Levante pela Terra: a potência dos povos indígenas confronta o PL 490

30J foi marcado como um dos maiores dias de protesto contra os ataques à demarcação de terras indígenas
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Ainda nas primeiras horas da manhã, a mobilização avançava em dezenas de Estados do país. O dia 30 de junho demarcou, mais uma vez, a extensão do movimento nacional Levante pela Terra, quando centenas de milhares de indígenas intensificam e espalham protestos contra o Projeto de Lei 490 – que no dia anterior passou pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) , e agora segue para plenário. As mobilizações também são uma resposta ao Supremo Tribunal Federal (STF) que tinha na agenda do dia um julgamento com efeito fixo sobre Terras Indígenas no Brasil (TI). A decisão foi adiada para o mês de agosto.

Em Alagoas, o trancamento foi feito pelo povo Wassu Kocal, na BR-101, em Joaquim Gomes. A comunidade vem realizado fechamento da rodovia continuamente, integrando o movimento nacional. Perto de meio dia,  pelo menos 29 rodovias estaduais e federais já estavam fechadas por povos do país, além do Câmara Federal e do Supremo Tribunal Federal (STF), em Brasília.

Povo Wassu Kocal e trancamento na BR 101, em Joaquim Gomes. Foto: APOINME/APIB

O Brasil teve um 30J e uma demonstração de potência indígena em organizar uma articulação nacional num país de proporções continentais em um curtíssimo espaço de tempo. A urgência e a constância é uma resposta à celeridade com que a Câmara Federal também vem se mobilizado para votar o Projeto de Lei que beneficiará a bancada ruralista, em detrimento dos direitos e condições de existência de 305 povos. O atual presidente da Câmara Federal, deputado alagoano Arthur Lira (Progressistas), chegou a anunciar repetidamente seus esforços para acelerar o processo em torno do PL. Leia aqui a reportagem sobre a carta de povos indígenas de Alagoas contra o posicionamento do parlamentar. 

O Projeto de Lei 490 foi elaborado originalmente ainda 2007, dispondo sobre alterações no Estatuto do Índio de 1973. Entretanto, recentemente e após apreciação do relator do CCJ, passou por uma série de ampliações se tornando um substitutivo “guarda-chuva” de diversos projetos que tratam-se da matéria da mineração.

Assim, o PL se torna um obstáculo letal à demarcação ao consolidar ainda o marco temporal – reconhecendo como terras indígenas apenas aquelas por eles habitadas até a Constituição Federal (CF) de 1988, de modo a negar qualquer reconhecimento posterior e proibir novas demarcações -, a permissão para atividades de agronegócio, mineração e garimpo dentro de terras indígenas, além de conceder permissão de hidreléticas e obras dentro dessas terras. A autorização poderá ser dada, então, pelo Congresso. Todas essas medidas vem sendo adotadas sem qualquer consulta aos povos indígenas.

Além de todas essas retiradas de direitos, o texto ainda expressa que o “usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da política de defesa e soberania nacional”. Dessa forma, permite a instalação de bases militares e outras intervenções, extensão de malhas viárias, instalação de Polícia Federal (PF). Tudo independentemente de consulta à comunidade indígena que lá exista.

Povo Anacé. Foto enviada pela APOINME/APIB

Uma nota técnica elaborada por advogados indígenas analisa a inconstitucionalidade do PL sob o ponto de vista material e formal, destrinchando todas as violações contidas, além de sua contrariedade direta à Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, a Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas e a Convenção nº 169 da OIT. Clique aqui para ler na íntegra. 

Já o julgamento no STF vem sendo considerado também como definidor do futuro da demarcação das TI. O Recurso Extraordinário que ganhou caráter de Repercussão Geral – o que fixa a tese para todos  os outros casos de demarcação e disputas por posse de terra indígena- trata-se de um pedido de reintegração de posse feito pelo Governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Embora haja estudos da FUNAI sobre o território ser pertencente daquele povo, além de declaração do próprio Ministério da Justiça desde 2003, o território sofreu redução ao longo do tempo, afetando ainda povos Guarani e Kaingang.

