Associação denuncia abandono de crianças com microcefalia

Em situação de pobreza, maioria das famílias luta na Justiça para garantir remédios, exames e fraldas
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Por Luciano Milano e Nelson André

Juliana da Silva Lima estava no sétimo mês de gestação quando descobriu que sua terceira filha, Maria Beatriz, tinha microcefalia. Para ela, no começo foi difícil, mas a família foi se adaptando à rotina da criança. “Hoje conseguimos entender o que ela quer”, comemora Juliana.

O marido trabalha viajando e ela cuida dos filhos com ajuda da mãe, no interior de Pernambuco. Um garoto de 12 e uma menina de seis, além de Maria Beatriz, com quase quatro anos, que tem ensinado muito em casa. “A Bia tem me ensinado a olhar o mundo de outra forma. Que o pequeno com amor se faz grande. Que a coisa mais simples que ela consegue fazer nos traz motivação para continuar”, disse a mãe.

Uma mãe bem, uma família estruturada após o diagnóstico e com condições mínimas de cuidar são motivos que também são celebrados. Segundo Alessandra Hora, presidente da Associação de Famílias de Anjos do Estado de Alagoas (AFAEAL), não só a criança é uma preocupação, mas o cuidador também. “Para o cuidador cuidar, ele tem que estar bem. Tem famílias que foram abandonadas pelo marido, tem mãe que não tem família por perto. Então fica complicado quando esse cuidador não está bem de saúde, que ele não pode cuidar”, afirmou.

Pelo menos 31 crianças morreram e 200 vivem em Alagoas com microcefalia causada pela epidemia do zika vírus, transmitido pelo mosquito Aedes Aegpit, que atingiu centenas de gestantes e seus bebês em Alagoas. Para se ter ideia da gravidade do problema, Alagoas permaneceu em estado de emergência até 2017. Os primeiros registros do aparecimento do zika vírus são entre fevereiro e março de 2015.

Juliana da Silva e sua filha, Maria Beatriz (imagem cedida pela entrevistada)

A microcefalia é uma condição em que a cabeça de um bebê é significativamente menor do que o esperado, muitas vezes devido ao desenvolvimento anormal do cérebro. Os sintomas variam e incluem deficiência intelectual e atraso de fala, paralisia cerebral, problemas de visão e audição. Em casos graves, pode haver convulsões e funcionalidade muscular anormal. Não há cura para a doença e o tratamento envolve cuidados médicos e paliativos, controle de sintomas e monitoramento rigoroso.

Por tudo isso, o tratamento, diário e para a vida toda, custa caro, de acordo com a presidente da AFAEAL, avó do Eric Gabriel dos Santos, hoje com 3 anos e 9 meses, e que sofre com a microcefalia. Segundo ela, para cuidar de uma criança nessas condições com estrutura para exames, consultas, fraldas, alimentação remédio, transporte para fisioterapias e as inúmeras necessidades que um microcéfalo possui, é necessário pelo menos R$ 2.500 mensais. A conta é mais alta. Alessandra Hora divide a guarda e os cuidados com Eric com a avó materna do menino: o filho da presidente da AFAEAL foi assassinado e a mãe do menino o abandonou logo após o nascimento.

Ainda segundo Hora, 80% das famílias cujas menores têm microcefalia são pobres, vivem de salário mínimo ou menos que isso – além da renda do Benefício de Prestação Continuada. A avó do Eric Gabriel considera que as famílias estão abandonadas pelo estado em todas as esferas.

“Esse problema das crianças com microcefalia é de total responsabilidade do estado em todas as suas esferas. Por isso, lutamos diariamente, inclusive na Justiça, para que possamos tratar de nossas crianças com microcefalia com os cuidados necessários a elas”, declarou à Mídia Caeté a presidente da AFAEAL.

De acordo com Hora, governo do estado e a prefeitura de Maceió, por exemplo, têm feito muito pouco para garantir os recursos já que, na avaliação das famílias representadas pela associação, é o poder público o culpado pelo surto do mosquito Aedes Aegipty. Atualmente, mais de 140 famílias estão associadas à AFAEAL.

“Transporte para realização de exames como ressonâncias, consultas, remédios, fisioterapias, remédios imprescindíveis e caros, alimentação, o Bibap (aparelho que fornece oxigênio à criança) estão entre as necessidades quase que diárias para uma criança microcéfala. Tudo isso, como falei antes, é muito caro. Eu e a avó materna do Erik gastamos em torno de R$ 1.300 por mês e isso é para coisas básicas porque o poder público tem feito muito pouco para cumprir a obrigação que tem nesse processo, já que ocorre por falta de questões primárias como saneamento básico e políticas públicas para evitar a proliferação do mosquito”, destacou Alessandra Hora.

