Editorial: No mês dos Direitos Humanos, um recado para o Quarto Poder

A gente inaugura com convicção e provas de que essa história de que as pessoas querem ser enganadas é a maior fakenews.
Share on facebook
Share on twitter
Share on pocket
Share on whatsapp

Era dezembro de 1948. Líderes de várias partes do mundo se reuniam na Assembleia Geral das Nações Unidas para  a proclamação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. As palavras naquele documento universalizaram conceitos sobre cidadania, paz e democracia no planeta. Seu conteúdo foi escrito após os 58 estados-membros, entre eles o Brasil, declararem ter chegado à conclusão de que os horrores provocados pela Segunda Guerra Mundial não poderiam se repetir e que era preciso reintroduzir na sociedade novas bases ideológicas, distantes do autoritarismo e da crueldade. O artigo XIX desse documento declara que“todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.” Surge aí o conceito de informação como um direito humano.

O reconhecimento da diversidade e das desigualdades profundas até fizeram com que os países signatários introduzissem politicas internas para atingir metas, objetivos, ou cumprir acordos em comum. No entanto, por fora destes mesmos objetivos predominou a política do vale tudo. Fechar os olhos para os problemas do mundo quando conveniente, meter-se na política exterior, explorar países vizinhos ou de outros continentes, universalizar a pobreza e se especializar em técnicas de políticas anti-povo.  Os Direitos Humanos, em sua aparência universal e de ideologia aparentemente ‘neutra’, serviu de guarda-chuva: cômodo assinar, mas cheio de condicionantes para ser posto em prática.

Ao longo dos anos, um dos principais meios de produzir informação, o jornalismo, acabou envolto pelos ares da dita modernidade. Para informar a realidade, ele subiu ao pedestal e lá ficou, autoproclamado neutro e imparcial. Veículos de comunicação se tornaram grandes conglomerados, aparelhados por coronéis e empresários. Os jogos de dominação emprestaram às empresas de massa novo status. A mídia tornou-se então, o ‘Quarto Poder’, uma referência às sociedades de regimes democráticos e representativos,  regidas pelo Legislativo, Executivo e Judiciário, tal a influência dos meios como instrumento mediador entre os indivíduos e a realidade.

O problema é que pensar sobre Quarto Poder nestes termos faz com que ele pareça algo estático. Aqui embaixo, no mundo real que o jornalismo reporta, conceitos se misturam, se confundem e – não raramente – nos confundem. Em um contexto ultrafragmentado, onde pessoas que trabalham são submetidas à atividades sobrecarregadas e cada vez mais automáticas, em nossa categoria – também perpassada por desemprego, precarizações e artimanhas das mais diversas usadas pelo patronato – o desafio é transmutado ao jornalista multitarefa ou polivalente – que pauta, produz, escreve, grava, revisa, edita, adapta o conteúdo para todos os distintos formatos midiáticos, ou ainda ao inexperiente que ‘tope tudo por qualquer trocado’. Em que momento fomos reduzidos a estes perfis? Os desafios técnicos entrelaçam os éticos: nosso produto final é a descrição da realidade, afinal, mas em um mundo complexo cheio de notícias falsas e pós-verdades. Resultado: nossos produtos, as descrições de realidades, são encaixotadas como mercadorias, são negociadas.

O Quarto Poder se esconde, ao tempo que se espalha e usa máscaras. E até a neutralidade, por décadas instrumentalizada como discurso de distinção entre a boa e a má imprensa, é relativizada de acordo com as conveniências.

As redes virtuais – embora perdurem com seu contraditório potencial articulador – têm em seus usuários os grandes propagadores da desinformação.  Reproduzem o individualismo e a solidão. O poder das milícias virtuais e midiáticas, que influenciaram fortemente o último período eleitoral no Brasil e em outros países, continuou, se expande até hoje e influenciam no agendamento desse clima social diante da retirada sistemática de direitos. Uma das pesquisas icônicas, instituída pela Reuters, demonstra que 53% de brasileiros que responderam a pesquisa dizem usar o whatsapp como fonte de notícias, um número gigantemente superior em relação a países como Reino Unido (9%), Austrália (6%), Canadá (4%) e Estados Unidos (4%)*. Desnorteiam quem já está tonto com o sufocamento da economia que nos importa – a que garante as condições de vida das pessoas. Os discursos se radicalizam e deturpam a realidade até o ponto de tornar uma ofensa aquilo que foi produzido para ser universalmente desejável: eles mesmos, os direitos.

