O risinho no canto da boca e a transfobia nossa do dia a dia

Trabalho, banheiros, imprensa. Não é de hoje esse constrangimento e os atos de maldade da 'gente do bem'.
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Por Wanessa Oliveira e Lucas Leite

Não é de agora que pessoas trans ou travestis são agressivamente constrangidas ou mesmo impedidas de acessarem a escola, o emprego, ou um banheiro público. Todos os dias, nos mais diversos locais, a comunidade LGBTQ+, e aqui enfatizamos sobretudo as T’s, enfrentam atos de maldade da “gente do bem” que insiste em acreditar que tem o direito de endereçar humanidades a quem bem entendam. É por isso que, para militantes como Natasha Wonderfull, técnica de saúde e integrante da Associação Cultural de Travestis e Transexuais de Alagoas (ACTTRANS), a bandeira é precisa: ou a educação contra a transfobia é contínua ou não adianta.

Os momentos de ruptura importam demais, claro. Que o diga a resposta a um ato transfóbico dada na última sexta-feira, 3, vinda em voz alta, e do alto de uma mesa na praça de alimentação do Shopping Pátio Maceió. O ato de enfrentamento foi protagonizado pela Lanna Hellen, pouco tempo depois de ter sido expulsa por seguranças ao tentar utilizar o banheiro feminino. Ela foi expulsa mais uma vez – desta vez do Shopping. A situação foi divulgada amplamente nas redes sociais, e no dia seguinte um grande protesto reuniu centenas de pessoas, com moções de solidariedade e até mesmo intervenção do governador do Estado, Renan Filho, que determinou uma “rigorosa apuração do fato”. O que – legalmente falando – deveria ocorrer como regra, se seguido o entendimento recente do STF, que inclui a transfobia como uma forma de racismo, incluindo sua punição nos moldes da lei 7716/89.

Quem é Lanna?

Natural de São Paulo, a mulher travesti reside há quase três meses em Maceió. Relata que veio para a capital alagoana para se recuperar de uma depressão, e fugir do ritmo frenético de uma megalópole. Apaixonada pelas praias nordestinas, Lanna Hellen não imaginava que um simples passeio mudaria sua vida.
“Era sexta-feira, por volta das 20h, quando decidi ir passear no shopping. Tomar um sorvete, andar um pouco, essas coisas. Quando eu estava indo ao banheiro, antes mesmo de entrar, fui abordada por um segurança, em um daqueles patinetes elétricos. Ele me disse que eu não poderia entrar pois alguma cliente poderia ficar constrangida”, afirma Lanna.

Foi a partir desse momento que Lanna pegou o celular e começou a filmar todo o ocorrido, repetindo que “travestis não podem usar o banheiro feminino” no shopping. “O meu sentimento era de revolta, pois eu sabia que tinha direito. Ao subir na mesa eu percebi que muitas pessoas são leigas e não conhecem esses direitos. Uma parte do shopping aplaudiu e outra vaiou. Eu me senti discriminada e acolhida ao mesmo tempo. Mas o fato foi bom para abrir os olhos das pessoas. Se eu estava ali em cima, gritando, pedindo o meu direito, eu sabia o que estava fazendo. Se eu não soubesse, eu ia fazer o que muitas fazem, e abaixar a cabeça. Eu estava indo ao banheiro fazer uma necessidade, e não para abusar ou assediar alguém”, desabafa.

Caso Lanna Hellen não tivesse subido na mesa da praça de alimentação, naquele protesto individual, até onde a transfobia praticada não seria “mais uma”? Natasha Wonderful recorda que a impunidade a esses casos, esta sim, é que tem sido regra. “Sempre acontece isso, mas muita gente fica calada. Nesse caso, ela teve coragem”.

A artista lembra que a visibilidade ao ato de transfobia ocorrido no Shopping Pátio se deu em decorrência da reação corajosa de Lanna Hellen, mas é preciso atentar também para todos esses casos que não são de hoje, mas de todos os dias, e onde as pessoas agredidas não têm a mesma reação. “Acho que a gente tem que trabalhar de forma cotidiana. Quando o assunto surge por conta de um ‘boom’, depois que a situação passa, a discussão também passa rápido e as pessoas esquecem. E isso continuará acontecendo. Acho que precisamos de um trabalho educacional contínuo com as pessoas, nas empresas, em todos os lugares, porque isso tudo é uma situação cultural. Muita gente não quer estudar essas coisas de gênero. Sobretudo no nosso estado, onde usam religião para não se acostumar e dizer que travesti é homem que se veste de mulher e acabou. Não querem saber”.

