Pesquisador analisa impactos de crise com a China em AL

Para Francisco Rosário, briga pode impor barreiras sanitárias nos produtos agrícolas.
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Francisco Rosário vê briga contra a China como uma cilada para as pretensões brasileiras, com grande impacto negativo / Foto: Francisco Rosário / Arquivo Pessoal

Quando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, associou o coronavírus à China em diversas declarações públicas, talvez nem a ala radical do bolsonarismo acreditasse que a ofensa também seria insuflada pelo governo brasileiro. No dia 18 de março, porém, a crise diplomática começou a se desenhar. No Twitter, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do Presidente da República, teceu duras ofensas aos chineses, compartilhando uma postagem que culpava o país asiático pela pandemia. 

As declarações tiveram resposta rápida. O embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, respondeu à altura, exigindo um pedido de desculpas. De lá para cá, houve posicionamento controverso do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, novos insultos de Eduardo Bolsonaro e do ministro da Educação, Abraham Weintraub, além de um artigo do cônsul chinês no Rio de Janeiro ligando o sinal de alerta para a briga em que o Brasil está se metendo.  

Enquanto Trump tratava de aparar as arestas com o presidente chinês Xi Jinping ao acertar cooperação no combate à Covid-19, a terra tupiniquim encarava o noticiário com aflição. Primeiro, uma carga com 600 respiradores comprados por estados nordestinos, através do Consórcio Nordeste, ficou nos EUA. A empresa chinesa cancelou a negociação com o Brasil sem fornecer detalhes da quebra. Depois, em pronunciamento recente, o governo chinês anunciou que irá comprar a soja americana “por segurança”, deixando a brasileira de lado.

E como fica Alagoas no meio dessa crise? Poderia o estado alagoano ser prejudicado em um eventual agravamento? A Mídia Caeté conversou com o professor de economia da Universidade Federal de Alagoas, Francisco Rosário, sobre o assunto. Ele esteve na Universidade de Beihang através de um projeto de pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para a Inovação (Profnit), em 2018, e retornaria ao país asiático em agosto deste ano. A viagem foi adiada em função da pandemia que assola o mundo.  

Professor chinês Xiangdong Chen recebeu a comitiva brasileira na China, no ano de 2018 / Foto: Arquivo Pessoal / Francisco Rosário

Segundo Rosário, para qualquer estado que vive da agricultura, como é o caso de Alagoas, uma briga com a China seria problemática pela imposição, sobretudo, de eventuais barreiras sanitárias nos produtos agrícolas. A conversa também abordou as implicações para o Brasil e caminhos que deveriam ser traçados pelo governo brasileiro.

Confira, a seguir, a entrevista

Mídia Caeté: As declarações do Eduardo Bolsonaro desencadearam em uma crise diplomática com a China. De lá para cá, a história vem rendendo bastante e parece longe de ter um fim. Um agravamento nas relações (entre Brasil e China) poderia ter impacto na economia alagoana?

F.R: Pode. O problema das exportações agrícolas brasileiras, e o açúcar é um deles, é que eles já sofrem barreiras sanitárias em geral – e que não são tarifárias – em alguns países. Geralmente, a OMC [Organização Mundial do Comércio] não permite isso para quem for signatário, e a China é. Mas aí se inventam outras coisas: não estar dentro da especificação ou no dia em que se colocou no navio a umidade estava acima de tantos %, podendo criar fungo. Inventa alguma maluquice para barrar o produto. Isso já é normal. 

Fora isso, no ano passado, nos primeiros encontros do governo com o Trump [presidente dos Estados Unidos], abriram mão de um comércio especial que alguns produtos brasileiros poderiam entrar nos EUA com taxa preferencial. E o açúcar, parte da produção nordestina, ia para os EUA. O volume é muito pouco, mas como é pago bem acima do preço de mercado, tem um impacto significativo nas contas das usinas, porque como o preço é alto, termina recebendo em dólar e se tem um dinheiro razoável entrando. E aparentemente, nesse processo do Brasil abrir mão de ser um país em desenvolvimento nas transações internacionais, para poder ascender à OCDE, a gente deve ter perdido esse mercado preferencial de açúcar e as usinas daqui atendem aqui e em Pernambuco. Isso deve afetar de alguma forma as usinas. 