Sabril e Kepra estão entre os dois medicamentos obrigatórios para microcéfalos: os dois são indicados para o tratamento convulsivo, o primeiro custa em torno de R$ 350, e o Kepra é encontrado nas farmácias por mais de R$ 100.

“São crianças que possuem crises convulsivas, umas persistentes, outras espaçadas, dependendo do grau da microcefalia, além de problemas na coordenação motora e visual, limitação para engolir, broncoaspiração entre outras dezenas de problemas. Tudo isso, como falei anteriormente, requer muita atenção e cuidados médicos e remédios. Como somente 20% das famílias de crianças com microcefalia são de alta renda em Alagoas, o que a maioria, os 80%, faz para viver”, destacou a presidente da AFAEAL.

AFAEAL judicializa

Atualmente, em torno de 45 crianças microcéfalas cardiopatas estão com problemas para encaminhar exames, consultas e, o mais grave, cirurgias para os casos em que necessitam da intervenção para corrigir o problema, como denuncia Alessandra Hora, da AFAEAL. Conforme a presidente da Associação, recursos deixaram de ser repassados pelo Governo do Estado e a Casa, que foi inaugurada em 2016 pelo Hospital do Coração, funciona por meio de PPP [Parceria Público Privada], pode fechar as portas.

“Há pelo menos 43 crianças, algumas da AFAEAL, que são cardiopatas, precisam dos exames e de cirurgia, mas há problemas com os recursos oriundos do Governo do Estado e crianças podem morrer se algo não for feito urgentemente”, disse Alessandra Hora. A representante da AFAEAL foi além.

Sede da AFAEAL (reprodução do Facebook)

“Há 8 meses, faltam fraldas tamanho XG, por exemplo, e as famílias das crianças com microcefalia não têm preferência na fila de marcação do Cora (Complexo Regulador de Maceió), assim como ausência de transporte adequado para conduzir os menores atingidos pela doença”, explica Hora. Por conta do descumprimento por parte do Poder Público apontado por Alessandra Hora, a AFAEAL tem ajuizada três ações na Defensoria Pública do Estado de Alagoas para garantir, por meio da Justiça, o fornecimento dos tópicos elencados pela associação.

A Mídia Caeté, então, ouviu todos os órgãos citados por Alessandra Hora.

Por meio da assessoria de comunicação do órgão, a Defensoria Pública confirmou que a existência das ações, mas afirmou que o setor tentou contato com o defensor público responsável, mas que não conseguiu falar com ele, tendo em vista que estava fora de Alagoas em período de recesso.

Também por meio da assessoria de comunicação, a Secretaria Estadual de Saúde (Sesau) se pronunciou:

“Os repasses à Casa do Coraçãozinho estão sendo realizados pela Sesau. No final do ano, a direção da Casa Coraçãozinho esteve reunida com o secretário Alexandre Ayres e os valores de contrato estão sendo normalizados”, diz a secretaria que ainda se manifestou sobre os demais temas denunciados pela AFAEAL.

“A Sesau esclarece que os exames de tomografia computadorizada para diagnósticos das crianças com microcefalia são de responsabilidade do Estado e estão sendo assegurados, bem como um neuropediatra para acompanhá-las. Quanto aos medicamentos, a Sesau distribui o topiramato, por meio do Componente Especializado da Assistência Farmacêutica (CEAF). Salientamos, no entanto, que é de responsabilidade das Secretarias Municipais de Saúde assegurar o transporte da criança e de um acompanhante para que seja realizada a estimulação precoce nos 14 Centros Especializados de Reabilitação (CERs). Enfatizamos, também, que é dever dos municípios disponibilizar o acompanhamento periódico nos Núcleos de Apoio à Saúde de Família (NASFs) e por meio do Programa Saúde da Família (PSF), com assistência de um pediatra. Por fim, informa que cabe aos municípios assegurar consultas especializadas, principalmente com pneumologistas, uma vez que, até os 2 anos, o sistema imunológico das crianças com microcefalia ainda está em formação e, por isso, elas são suscetíveis a desenvolverem problemas respiratórios, como a pneumonia”, finaliza a nota da Sesau.

A Secretaria Municipal de Saúde de Maceió (SMS) também utilizou a assessoria de comunicação do órgão para se pronunciar acerca das denúncias. Segundo o que diz a SMS a respeito de medicamentos e insumos, a Secretaria dá prioridade às crianças com microcefalia, sendo separados já de acordo com a necessidade e quantidade de usuários com o problema. Além disso, segue a nota, os pais ou responsáveis das crianças devem buscar os produtos na Farmac, localizada no Tabuleiro do Martins.

“De toda forma, os medicamentos mais utilizados (Fenobarbital, Paracetamol, Depakene e Carbornazipina) estão com estoque regularizado.  Já as fraldas também estão com estoque da mesma maneira, com exceção do tamanho XG infantil, que está em fase de conclusão da licitação. Nestes casos, recomenda-se a substituição por fraldas do tamanho G infantil ou P adulto”, segue o texto da SMS.