Outra decisão do Supremo diz respeito ao Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), que oficializou o “marco temporal” – tem sido utilizada pela fragilizar o processo de demarcações ainda mais.

Povo Pataxó na BR-101

Construída por ruralistas e setores econômicos interessados na exploração de terras – muitos deles concentrados em uma bancada do Governo Federal e no Executivo -, a tese do marco temporal confronta as garantias constitucionais da terra indígena como um direito originário, e estabelece que os povos indígenas só têm direito à demarcação de terras sob sua posse até o dia 5 de outubro de 1988, ou com comprovação de que nesse período seguiam em algum tipo de disputa ou conflito.

Povo Tupinambá, em Olivença: bloqueando a BA- 001, Ilhéus x Canavieiras

A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) descreveu a perversidade e injustiça da tese. “A tese é perversa porque legaliza e legitima as violências a que os povos foram submetidos até a promulgação da Constituição de 1988, em especial durante a Ditadura Militar. Além disso, ignora o fato de que, até 1988, os povos indígenas eram tutelados pelo Estado e não tinham autonomia para lutar, judicialmente, por seus direitos. Por tudo isso, os povos indígenas vêm dizendo, em manifestações e mobilizações: ‘Nossa história não começa em 1988!’”, descreve. “A tese é injusta porque desconsidera as expulsões, remoções forçadas e todas as violências sofridas pelos indígenas até a promulgação da Constituição. Além disso, ignora o fato de que, até 1988, eles eram tutelados pelo Estado e não podiam entrar na Justiça de forma independente para lutar por seus direitos.”

O julgamento no STF pode – caso derrube definitivamente essa tese – desafogar uma série de conflitos judiciais por terra que seguem estagnados. Por outro lado, caso a tese do marco temporal seja oficializada, “passará a boiada” de violações de terras indígenas, e consequente violência e extermínio.

 

Em Maceió, PM deteve manifestantes levando para a delegacia

No período da tarde, um grupo de aproximadamente 20 pessoas composto por indígenas em contexto urbano, familiares e ativistas indigenistas realizou um ato em Maceió, na Praça Centenário. Com performances culturais, e ritos como o toré, o grupo expôs cartazes elaborados em folhas de bananeira, e realizou intervenções no local com pintura feita com urucum.

Durante a apresentação, o grupo foi surprendido com a chegada da Guarda Municipal e, em seguida de uma guarnição da Polícia Militar decidida a deter o grupo e levar até a Central de Flagrantes. Um dos manifestantes e integrante do Movimento LGBT, Roniel Rodrigues, relatou a situação.

Manifestantes em Maceió contra o PL 490 foram detidos e levados pela PM para a Central de Flagrantes. Foto: Divulgação

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“Mostramos a eles que estávamos todos pintados de urucum. Mostramos que a tinta saía com água. Lavei minhas mãos na frente deles, mas, mesmo assim, eles levaram um grupo até a Central de Flagrantes. Os demais decidiram ir também, a pé. Foi uma ação coletiva em que de fato, do começo ao fim, ninguém soltou a mão de ninguém”, conta.

Em meio à resposta repressiva da PM, o grupo foi acompanhado por advogados do Instituto do Negro de Alagoas, do Núcleo de Assessoria Jurídica Universitária Popular Aqualtune (Najup Aqualtune), do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Zumbi dos Palmares (CEDECA Zumbi dos Palmares), além de advogado popular. Na Central de Flagrantes, entretanto, os manifestantes relataram que foram recebidos pelo delegado que entendeu a atividade pacífica, não havendo finalmente qualquer registro de ocorrência.

Segundo Rodrigues, o Levante pela Terra deve continuar e se somar ainda a outras composições. “Nós estaremos na mobilização do Fora Bolsonaro no sábado. E também pretendemos em agosto construir um ato ainda maior em Maceió, diante da votação que vai acontecer”, conta.

 

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