Sem evidências, políticos alagoanos insistem na Cloroquina

Prefeito de Cajueiro anuncia "kit salvador"; já deputado estadual Cabo Bebeto reivindica uso imediato a pacientes
Share on facebook
Share on twitter
Share on pocket
Share on whatsapp

Até o momento da publicação desta matéria, o Brasil atingiu o alarmante número de 27.878 óbitos por Covid-19, segundo o Ministério da Saúde, sem levar em conta todas as subnotificações. Um dado que reitera toda a periculosidade do novo coronavírus e que corrobora o apontamento feito pelos mais diversos especialistas: o Brasil se tornará – se já não é – o epicentro da pandemia no mundo. 

Com o ritmo de contágio atingindo patamares assustadores em escala nacional, tornou-se inevitável que Alagoas não seguisse o mesmo caminho. De acordo com o boletim epidemiológico divulgado pelo Governo Estadual – dados de ontem, 29 de maio – 406 vidas foram perdidas, número que entristece até o mais insensível dos governantes. 

“Agradeço a toda a equipe que esteve comigo no MS e desejo êxito ao meu sucessor no cargo de ministro da Saúde. Rogo a Deus e à Nossa Senhora Aparecida que abençoem muito o nosso país”. 

Essas foram as palavras do ex ministro Luiz Henrique Mandetta ao deixar o cargo. Por mais altruísta que a fala aparentou ser, ela não se concretizou: o seu sucessor, Nelson Teich, durou menos de 1 mês no posto, 29 dias para ser mais preciso. Desde o dia 15 de maio, o Ministério da Saúde é comandado interinamente.  

Ambos, Mandetta e Teich, tiveram embates públicos e momentos constrangedores enquanto ministros, no que dizia respeito ao isolamento social e, sobretudo, à insistência da inclusão da Cloroquina e da Hidroxicloroquina (HCQ) no protocolo oficial de tratamento para a Covid-19.

De acordo com o infectologista Luiz Henrique Borges, o uso indiscriminado dessas substâncias em pacientes com quadro – moderado ou grave – de Covid-19 tem se mostrado pior que a não manipulação. Para ele, existem outras razões pairando sobre o debate público.

“Essa questão, por motivos que a medicina desconhece, mas que talvez as ciências política e social expliquem, foi politizada nos Estados Unidos e no Brasil. Não convém a publicação de protocolos autorizando esses medicamentos para uso indiscriminado, pois, além de não aprovados pela ciência, vai gerar efeitos colaterais que agravam o curso da doença e geram uma grande despesa orçamentária para o Sistema Único de Saúde (SUS), o qual já não tem verbas nem para investir nas medidas que são incontestavelmente benéficas”, afirma o médico.

Infectologista Luiz Henrique Borges não recomenda o uso da Cloroquina contra o novo coronavírus | FOTO: arquivo pessoal

O secretário geral do Conselho Regional de Farmácia de Alagoas (CRF-AL), Daniel Fortes, diz que respeita a autonomia do médico, para a escolha do melhor tratamento para o paciente, mas defende que todo medicamento seja utilizado com base em evidências clínicas e concorda que não há comprovações que assegurem os benefícios da HCQ contra o novo coronavírus.

“O que observamos é que diversos estudos têm relatado ausência de benefícios no uso da Hidroxicloroquina e da Cloroquina para o tratamento da Covid-19 e, em contrapartida, têm indicado um aumento de complicações cardíacas nos pacientes que fazem uso desses medicamentos. Entendemos que eles não devem ser usados, porque ainda não existe evidências clínicas suficientes de sua efetividade e da segurança para a população”, reforça Daniel. 

A Organização Mundial de Saúde (OMS) suspendeu temporariamente o uso da Cloroquina e da Hidroxicloroquina em pesquisas, após estudos mostrarem a falta de eficácia no tratamento da doença e por haver indícios de aumento da taxa de mortalidade das pessoas que fizeram uso. 