M.C: E quais as consequências disso?

F.R: Qualquer mercado que piore a situação das usinas afeta tudo. Porque são a nossa única indústria e, bem ou mal, pagam um salário mínimo para o cortador de cana. Então, para muitos interiores, é a única renda que esse pessoal tem. Quando você fecha uma usina porque ela não consegue ter mercado, e nossas usinas já são problemáticas do ponto de vista de produtividade, são endividadas, e ainda vai fechando o mercado, você impacta diretamente. Para qualquer estado que vive da agricultura, e o nosso não é diferente, a briga com a China é problemática. Ela agora, na semana passada, já jogou uma conversa com a soja. É aquilo que lhe falei: não precisa ser barreira tarifária, enendeu? Só compro do Brasil, mas vou colocar um subpreço, não precisa ser isso, basta o estivador que colocou o tubo do grão da soja estar com suspeita de corona. Como o chinês vai saber? Não precisa saber. 

A questão hoje da briga é que a gente depende do mercado chinês. É o segundo parceiro comercial do país e a gente compra tudo quanto é de manufatura deles. Está aí o problema dos respiradores. Para Alagoas, qual o problema? Se a gente vende produto agrícola – e a gente vende açúcar – se eles pararem de comprar a gente se ferra. 

O oriental de um modo geral, se estiver perdendo, muda a estratégia, manda recuar, mas não perde a serenidade. Fica moendo e esperando a primeira oportunidade para dar o troco. E já começou. O planejamento chinês é sempre a longo prazo, ele não reage, não fala bravata, não fica com raiva. Ele aceita, você acha que está tudo bem e, quando menos espera, começou. 

M.C: No ano passado, em 2019, o governador Renan Filho montou uma comitiva e foi até a China para atrair negócios ao estado. Essa crise diplomática poderia atrapalhar também esses investimentos?

F.R: Isso você fala de outra coisa. Não sabemos. É possível que afete? É. Por outro lado, existe o Consórcio Nordeste. O que está no fundo é o aprofundamento da remodelagem do estado nacional no mundo. No Brasil, o sinal dos tempos era o movimento separatista do sul e os consórcios regionais. Então, talvez nesse momento, se o consórcio andar rápido… O chinês vai usar no mundo o soft power, não é como o americano que coloca armas, soldados. Ele domina a manufatura, mas precisa, por outro lado, abrir mercado. Se brigar muito, não vai ter mercado também. O que pode acontecer? Ele pode brigar com o governo federal, mas os consórcios regionais que tenham bom trânsito e bons negociadores podem abrir a porta e facilitar o trânsito. Porque existe uma relativa autonomia, e se um consórcio desse conseguir furar o bloqueio, Brasília vai ter problemas, porque se pode eventualmente passar uma lei para aumentar as autonomias nos estados. Isso daí vai passar. Não sei se ano que vem ou daqui a 10 anos, mas que vai passar alguma lei para ampliar a autonomia e ficar mais próxima aos Estados Unidos, para lançarem dívida pro bem ou pro mal, e se se endividar quebra igual a um país. Começa a ter um arranjo de governança um pouco diferente.

Professores brasileiros realizaram exposições em parceria com a Universidade de Beihang em 2018

M.C: Esse é um dos pontos que viria mais à frente, o movimento do Consórcio Nordeste. Os governadores até escreveram uma carta para a China pedindo ajuda no combate à Covid-19. O embaixador da China se pronunciou publicamente. Esse seria um caminho então para, de repente, garantir que não vai ter um prejuízo aos estados?

F.R: Isso seria uma coisa que, no médio prazo, poderia ser extremamente benéfica para todo o Brasil. Porque o Consórcio Nordeste não é novidade no Brasil. Começou com os do centro-oeste, que deu muito certo. O que é o agronegócio hoje, do ponto de vista político e de representatividade, se deve a esse consórcio. Existe um consórcio de defesa do agronegócio, de viabilidade e o posicionamento dele hoje no Brasil. Isso é fruto dessa convergência política dos governadores, prefeitos, em todos os níveis. Esse modelo foi transposto para outras regiões e tem, aqui em Alagoas, um caso extremamente exitoso em compra de medicamentos que é o Conisul, dos conselhos de secretários municipais, que começaram a comprar em grande quantidade para negociar volume e preço. Conseguiram reduzir muito o custo do sistema de saúde e de responsabilidade dos municípios. A prática do consórcio, se começa a funcionar de forma bem coordenada, pode ser tanto uma luz do fim do túnel nessa briga, para a gente não ser prejudicado, como uma mudança na forma de como a gente vê a federação brasileira. Quer dizer, o que era uma bravata da China pode se transformar em uma mudança política de como o Brasil se organiza.