Gerida pelo secretário José Thomaz Nonô, o órgão afirma, ainda na mesma nota enviada à Mídia Caeté, que determinou que todas as crianças acometidas pela síndrome congênita têm o direito de receber as fraldas, independente da faixa etária. Para isso, diz a SMS, basta dar entrada no protocolo do órgão que passa a receber automaticamente, livre de burocracia para tal.

“Acerca da marcação de exames, solicitações e consultas especializadas devem ser agendadas pelo sistema de marcação das unidades de referência em que as crianças são atendidas, contando ainda com apoio da equipe dedicada da SMS, que auxilia nesta marcação quando necessário, visando dar mais celeridade”, diz trecho do comunicado.

Por fim, a SMS afirma que se fia pelo protocolo do Ministério da Saúde para acompanhamento das crianças afetadas, que é o fluxograma para a linha de cuidado da síndrome, em que elas têm acesso a pediatra, neurologista, oftalmologista, otorrinolaringologista, exames, entre outros procedimentos.

“Todas as crianças estão nos Centros Especializados em Reabilitação, geridos pelo Município, onde recebem a assistência médica necessária”, diz a Secretaria Municipal de Saúde

Medida provisória e síndrome congênita do zika vírus

O Governo Federal mediava com familiares e representante de associações, por meio do ministro Osmar Terra, a necessidade de uma Medida Provisória que atendesse o pleito das vítimas do zika vírus. As reuniões começaram no fim de 2017 e tiveram uma pausa forçada devido às eleições. Terra, que, ao início das tratativas era ministro do Desenvolvimento Social, foi para o Ministério da Cidadania.

Quando, em agosto do ano passado, chegou a ligação que dizia que o pleito de milhares de famílias foi atendido, houve muita emoção. No dia 4 de setembro, representantes de associações de todo o Brasil estavam em Brasília, a convite, para participar da assinatura. Mas, a proposta era totalmente diferente do que elas tinham levado por meio de reuniões e relatórios.

As mães e representantes de associações escreveram uma nota de repúdio e fizeram circular nas redes sociais. Tiveram que ouvir do ministro que elas estavam querendo ir contra o governo, de acordo com a “esquerda”. “A gente não está por questões políticas”, relembrou Alessandra Hora. “Queremos direitos. Direitos garantidos que essa MP está tirando”, completou. A MP, ainda segundo ela, era um passo à frente sim, mas ainda muito injusta.

Alessandra Hora, presidente da AFAEAL (reprodução do Facebook)

As famílias que entravam no quantitativo do governo só apresentavam microcefalia, mas existem outras alterações causadas pela síndrome congênita do zika vírus. Foram solicitados números de casos aos representantes das associações e cada estado apresentou um relatório com o quantitativo de crianças com efeitos causados pelo zika. Paralelamente, houve um trabalho boca a boca.

“Tinha a data que poderia receber emendas e a gente queria que ela fosse alterada. Então a gente começou mandando e-mails para os deputados, para os senadores, para que fossem protocoladas as emendas. Saímos mandando e-mails, pegamos Whatsapp dos assessores, e a gente fez o maior fuzuê. Aí saiu eu e germana batendo na porta dos deputados, dos senadores, conversando com eles, conscientizando, dizendo o que estava acontecendo com as famílias, que não podiam ficar de fora. E foi produtivo. A gente teve uma evolução de 144 emendas”, relatou a presidente da Associação Famílias de Anjos do Estado de Alagoas.

Apesar do esforço e do número expressivo de emendas, além das audiências públicas onde todos os envolvidos foram citados e falaram da necessidade de melhora da MP, apenas uma das 144 emendas foi aprovada: a substituição da menção à microcefalia, dando lugar à Síndrome Congênita Do Zika Vírus. “Agrega as crianças que tem hidrocefalia, com cardiopatia e outras alterações… então agrega todas as crianças que foram afetadas”, explicou Alessandra. “A gente conseguiu também que, no momento que aquela mãe trabalha e descobre que o filho tem a síndrome congênita, ela tem o direito de receber a licença maternidade e o BPC ao mesmo tempo, que não podia”, completou.

Além disso, o prazo de abrangência do benefício, que seria de 1º de janeiro de 2015 até 31 de dezembro de 2018, ganhou mais um ano, apesar de que a luta era para que não fosse determinado prazo.

Uma derrota bastante sentida foi o desatrelar a pensão vitalícia do BPC. Mas o próprio relator observa que, uma vez que o governo reconheceu a falha em adotar medidas públicas preventivas, há uma falha da administração e que pode levar a judicializar em busca do direito ao benefício por quem ficou de fora. Agora é esperar passar pelo Senado para virar lei, o que deve ocorrer até o dia 2 de fevereiro, ou a proposta cai.

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