“Autores reportaram que, entre pacientes com Covid-19 usando a droga, sozinha ou com um macrolídeo [classe de antibióticos que engloba a azitromicina], estimaram uma maior taxa de mortalidade”, revelou o diretor-geral da entidade, Tedros Adhanom Ghebreyesus. 

Outro fato que merece menção é que o principal estudo a favor do uso da medicação teve a sua publicação retirada do ar pelos seus próprios autores. A pesquisa intitulada “Hidroxicloroquina mais azitromicina: potencial em reduzir a morbidade em hospital da pneumonia Covid-19″ foi postada no repositório medRxiv e não em uma revista científica com revisão por pares, prática corriqueira no âmbito científico. O estudo foi publicado no dia 11 e retirado no dia 22 de maio, como noticiou o jornal O Globo

Embora não faltem relatos e fundamentações contrárias ao uso das substâncias, o Presidente da República, Jair Bolsonaro, tem defendido constantemente o uso, tendo inclusive tentado alterar a bula da Cloroquina por decreto, segundo o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta. 

Daniel Fortes defende que todo medicamento seja usado com base em evidências clínicas | FOTO: Assessoria

O pensamento do presidente tem reverberado em outros governantes. O prefeito de Cajueiro anunciou, em um vídeo postado nas redes sociais oficiais do município, que tinha adquirido “kits milagrosos” e que os distribuirá à população para o combate à Covid-19. Palmery Neto disse ainda que o kit era composto por Cloroquina, Azitromicina e outras medicações. 

“Alguns fornecedores dizendo: ‘prefeito, esse medicamento é a mesma coisa que você encontrar água no deserto’. Nós fomos ao deserto, perfuramos profundamente e encontramos a água sagrada, não no deserto, mas nos laboratórios que fabricaram estes três: Cloroquina, Azitromicina e Annita. E hoje eu estou dando essa notícia, em primeira mão, ao povo de Cajueiro que nós já temos o kit salvador, o kit que vai ajudar a nossa população. (…) Hoje, eu estou muito emocionado e feliz em saber que nós estamos trabalhando por vocês”, comemora Palmery Neto, em um trecho do vídeo publicado.

Ao lado do prefeito, na transmissão, estava o “Dr. Denilson”, médico do município, que defende a utilização do “kit salvador” logo nos primeiros dias da doença e diz ainda que a Cloroquina foi aprovada pelo Conselho Federal de Medicina (CRM) e é usada até mesmo por Donald Trump, presidente dos Estados Unidos. 

“Há mais ou menos um mês e meio, eu venho conversando com a primeira dama e com o prefeito explicando a eles sobre a importância de termos essa medicação e iniciarmos o tratamento logo nos primeiros dias dessa doença, porque essa medicação, em conjunto, já foi testada em vários países e usada inclusive pelo presidente dos Estados Unidos. Aqui no Brasil, foi aprovada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM)”, afirma o médico. 

VEJA AS FALAS DE PALMERY NETO E DO DR DENILSON NO VÍDEO ABAIXO

 

No dia 23 de abril, o CFM emitiu uma nota onde estabeleceu critérios e condições para a prescrição da Cloroquina e da Hidroxicloroquina em pacientes com Covid-19. Porém, o conselho deixa claro que não há evidências sólidas de que tais medicamentos tenham efeito confirmado na prevenção e no tratamento da doença. A entidade frisa ainda que é necessário o respeito ao critério médico e o consentimento do paciente. Leia abaixo um trecho da nota. 

“Considerar o uso em pacientes com sintomas leves no início do quadro clínico, em que tenham sido descartadas outras viroses (como influenza, H1N1, dengue), e que tenham confirmado o diagnóstico de COVID 19, a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente, sendo ele obrigado a relatar ao doente que não existe até o momento nenhum trabalho que comprove o benefício do uso da droga para o tratamento da COVID 19, explicando os efeitos colaterais possíveis, obtendo o consentimento livre e esclarecido do paciente ou dos familiares, quando for o caso”.