Fundamentais, sociais, humanos

O ano é 2019, e a bandeira do direito de existir, do direito de ter direito – quando concretizada em confrontos antirracistas, ou confrontadores de classe e de gênero (outro palavrão)- foram dicotomizadas em um debate empobrecido de direita versus esquerda. Empobrecido porque reduz a complexidade dos dois lados, porque aponta a um monte de vazios cheios de nomes mas sem entendimento dos processos. Porque nega o direito de quem sempre teve direitos negados com o argumento vazio da classificação. E até esquece – que loucura! – que o cerne dos próprios direitos humanos tem uma base liberal.

O ano é 2019, mas em muitos aspectos se assemelha a 1948. Se a Declaração Universal tinha como princípio reintroduzir pensamentos e condutas que nos levassem para um caminho longe da barbárie, porque estamos tão perto dela?

Em um país com a segunda maior concentração de renda do mundo [Informações do RDH da ONU], que socializa a pobreza para manter os 10% mais ricos com 41,9% da riqueza total, seria para nós até ofensivo querer ou acreditar em um pretenso quarto poder que domine e agende discussões que vêm de cima para baixo.

É quase 2020, e a Mídia Caeté vem nos ’45 do segundo tempo’ como obra de desfecho do que foi o ano de 2019, do que tem sido esse período; de meses de conversas, reuniões, planejamentos, afinamentos do que queremos, de como lidaremos com a informação e com nosso próprio trabalho. Decidimos nos constituir enquanto cooperativa, deixando transparente aqui não só nossos serviços e produtos como nossas próprias relações de trabalho. Como cooperativa, somos livres de patrões. Como mídia independente, ficamos livres também de negociação de reportagens e autocensura provocada pela interferência publicitária.  Isso significa que doar para a Mídia Caeté é automaticamente declarar que esse apoio se dá unicamente pela aposta em um jornalismo independente, aprofundado, crítico: porque eu quero que exista, contribuirei. Porque quero fazer parte dele, vou assinar.

 

Power point ‘didaticão’: temos também

Comunicar, para nós, é necessariamente retirar do fundo dos tapetes, das estatísticas, dos telhados e documentos empoeirados, o que diz respeito a nós, denunciando as barbáries ou contando boas histórias e ideias transformadoras. E isso a gente não faz só. A comunicação como uma via de mãos múltiplas, como construção coletiva,  possui para nós um sentido que torna fácil nossa escolha diária por estar do lado de cá. E nos permite concordar com a Angelina Nunes nessa crença de que: o jornalismo resiste. Ele precisa resistir. Não vamos desistir do jornalismo, e tampouco do jornalismo que acreditamos. Por isso, nesses tempos de regime endurecido, de arrocho econômico e saúde mental, optamos por criar. Construir e apostar é nossa cartada do momento.

Obviamente que nossa batalha por sobrevivência se imbrica na luta contra a relativização da realidade, contra a confusão e a preguiça. A saída poderia ser a defesa da Comunicação, e não apenas da informação, como um direito. Se o jornalismo corre perigo, quem melhor que os jornalistas para defendê-lo? Quem melhor do que a sociedade para chegar junto nesta defesa? O que melhor do que reunirmos todos os pés possíveis na porta desses donos do Quarto Poder e declarar: aqui mais não!

Nesse sentido, abrimos mão da neutralidade e o que viemos a oferecer e garantir é a ética e independência. O que a gente pode garantir é manter o convite aberto para que as pessoas cheguem mais perto e saibam exatamente como apuramos, como elaboramos nossas matérias, como é nossa dinâmica de trabalho, como lidamos e descrevemos a realidade gigantesca e desencaixotada. Abrimos mão do discurso da neutralidade para colocar, em seu lugar, nossa adoção ao exercício da transparência: esse livro aqui é todo aberto, plural, rigoroso na checagem das informações e escrito com linhas que defendem desde já a garantia de direitos e da democracia. É esta nossa forma de difundir e garantir um jornalismo que agiganta e provoca com todos a quem compartilha, e de reforçar nossa própria crença de que nenhuma pessoa merece ou quer ser enganada. Por nada menos que isso: Chegamos!

Referências

Brasil é Terreno Fértil para as Fake News

Costas Douzinas – Direitos Humanos e os Paradoxos do Liberalismo

(Vídeo) Angelina Nunes – Planejamento, Apuração e Edição

Apoie a Mídia Caeté: Você pode participar no crescimento do jornalismo independente. Seja um apoiador clicando aqui.

Recentes