Caso Lázaro: até onde a mídia e as instituições fortalecem a intolerância religiosa?

A falta de conhecimento sobre outras culturas agrava a perseguição religiosa; tentativa de vincular Lázaro Barbosa ao satanismo e às religiões de matriz africana escancara o preconceito e a intolerância
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A Constituição Federal prevê a liberdade de culto e preconiza que o Estado é laico. Por mais que essa afirmação seja de fácil assimilação, não é o que demonstra o comportamento de grande parte da população, incluindo inclusive veículos de comunicação e instituições públicas. 

Um dos pilares da construção identitária brasileira é exatamente a sua diversidade religiosa, que constantemente não é respeitada. Segundo levantamento do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, as denúncias referentes à intolerância religiosa cresceram 56% no ano de 2019. 

Mesmo sendo considerados crime desde 1997, de acordo com a lei 9.459, ainda nos deparamos com sistemáticos casos de discriminação, escancarados ou velados, dependendo do contexto. 

As religiões de matriz africana representam muito da cultura do povo brasileiro. | FOTO: Jonathan Lins.

O professor do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do Instituto Livre de Estudos Avançados em Religiões Afro-Brasileiras, Sidnei Barreto Nogueira, esclarece – para o jornal da universidade – que há uma dificuldade em tipificar esse tipo de crime, mesmo com a legislação vigorando. 

Ele afirma que a falta de amparo legal e a ausência de conhecimentos culminam na estereotipação e na imagem negativa de diversas crenças, além de contribuírem para a intolerância religiosa. Vale ressaltar que o ensino da história e da cultura africana nas escolas públicas e particulares é lei desde 2003.

CASO LÁZARO, A MÍDIA E AS INSTITUIÇÕES

A perseguição a Lázaro Barbosa – assassino que permanece foragido em Goiás – ganhou as manchetes dos jornais nas últimas semanas. Entre algumas reportagens, vieram à tona imagens, divulgadas pela Polícia Civil do Estado, da suposta residência de Lázaro, com grafismos e objetos relacionados a religiões de matriz africana.

Após a divulgação, líderes religiosos denunciaram ataques racistas e abusivos contra terreiros durante as buscas pelo criminoso, registrando boletins de ocorrência e publicando um manifesto contra a conduta ocorrida. 

“As autoridades afro tradicionais e organizações representativas dos povos tradicionais de Matriz Africana vêm a público manifestar seu repúdio aos violentos ataques racistas praticados contra as casas de matrizes africanas na Região de Águas Lindas, Girassol, Cocalzinho e Edilândia em Goiás, na tentativa de nos vincular ao foragido conhecido como Lázaro e aos crimes a ele atribuído”, diz trecho do documento. 

Foto divulgada pela Polícia Civil de Goiás na “casa de Lázaro” |Foto: Divulgação/Polícia Civil.

LEIA O MANIFESTO NA ÍNTEGRA

Além disso, no dia 15 de junho, a Polícia Militar de Goiás afirmou também existir indícios da ligação de Lázaro com “satanismo e bruxaria”. Tal hipótese foi dura e corretamente rechaçada por estudiosos e vincula-se a um fenômeno midiático e social conhecido como Pânico Satânico, que defende uma teoria infundada de que há uma conspiração satanista ao redor do mundo. 

O maior exemplo disso é o movimento conhecido como QAnon que ganhou força nos Estados Unidos e serviu para fortalecer uma dualidade entre o bem (religiões cristãs) x mal (religiões não cristãs e – portanto – “satânicas”).

O sociólogo, professor e coordenador do Programa de Pós-graduação em Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Edin Sued Abumanssur, explica que existe uma visão mais popular do Cristianismo que aponta para o diabo como um subterfúgio para justificar e responsabilizar o que ocorre de ruim na sociedade. 

CONFIRA O VÍDEO ABAIXO.  

FUGA DO SENSO COMUM E RESPONSABILIDADE

Todo esse cenário nos leva a crer que já passou do tempo de instituições e veículos de comunicação se desvincularem da ideia retrógrada de que práticas não cristãs estão vinculadas a crimes hediondos. Como demonstrado, vivemos em uma sociedade que carece de conhecimento sobre esse assunto, seja como uma forma de manutenção social ou mesmo como um mecanismo de perpetuação da intolerância. 

É fundamental que exista a autocrítica da mídia para que não sejamos levianos e afobados ao noticiar algo sem averiguação e levantar uma discussão carregada de preconceito e ignorância. O mesmo vale para as instituições, que precisam entender que o Estado é laico – um desejo que parece mais distante a cada dia. 

Imprensa e órgãos públicos devem refletir sobre as consequências de atos e julgamentos baseados puramente em aspectos religiosos, uma vez que disseminam um olhar racista e xenófobo, além de incentivarem indiretamente violência e discriminação.

Mais do que buscar respostas simples e sensacionalistas, precisamos prezar pela verdade e pelo respeito.

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