Bolsonaro anunciou vender vidas e já há quem compre

A desobediência é nossa melhor chance.
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Bolsonaro não se importa em perder a coroa de “mito”, ainda que utilize o pior do senso comum e da desinformação para esticar ao máximo seu tempo na cadeira presidencial. A falta de construção de qualquer argumento plausível, mesmo para ele, demonstrou mais do que escárnio: trata-se do total desinteresse em mentir. O pronunciamento que assistimos consternados nesta terça-feira, 24 de março, não foi destinado ao povo brasileiro de sua pátria amada (imagine se fosse odiada). As palavras foram ditas para que setores específicos ouvissem com objetividade e sem charadas: “Vendo todas essas vidas sem problemas”.

Mas tudo isso tem sido feito há muito antes. Bolsonaro prosseguiu com a indisposição progressiva dos governos brasileiros em relação às dores do povo. Sucedendo a tentativa petista de desenvolvimentismo e conciliação de classes, que colapsou com a pressão das classes econômicas que queriam abocanhar mais, vem o golpe jurídico, parlamentar e midiático. Com ele, a obediência do Governo Temer aos setores econômicos que o impulsionou, o esvaziamento das políticas públicas. Entre as mais medidas mais impactantes, seguiu a Emenda Constitucional 95, que estabeleceu um Teto de Gastos para a Saúde e Educação.

A Reforma Trabalhista, por sua vez, não só não reduziu o desemprego, como aumentou de forma exponencial a precarização. Não dá para descrever sem visualizar: o sangue e suor escorrendo de brasileiros que trabalham transmutando em um Brasil que hoje detém a segunda pior distribuição de renda, onde 1% dos mais ricos detêm mais de 28% da riqueza.  Ainda era pouco para a extrema-direita.

Por trás dos discursos risíveis, até então facilmente assimiláveis para parcela da população, as peças do xadrez da direita radical foram manuseadas pelas mãos visíveis de industriais e mercado financeiro, cujos interesses foram representados de forma concentrada na equipe de Guedes. Distrações com passos largos, que custaram vidas da população pobre, negra, de mulheres, de LGBTs. Uns pequenos recuos vexatórios, mas certificando-se de um avanço significativo para o abismo. E Passou Reforma da Previdência. A agenda de privatizações. A Lei da Liberdade Econômica, a Carteira Verde e Amarela, a retirada sistemática de benefícios sociais.

No entanto, o crescimento foi aquém do esperado. As crises se avolumaram com a perda progressiva de prestígio alavancada pelos descontroles dos filhos de Bolsonaro, pela publicização do envolvimento de sua família com milicianos e, finalmente também graças às vozes que se agigantaram perguntando: quem mandou matar Marielle? No que diz respeito ao Congresso, o veto do presidente ao Orçamento Impositivo, que ampliaria o poder dos parlamentares na alocação dos recursos, acirrou ainda mais os ânimos: chegando ao ‘foda-se’ do ministro de Segurança Institucional, o General Heleno, e ao chamado inconstitucional e irresponsável do presidente para o ato do dia 15.

Bolsonaro não fez um pronunciamento para o povo. Reafirmou o compromisso de manter concentrada a riqueza do país para os mesmos setores econômicos que continuam se apropriando do trabalho coletivo de tantos. E tanto faz se este tesouro vai ser garantido por ele mesmo, o Bolsonaro, ou por um possível fechamento de regime que reduziria mais ainda a necessidade de dar satisfações. O importante é que o controle do orçamento no Executivo não seja ameaçada, ou como estas reformas administrativas poderiam prosseguir? Como manter ativa a barra de rolagem de juros em cima de juros, totalizando valores como os últimos 38,27% do orçamento apenas com amortizações da dívida – R$ 1 trilhão reservados ao mercado financeiro – a custo da vida de nem sei quantos brasileiros em filas de hospitais? E é por isso que a chegada de uma pandemia com alto grau de mortalidade para a população idosa lhe veio como azeitona dessa pizza grotesca.

Com desculpas esfarrapadas, Bolsonaro utilizou mais uma vez a justificativa do desemprego para instituir uma Medida Provisória que fragilizou mais ainda a exigência de saúde e segurança do trabalho, além de inibir a fiscalização do trabalho. Vale tudo para saquear os direitos. Até colocar um artigo exorbitante para saltar os olhos e retira-lo horas depois – preservando os demais.

A necropolítica se estabelece escancarada. Genocídio, também, se a gente tiver estômago para analisar o endereçamento à morte que Bolsonaro propôs para pessoas idosas e com doença crônica, ao cogitar o fim do isolamento. Deixar morrer os “descartáveis” sob o ponto de vista da produtividade de trabalho, que consomem 25,25% da previdência social. Seus cálculos diminutos ignoram o poder de compra das famílias pelos beneficiários e a atividade dessa população que não pára quando se aposenta. De quebra, defender a saída do isolamento é manter a todo o custo os produtivos (sob seu ponto de vista) gerando riqueza, ainda que o custo seja também a vida de trabalhadores antes saudáveis, atléticos ou não.

O discurso é de morte e de trabalho até a morte. Foi vendido e há os que compram. Alguns colocam a cara: Roberto Justus, o velho da Havan. Outros demonstram na prática que já entenderam bem, como as gigantes de telemarketing, que têm mantido funcionários em situações de confinamento sem garantia nenhuma de segurança. Nesta terça-feira, um dia depois do pronunciamento, a tacanharia de empresários fez com que lojas fossem reabertas em diversas partes do estado. Foi necessário que a Polícia Militar fechasse de volta, uma vez que os decretos estaduais e municipais permanecem. Por incrível que pareça, não resta dúvida de que o discurso de Jair Bolsonaro tem destinatários satisfeitos.

Os insatisfeitos porém estão se manifestando. As maiores evidências das Organizações de saúde do mundo inteiro, os posicionamentos de entidades científicas e de profissionais da saúde pública, são uníssonos em demonstrar o total desacordo com as falas de Jair. Governadores e prefeitos ignoraram o discurso do maior chefe do Executivo, e têm assumido o protagonismo político inclusive em relações exteriores, na busca por recursos. Até mesmo o nada comunista Fundo Monetário Mundial (FMI) posicionou a importância de priorizar a sobrevivência dos povos neste momento, requerendo que os Estados interrompam a cobrança das dívidas para que os países mais pobres possam voltar seus recursos para a saúde e a manutenção de vida da população.  Uma gripezinha não levaria organizações como esta – cuja preocupação está longe de ser a desigualdade econômica e a miséria dos países empobrecidos-  a adotar posicionamentos nesta alçada.

E, com ou sem eles, temos nós. Uma população enorme que não está a fim de morrer agora. Temos avós e familiares idosos, temos filhos e pessoas ao redor com comprometimentos crônicos, imunológicos, respiratórios ou cardiológicos, pelos quais não vale nosso risco de sair de casa. A desobediência nunca nos foi tão necessária e fácil – porque basta olhar para os nossos. Sabemos quem está vendendo e quem está comprando. Sorte que não permitiremos ser mercadoria.

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