Natasha pondera que há um momento em que as pessoas querem saber. “Quando Dandara morreu, houve repercussão. Sempre que há uma desgraça, as pessoas se interessam. Dandara enfrentou todo tipo de coisa, mas teve que morrer para que as pessoas quisessem saber sobre ela, fizessem homenagens, prêmios, tudo. Esse apoio é preciso ser feito com as pessoas vivas, e não com elas mortas, ou quando alguma desgraça acontece ou quando a pessoa sobe na mesa e faz tudo isso para que vejam. É por isso que a gente precisa falar todos os dias. Por isso que a gente fala de políticas públicas”, conta.

Natasha também chama nossa atenção: ressalta que a imprensa precisa visibilizar a voz das pessoas trans para além das situações de ‘ocorrência’. “É preciso que as pessoas trans tenham espaços. Nós buscamos esses lugares para divulgar cultura, arte, nossa vida, mas tem que ter mais divulgação. É preciso também que a educação seja continuada no hospital, na delegacia, e até mesmo na família, que muitas vezes também ajuda a matar, quando o preconceito começa dentro de casa e as pessoas são entregues à vulnerabilidade, às drogas e várias outras coisas”, diz.

Lanna Hellen corrobora com Natasha. Reforça que “deveriam mostrar mais o homem e a mulher trans, para fazer divulgação de temas como esse em propagandas, dar mais oportunidade para a formação e qualificação profissional. É difícil você ver uma trans trabalhando em uma loja, ou como professora. Temos que conquistar mais o espaço profissional, as pessoas precisam dar oportunidade para mostrarmos à sociedade que temos dignidade e respeito, e acabarmos com esses estereótipos”.

Nas notícias que correram rápido, ora Lanna é “o trans”, ora é “o travesti”. Não bastasse o banheiro, o shopping, os seguranças, a delegacia, vem matérias que a revitimizam, ao insistir num artigo masculino que anula sua existência enquanto pessoa não cis (aquelas que se identificam com seu sexo biológico). Nas redes sociais, comentários absolutamente criminosos – aos quais não daremos visibilidade – impunham mais violência às pessoas que rompem com padrões heteronormativos. Na certeza da impunidade e na gravidade do desinteresse e falta de empatia, há de tudo nesses universos onde a violência pode ser dita à vontade. O que há muito pouco é a busca por compreensão. “O que a gente diz muito é que você pode até não concordar, pode até não querer entender, não querer estudar sobre Gênero, mas o respeito tem que ter”, reforça Natasha, com a paciência de quem já perdeu as contas ao repetir o óbvio.

O Shopping, que responderá por ação judicial civil e criminal, respondeu ainda por meio de assessoria que tem centrado esforços no caso e que deverá se reunir com o Grupo Gay de Alagoas (GGAL) nesta quinta-feira, 9.

Morte e o Risinho

De acordo com os relatórios atualizados da Transrespect versus Transphobia Worldwide (TvT), 331 pessoas trans ou travestis foram assassinadas entre 1 de outubro de 2018 e 20 de setembro de 2019, no mundo. O Brasil segue como o país que mais mata pessoas trans, com 132 casos, seguido do México (65) e Estados Unidos da América (31).
Para além de atualizar o mapa dos assassinatos, Jesus (2014) remonta a transfobia como um crime de ódio que inclui uma série de outras formas de preconceito interligadas, tendo os assassinatos como a expressão maior, geralmente cometidos de forma hedionda. É possível conferir o estudo clicando aqui. No entanto, essas sequências de exclusão que seguem desde um banheiro a uma escola, um trabalho ou uma convivência familiar, ou um transeunte na rua que, desavisado, desdenha. Remontam às palavras de Hélio R. da Silva, quando escreve que:

“Assim como no caso dos meninos de rua, o problema não é a travesti. A questão é quem as mata, espanca e desdenha. Talvez possamos estabelecer uma linha de comunicação entre o risinho no canto direito da boca do intelectual macho (ou do gay respeitado) com a bala que fere o seio esquerdo da travesti. O risinho cria na verdade a ambiência que neutraliza a decisão de apertar o gatilho”. ( Do livro Travesti, a Invenção do Feminino).

