter apuração, e para que se ouça possíveis vítimas dentro do inquérito, uma delegada já deu declaração apontando qual poderia ser o motivo. O que atentamos é que é necessário haver uma apuração prévia, com oitiva de testemunhas, para que aí sim se chegue num denominador e possível autor ou motivação. E não partindo do pressuposto, que é contra a lógica. Você aponta primeiro o motivo e o autor, para depois investigar. Acho que é preciso investigar primeiro, para depois encontrar a motivação e a culpabilidade de quem está envolvido”.

A afirmação foi reiterada por Machado, durante reunião realizada entre Polícia Civil e Poder Judiciário, no dia 19 de setembro, contando ainda com o MNPR, Secretaria de Direitos Humanos do Estado, e Defensoria Pública. “O que não dá, e é inaceitável, é que, ao invés de solucionarem os casos, digam que somos traficantes. Dizer que não tem traficante, a gente sabe que tem. Mas dizer que é o tráfico o motivo do extermínio da população em situação de rua, isso eles não podem dizer, muito menos sem ter investigação”.

Onde sobram achismos e especulações, falta apresentação de evidências.

Durante esta mesma reunião, promessas de esforços se somaram a alguns encaminhamentos, como a proposta de um curso de formação para operadores da Segurança Pública, uma vez que foi recorrente o pleito também das abordagens violentas e da inabilidade no tratamento com o segmento. No entanto, não foi apresentado pela Polícia Civil um número exato de investigações em andamento, de modo que o órgão apenas afirmou que o número era bem  menor do que os 26 – até então registrados pelo Movimento.

Reunião da Polícia Civil junto a Poder Judiciário, Defensoria Pública, Secretaria de Direitos Humanos do Estado e Movimento Nacional da População em Situação de Rua. Foto: Wanessa Oliveira

Na ocasião, a delegada de Homicídios da Capital, Tacyane Ribeiro, afirmou que a dificuldade de avançar para a autoria dos crimes se dava em razão dos obstáculos ao reunir provas técnicas e da desconfiança da população em situação de rua na relação com a polícia, de modo que até dados como a identificação das vítimas eram dificultados.

A Mídia Caeté procurou a Polícia Civil, através de assessoria e também protocolou  solicitação de informações para o setor de Estatísticas do órgão, reiterando a mesma busca: que apresente o número de casos registrados, além do número de investigações em aberto e concluídas. O órgão mais uma vez não trouxe uma resposta sobre o pedido de informação. A única atualização apresentada, até então, via assessoria, foi o vídeo das câmeras que passou a ser circulado no sentido de tentar identificar os autores do crime ocorrido contra a família na Sinimbú.

A ausência de inquéritos chegou a ser reclamada, também, pelo Poder Judiciário em Alagoas. Durante a reunião, o coordenador de Direitos Humanos do Tribunal de Justiça, desembargador Tutmés Airan, rememorou que foi construída uma vara específica para atendimento de crimes contra pessoas em situação de vulnerabilidade – o que inclui a população em situação de rua – e, no entanto, sequer os processos judiciais chegam à instância para serem apreciados. O desembargador solicitou reuniões periódicas para acompanhamento dos casos e propôs a construção de agrupamento específico da Segurança Pública para as abordagens contra a população em situação de rua.

A delegada Tacyane Ribeiro chegou a informar que existiam inquéritos abertos em uma quantidade bem inferior àquela apresentada pelo MNPR. Entretanto, mencionou que alguns dos crimes ocorridos com pessoas em situação de rua não são registrados pelo órgão como crimes contra pessoas em situação de rua. Um exemplo mencionado foi de Janaína Gomes, coordenadora estadual do MNPR assassinada no Benedito Bentes em 16 de fevereiro deste ano. Segundo a delegada, o crime não foi classificado por ela não ter sido o alvo – e sim, seu filho.

A afirmação demonstra, portanto, como há certo conflito de entendimento por parte da Polícia Civil até mesmo em descrever o que seria um crime de pessoa em situação de rua, confundindo-o com um crime de ódio contra pessoas em situação de rua, gerando mais uma causa de subregistro.

Dessa forma, ainda que o MNPR apresente um total de 30 vítimas letais em 2023 – sem, no entanto, conseguir nomeá-las ou delimitar as circunstâncias- tampouco a Polícia Civil apresenta qualquer número específico, ou qual definição que utiliza para definir as vítimas, ou mesmo qual entendimento possui sobre o que é uma morte de pessoa em situação de rua.

Alguns órgãos, como Defensoria Pública e OAB, têm buscado reunir esta lista. A Mídia Caeté realizou uma consulta ao MNPR e Defensoria Pública, além de um levantamento em portais de notícia em Alagoas, conseguindo contabilizar um total de 12 nomes de vítimas letais em situação de rua identificadas, 1 desaparecimento com nome identificado, além de cinco notícias de mortes sem identificação da vítima, apenas com a informação de que se tratava de pessoa em situação de rua – de modo que, até o momento, não foi possível cruzar os dados dos corpos não identificados para confirmar se os casos noticiados se somam, ou não às 12 mortes e ao desaparecimento, por exemplo.

O secretário da Comissão de Direitos Humanos da OAB levanta esta preocupação a respeito do subregistro e suas múltiplas causas- incluindo a ausência de identificação das próprias vítimas, e a necessidade de se reforçar uma competência que entenda as particularidades da condição de rua.