M.C: Mudando agora para uma abordagem mais nacional. Recentemente, nas redes sociais, foi criada uma hashtag “#BoicoteComercialChinesJa” e a gente viu que alguns apoiadores do governo insistem em afirmar que a China depende mais do Brasil do que o Brasil da China. Seria uma visão distorcida da realidade?

F.R: [Risos] O twitter, na verdade, não representa a população, né? Mas você representa posições políticas. Se você quer entender de política, vá para o twitter. Mesmo a posição do embaixador chinês é uma posição política, mas não significa, nesse momento ainda, que a gente consiga sobrepassar por exemplo, as posições de Brasília. As cabeças pensantes do agronegócio e da indústria já saíram dizendo que não é bem assim, vamos ajeitar, porque os caras já estão sentindo que não pode. A própria Ministra da Agricultura pediu desculpa, o Rodrigo Maia [presidente da Câmara dos Deputados] pediu desculpa. Quer dizer, quando você vê pessoas preeminentes da República e do próprio governo pedindo desculpa é porque sabe que a gente tem uma relação de dependência, não é? 

M.C: E paralelamente, além desses apoiadores em redes sociais, a gente tem membros do governo colocando fogo na crise. Será que eles têm conhecimento da dimensão desse problema que é uma relação ruim com a China?

F.R: Têm, mas o que está em jogo é a sobrevivência do governo de posição política, não do governo enquanto estrutura administrativa. E esse governo quer ser diferente, acha que o brasileiro de modo geral é socialista, acostumado com o Estado, e aí ele quer mostrar exatamente o outro lado: “Não é assim o caminho. Existe o outro lado”. Ele quer reforçar o outro lado, só que ao invés de reforçar e fazer um trabalho de mostrar as virtudes de outros caminhos e pensamento, ele simplesmente vai querer destruir, faz uma guerra contra o que acha que existe. Começa a lutar contra moinhos de vento. Porque quando qualquer pessoa ou organização quer ser bem vista no mercado, o que você faz? Vai mostrar trabalho, para mostrar que sabe fazer. Ele não vai criticar o vizinho, o colega do lado ou o cara que saiu e você entrou no lugar ou concorrente. Nem empresa faz isso, vai mostrar serviço. O governo quer ir para o embate das mentes, só que a mente, cara, não enche barriga. Quando falta pão, o negócio começa a pesar para qualquer governo que exista. A nossa última presidenta caiu por causa disso: porque não tinha pão. 

M.C: A gente viu nos últimos anos que o Brasil procurou estreitar a relação com os países emergentes, inclusive com a criação dos BRICS. Essa briga do Brasil com a China poderia ter impacto também? Gerar um conflito com outros países…

F.R: Isso já está acontecendo. A política que vinha sendo construída desde a redemocratização era de uma aproximação com todos os iguais. Então, o Brasil não podia se ver como melhor nem pior, mas iguais e as relações precisavam ser iguais. Por motivo de movimento geopolítico, o Brasil buscou fazer uma relação nos últimos anos uma relação Sul-Sul, por questões de apoio de posicionamento geopolítico no mundo inteiro, o que a China está fazendo agora. 