Arte e Informação como enfrentamento

A arte aproxima e insere as pessoas em mundos, realidades e experiências nunca vividas. Mas por que o “estranho” causa tanto afastamento? O professor da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), e mestre em Dança, Reginaldo Oliveira, decidiu “Colapsar” as relações entre masculino e feminino no espetáculo de dança homônimo que, posteriormente, se tornou um curta-metragem experimental.

Reginaldo Oliveira, o Régis, foi ao Centro de Maceió, vestido de preto, com o rosto todo coberto e realizou uma performance de dança próximo à Igreja Nossa Senhora do Livramento. “A escolha do nome vem de um texto escrito por mim durante um processo onde discuto a binaridade normativa de gênero no sentido de colapsar a norma masculino/feminino apresentando outras possibilidades, performances e fluências de gênero. E também pela palavra Colapsar ter se tornado, no processo de criação do espetáculo, um dispositivo dramatúrgico de desconstrução do meu corpo, assim também, colapsar a norma existente em minha fisicalidade, em minha dança”, explica Régis.
Como era de se imaginar, a estranheza tomou conta da rua. Pessoas passavam com medo e assustadas, até se despirem do preconceito e observarem mais atentamente o que estava acontecendo, e, por fim, compreenderem que se tratava de uma manifestação artística.

“Eu lembro de várias pessoas se benzendo e fazendo o sinal da cruz. Isso foi bem simbólico visto que estava próximo a uma igreja. Algumas pessoas que via aquele corpo de repente tomavam susto. Outros mudavam a direção para não passar por perto de mim. Em relação as falas ouvi: ‘cuidado com o Bolsonaro’; ‘seu viado’; ‘que horror, valha-me Deus”, conta.

Colapsar recebeu o prêmio de Melhor Filme Olhar Crítico da Mostra Sururu 2019. Com direção coletiva, além de Reginaldo Oliveira, integram a produção, realização e concepção do curta experimental Valeria Nunes, Juliana Barreto, Amanda Moa, Renata Baracho, Renah Berindeli, Luiza Leal e Maira Costa. Para saber mais sobre Colapsar, clique aqui e confira a crítica feita pelo Alagoar.

Através do espetáculo Transhow, Natasha Wonderfull integra um grupo de mulheres trans e travestis que resistem em alcançar mais espaços através da arte. Com pouquíssimo apoio, as transformistas e dubladoras também costuram, divulgam, estruturam as apresentações. O último espetáculo, ocorrido no dia 4 de janeiro – o mesmo dia em que Lanna foi agredida pelos seguranças – seguiu a temática Transvisibilidades: Nosso corpo é político e viver é um ato de resistência.

Além do Transhow, Natasha também iniciou sua atuação no youtuber, com o Canal Wonderfull. “A ideia é mostrar nosso dia a dia, nossa arte, nossa cultura. Mas é preciso que as pessoas também ajudem a divulgar”, atenta.No Canal, Natasha conversa sobre vida, trabalho, cultura, e arte. Entrevista outras trans e travestis. Em um bate-papo com a artista Rakel Santos, por exemplo aproveita para deixar o recado: “Não se enganem com aquela beleza no palco. A gente não tem patrocínio, não tem nada. A gente trabalha com o que tem. A gente trabalha com a realidade. E é uma maneira de dar um pão para as meninas, de ajudar com medicação, com figurino, às vezes para pagar um aluguel para que elas não acabem indo para a rua, quando não tem água ou butijão (de gás). A gente não está aqui para aparecer, para dar close, mas para pensar em maneiras de aprender a trabalhar com políticas públicas. Não é só o glamour e ver as meninas na rua se prostituindo”, diz. Para conhecer o Canal Wonderfull, acesse o link clicando aqui.

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