CLIQUE AQUI E LEIA A NOTA NA ÍNTEGRA

Na última quinta-feira, 28, foi a vez do deputado estadual do PSL, Cabo Bebeto, defender novamente o uso da Cloroquina e da Hidroxicloroquina no tratamento à Covid-19. Além disso, o parlamentar, em pronunciamento durante sessão ordinária, também questionou as medidas do Governo de Alagoas no combate à pandemia.

“Já começaram o tratamento com a Hidroxicloroquina? Os medicamentos estão sendo utilizados em casos leves, se o médico prescrever? Qual o protocolo para o paciente ter acesso a essa medicação? A Secretaria Estadual de Saúde (Sesau) já emitiu nota informando o novo protocolo? Qual o protocolo está sendo utilizado para informar os familiares sobre notícias dos pacientes?”, questionou. 

Cabo Bebeto (PSL) é mais um político alagoano a se posicionar a favor do uso da Cloroquina e da Hidroxicloroquina, mesmo sem comprovações científicas | FOTO: Reprodução

Mesmo admitindo que não há uma comprovação científica da eficácia das medicações contra o novo coronavírus, Cabo Bebeto manteve o tom do discurso, fazendo inclusive menção ao posicionamento recente da Sociedade Alagoana de Infectologia (SAI), que, em nota divulgada no dia 25 de maio, declarou que não recomenda ambas as substâncias em pacientes infectados.

“A Sociedade Alagoana de Infectologia, com todas as suas prerrogativas, adota o argumento de que não se tem eficácia comprovada (no uso da cloroquina), mas vamos deixar as pessoas morrerem sem ao menos tentar salvá-las? É preciso realmente esperar que o quadro se complique para fazer uso da medicação?”, perguntou.

Não foi somente a SAI que se pronunciou oficialmente sobre a não recomendação. A Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) também emitiu nota afirmando que, além de não existirem evidências técnicas que consolidem o uso, as medicações podem ainda causar sintomas colaterais, como problemas cardíacos.

“Os estudos clínicos atuais com Cloroquina ou Hidroxicloroquina, associada ou não à Azitromicina, permitem concluir que tais medicamentos, até o presente momento, não mostraram eficácia no tratamento farmacológico de COVID-19 e não devem ser recomendados de rotina. (…) Alguns estudos mostraram seu potencial malefício, podendo causar alteração cardiológica, verificada no eletrocardiograma (prolongamento do intervalo QT), que está associada a uma maior chance de arritmias ventriculares, potencialmente fatais”, diz a SBI no documento.

CLIQUE AQUI E LEIA A NOTA NA ÍNTEGRA

O secretário geral do CRF-AL, Daniel Fortes, lembra ainda que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) adotou uma medida para controlar a venda da Hidroxocloroquina em farmácias, em virtude do boato de que ela combatia o novo coronavírus. Essa fato ocasionou na falta da medicação nas prateleiras, afetando o tratamento de pacientes que fazem o uso contínuo, como os portadores de Lúpus e Artrite Reumatoide.

“A Anvisa incluiu a Hidroxicloroquina na lista de medicamentos de controle especial regulamentada pela portaria 344 do Ministério da Saúde. O que temos percebido é que, mesmo diante de todas as evidências de que o uso desta substância pode ser perigoso para alguns pacientes, ela foi incluída no protocolo [elaborado pela pasta] para o tratamento na fase leve da Covid-19. O risco de usá-la se dá, sobretudo, por conta dos seus efeitos adversos, principalmente as complicações cardiovasculares”, complementa Daniel. 

O infectologista Luiz Henrique Borges acredita que os médicos pensarão duas vezes antes de prescrever a HCQ e crê também no bom senso dos profissionais.

“Esperamos que os médicos usem a ciência e o bom senso como parâmetros para as suas prescrições e não o desespero e medos coletivos, que geram uma pressão compreensível, mas que se controlam com orientação e apoio ao seguimento clínico dos pacientes”, finaliza.

Apoie a Mídia Caeté: Você pode participar no crescimento do jornalismo independente. Seja um apoiador clicando aqui.

Recentes