“Nos casos gerais, há uma subnotificação dos casos. Há uma dificuldade de apuração porque faltam testemunhas, informações da própria vítima como nome e sobrenome, e também falta compreensão do poder público das dinâmicas singulares da população em situação de rua. Muitos desses casos, há conflitos entre as próprias pessoas em situação de rua. Essa dinâmica falta o poder público compreender para, também, atuar”, comentou.
Lira pondera a necessidade de avançar o debate para o âmbito das políticas públicas. “São duas vertentes. A prevenção à violência, com um plano específico que consiga de forma inter-setorial – tanto com poder público municipal, quanto com o poder público estadual – cessar esses casos de violência. Uma estratégia em comum em torno dessa pauta. O outro ponto é a apuração desses crimes que já aconteceram”.

No que diz respeito à apuração, outro ponto é mencionado pelo secretário da Comissão. Atualmente, além da Delegacia de Homicídios, que apura especificamente os casos de homicídio, há também a Delegacia de Crimes contra Vulneráveis Tia Marcelina – que especializada em crimes contra pessoas em situação de rua, a exceção de homicídios.

Para Arthur Lira, da OAB, é necessário que haja uma melhor comunicação entre ambas. “Em um primeiro momento, fica sem saber lidar com o caso porque a DHPP tem expertise em crimes de homicídio, porém não tem para atuar com crimes contra vulneráveis. Já vulneráveis tem essa especificidade, mas não tem a estrutura de uma DHPP para atuar com homicídios. Então, há necessidade de diálogo permanente entre as duas delegacias e uma equipe específica para este caso. Designar delegados específicos, corpo policial específico, para entender a dinâmica primeiro e que consiga dar as respostas em tempo hábil entendendo as dificuldades, que são inerentes da condição da pessoa em situação de rua”, defende. “Não tem documentos? Se não tem, é porque a maioria das pessoas em situação de rua perdem documentos, inclusive por abordagem policial, que são órgãos do estado. Então tem toda essa dinâmica”.

Na segunda-feira, 25, outra reunião aconteceu no Tribunal Regional Eleitoral (TRE)– uma vez que o crime contra as três vítimas aconteceu nas imediações do prédio do órgão. O encontro ocorrido entre órgãos estatais finalizou com o encaminhamento de que a presidência do Tribunal agendaria um encontro entre o governador de Alagoas, Paulo Dantas, e o prefeito de Maceió, João Henrique Caldas, para tratar sobre as estratégias propostas pelos presentes na reunião.

Reunião no TRE entre órgãos do Judiciário e Executivo. Foto: Ascom/TRE-AL

A reunião não repercutiu positivamente entre o Movimento da Poprua, uma vez que não chegaram a participar da atividade. Além do mais, uma fala do presidente do TRE em exercício, desembargador Klever Loureiro, acirrou ainda mais a revolta do MNPR, ao declarar que: “Estamos procurando uma solução para essas pessoas vulneráveis, pessoas de rua , muitos deles doentes, vivem drogados. Fomos discutindo diversos aspectos para ponderar ou ao menos amenizar o sofrimento deles, para buscar a solução. O Movimento declarou que a fala mais uma vez reforça estereótipos, trazendo ainda mais obstáculos à apuração das mortes frequentes.

Na última quinta-feira, 28 de setembro, mais uma reunião foi realizada – desta vez acionada pelo Governo do Estado, que chamou o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), o Movimento Nacional da População de Rua (MNPR/AL) e Poder Judiciário, para debater a proteção às pessoas em situação de rua, diante desses casos. Mais uma vez, integrantes da Segurança Pública prometeram reforço em patrulhamento e andamento dos inquéritos. Ministério Público informou que instauraria um centro de monitoramento.

Reunião com Conselho Nacional dos Direitos Humanos junto a órgãos públicos busca mais alinhamento de estratégias. Foto: Daniel de Oliveira e Marta Galdino/Ascom Semudh

Dias antes, o Comitê Gestor Intersetorial da Política Nacional para a População em Situação de Rua, lançou mais um requerimento ao poder executivo para demandas relacionadas a este problema. Na chamada carta de reivindicações, apresentou as seguintes demandas:

“ Prevenção, apuração e punição dos atos de violência praticados contra essa população;
 Elaboração e implementação do Plano Estadual para População em Situação de Rua, realizado através de escuta qualificada efetivada por conferências livres nos municípios de Maceió, Arapiraca e Palmeira dos Índios (municípios com adesão a Política Nacional da População em Situação de Rua) e garantia de recurso no PPA para execução da política direcionada a esta população;
 Mapeamento dos serviços, programas e políticas voltados a População em Situação de Rua oferecidos pelo Governo do Estado, afim de consolidar a rede de atenção e a transversalidade da política para este público; ESTADO DE ALAGOAS Secretaria de Estado da Mulher e Direitos Humanos Comitê Gestor Intersetorial da Política Nacional para a População em Situação de Rua
 Articulação junto a SESAU para o fortalecimento e municipalização das equipes do Consultório na Rua nos Municípios detentores da política para PopRua (Maceió, Arapiraca e Palmeira dos Índios), inclusive, destinando para este fim recursos do FECOEP para realização do seu co-financiamento;
 Criação de uma comissão para estudo e análise, visando a implementação do Programa Moradia Primeiro (Housing First) no Estado de Alagoas;
 Viabilização de cotas para “marmita solidária” a serem distribuídas gratuitamente nos restaurantes populares do Governo do Estado, destinadas à população em situação de rua;  Elaboração de projetos de capacitação profissional e emissão de documentos oficiais para promoção da autonomia desta população;
 Elaboração de calendário regular de reuniões para monitoramento e acompanhamento das resoluções encaminhadas nesta reunião.”

Enquanto os órgãos seguem em regime de reuniões, encaminhamentos e requisições de informações, permanece a incógnita sobre o andamento das investigações e a execução das políticas mais aprofundadas que combatam a violência contra a população em situação de rua.  Nesse sentido, a coordenação do MNPR agora vem se voltado a tentar nacionalizar o debate.

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