A China tem uma política externa chamada “One world, one belt”, que é uma só trilha, uma só estrada, e belt no sentido de abraço, enlaçamento, não de cinto. E essa política chinesa é o Soft Power que eles estão trabalhando. Um dos sinais que a gente viu foi exatamente com o pessoal no Congresso Internacional. E aí você via paquistanês, iraniano, alguns africanos, uma série de países em que a China tem relações estreitas por meio dessa política. A China fornece tecnologia, como os EUA fizeram até a década de 80, depois da Segunda Guerra. Ele fornecia tecnologia, financiamento, mão de obra qualificada para treinar o pessoal dos países. A China faz a mesma coisa, só que os EUA fizeram para a Europa, no famoso Plano Marshall, e ela faz com o resto do mundo que ficou para trás. Era a política do Sul-Sul que o Brasil estava fazendo nos governos do PT, mais especificamente, mas isso começou antes com o próprio Fernando Henrique, colocando uns bons diplomatas na África. E o Brasil, hoje, vai ficar na lata do lixo. Quando você não ajuda o próximo, mais cedo ou mais tarde a conta vem. 

Francisco Rosário foi ao país asiático através de um programa de pós-graduação

M.C: Dentro da política da China a gente vê que ela está de olho na América Latina e encara o Brasil como um parceiro estratégico na região. De que forma o Brasil poderia se beneficiar dessa relação?

F.R: Pelas cartilhas que o próprio Paulo Guedes segue, o comércio internacional enriquece qualquer nação. A nação não pode se fechar para o mundo, como a gente está fazendo agora, com a desculpa de se abrir. Eu não estou vendo abertura nenhuma. A gente não está fazendo mais nada novo do que a gente não fazia antes. O Brasil tem todo um discurso de ser mais liberal, abrir pro mundo e até agora não conseguiu nada. Não está muito diferente do que era há uns anos. 

O comércio internacional deixa os países mais ricos. Agora tem que ver qual tipo de comércio. Em qualquer comércio tem que saber negociar as bases. Então, por exemplo, a gente privatizou boa parte dos nossos ativos de transmissão de energia brasileira, mais de 50%, está na mão de estatais chinesas. E vários outros setores do Brasil, por exemplo, energia solar, a base é chinesa. Então, produtos de consumo com tecnologia um pouco mais avançada, tudo vem da China. E a gente poderia aproveitar isso, ter uma boa relação porque também é o movimento político chinês. Sempre o Soft Power, sempre o comércio. Lembrando que Marco Polo com a China, entre outras coisas, se descobriu por conta do comércio, da Rota da Seda. Os produtos que luxo que vinham do Oriente vinham por meio da rota da seda saíam da cidade chinesa de Xi-An, lá quase no centro da China.

A gente tem que aproveitar muito isso, mas brigando fica difícil. A gente tem que baixar a cabeça, negociar e ser tão esperto quanto eles. Por exemplo, a gente tem o banco dos Brics na cidade de Xanghai. Mas como esse governo não concorda nem com o BNDES, que agora está sendo requisitado para salvar as empresas… Aí você vê: quais empresas? As grandes. As pequenas vão fechar quase 70%, já estão na linha de fechamento. O presidente da GM [General Motors] saiu reclamando que não aguenta e aí vai nas portas do BNDES para salvar. 

Fizeram o banco dos BRICS com cada país participando com um valor para financiar obras de infraestrutura. A gente precisa de esgoto, saneamento, estrada e eletricidade. Até para uma possível retomada, sair para um PIB de 3 para 4% estamos ferrados, porque a gente não tem energia para todo mundo. A gente não consegue entregar energia elétrica para as empresas se a gente crescer 3% durante quatro ou cinco anos. No quarto ano vai ter apagão se não houver investimento. Quem tem dinheiro hoje? China e o banco dos BRICS, que poderia ser um parceiro fortíssimo, mas o Brasil deu as costas.

Inclusive, tem economista brasileiro no banco, mas a gente não tem acesso. O Brasil usa pouco, coloca pouco dinheiro. Não é tão quebrado como dizem. O Brasil é o segundo maior credor dos EUA, o primeiro é a China, por conta das reservas que estão lá. A gente não tem dívida externa do setor público, a gente tinha uma balança comercial, ou seja, a corrente de comércio que entra e sai, uma das maiores do mundo. Ainda somos, se não me engano, uma das 10 maiores economias do mundo. Com esse baque, não sei para onde a gente vai. É um mercado que atrai o mundo, mas tem que saber negociar. Não [colocar] bravateiros no Ministério de Relações Exteriores fazendo o que faz que prejudica todo mundo. E um estado pobre como Alagoas, qualquer balanço fica mais pobre.

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