Caso de transfobia: funcionário foi julgado; faltam decisões sobre shopping e policiais

Decisão judicial foi a primeira ação condenatória de racismo por LGBTfobia no nordeste
Share on facebook
Share on twitter
Share on pocket
Share on whatsapp

 

Por Wanessa Oliveira e Lucas Leite

 

Na semana passada, a 14ª Vara Criminal da Capital decidiu condenar o funcionário do Shopping Pátio Maceió por ter impedido o acesso de Lana Hellen ao banheiro feminino, motivado por uma prática de transfobia causada no estabelecimento situado na parte alta da cidade. A decisão judicial, que chamou a atenção por ser a primeira ação penal condenatória de racismo por LGBTfobia no Nordeste, agora constrói expectativa em torno de uma outra decisão: a responsabilização do estabelecimento na Vara Cível sobre a conduta transfóbica.

O episódio que aconteceu em janeiro de 2020, desencadou em três medidas e responsabilizações diferentes, por parte da defesa de Lana.

“A primeira foi criminal, que é responsabilizar a pessoa que praticou o ato homofóbico e transfóbico. Como o shopping só pode responder civilmente, porque – segundo a lei – pessoa jurídica não pode responder criminalmente, só em caso de crime ambiental, fizemos uma ação de dano moral contra o shopping, que tramita na 1ª Vara Civil de Maceió. O terceiro que providenciamos foi a responsabilização dos policiais, que agiram com truculência e a algemaram sob justificativa de que ela tinha desobedecido porque, ao ser questionado seu nome, ela deu seu nome social. Só que em Maceió já existe decreto em que a pessoa pode se portar por nome social. Então enviamos processo de procedimento administrativo e também um processo judicial para que respondam por abuso de autoridade”, relata a advogada criminalista Rayanni Mayara, que está acompanhando todo o caso.

De acordo com a advogada, em relação ao shopping, a decisão que deverá ser tomada pela Justiça é sobre o pagamento de uma indenização de R$ 100 mil, reconhecendo o dano moral sofrido pela advogada. Neste momento, segundo ela, o processo está concluso para sentença e pode sair a qualquer momento.

A Mídia Caeté procurou o shopping Pátio, que emitiu a seguinte resposta por meio de assessoria: “O shopping center não pode comentar processos em andamento e esclarece que não compactua com nenhuma forma de discriminação social, atuando sempre pautado pela defesa da diversidade e da igualdade de direitos como base de uma sociedade mais justa e desenvolvida.”

Além da materialidade da indenização, a busca na Justiça também acontece de modo a evitar novas práticas criminosas de transfobia ou LGBTfobia no estabelecimento – o que dificilmente será possível se ele sequer reconhecer a culpa. Até o momento, segundo Rayanni, não houve qualquer ação do estabelecimento no sentido de admitir ou adotar posturas contrárias ao que aconteceu com Lanna. “O shopping não fez nada para minimizar, não se desculpou. O shopping sequer quis fazer acordo nesse processo. Eles negaram os acontecimentos”, explicou.

A reportagem da Mídia Caeté também buscou a Polícia Militar, através de assessoria, mas não não obteve qualquer resposta.

Entenda o caso

Em entrevista à Mídia Caeté, Lanna contou como foi submetida à violência transfóbica no estabelecimento. “Era sexta-feira, por volta das 20h, quando decidi ir passear no shopping. Tomar um sorvete, andar um pouco, essas coisas. Quando eu estava indo ao banheiro, antes mesmo de entrar, fui abordada por um segurança, em um daqueles patinetes elétricos. Ele me disse que eu não poderia entrar pois alguma cliente poderia ficar constrangida”, afirma Lanna.

Foi a partir desse momento que Lanna pegou o celular e começou a filmar todo o ocorrido, repetindo que “travestis não podem usar o banheiro feminino” no shopping. “O meu sentimento era de revolta, pois eu sabia que tinha direito. Ao subir na mesa eu percebi que muitas pessoas são leigas e não conhecem esses direitos. Uma parte do shopping aplaudiu e outra vaiou. Eu me senti discriminada e acolhida ao mesmo tempo. Mas o fato foi bom para abrir os olhos das pessoas. Se eu estava ali em cima, gritando, pedindo o meu direito, eu sabia o que estava fazendo. Se eu não soubesse, eu ia fazer o que muitas fazem, e abaixar a cabeça”, conta. A reportagem completa sobre o caso pode ser conferida clicando aqui.

Hoje, ao rememorar a situação, Lanna Ellen conta como ainda tentou dialogar com o funcionário. “Eu perguntei ao segurança: onde que eu posso usar o banheiro, se eu não posso usar o banheiro feminino? Ele falou que não sabia, que só estava recebendo ordens. A partir daquele momento me jogaram um balde de água, onde eu fiquei perplexa pelo despreparo do segurança e dos senhores policiais militares que atenderam a ocorrência, pessoas que trabalham lidando com o público e não sabem o mínimo do direito de uma pessoa LGBTQIA+”, conta. “Eles têm que aprender, tem que se preparar e conhecer a lei que abrange todas as pessoas LGBTQIA+. Aprender a respeitar e ter uma postura diferente, não a postura transfóbica ou homofóbica que eles têm. Temos que acabar com esse conservadorismo”, rebate.

Segundo a sentença assinada pelo juiz Ygor Vieira de Figueirêdo, que julgou procedente a condenação do funcionário no crime de racismo, “verifica-se que os elementos contidos nos autos, em especial a prova testemunhal colhida e os vídeos anexados, deixam claro que o réu, através de ação dolosa, impediu o acesso de Lanna Hellen ao banheiro feminino exclusivamente em razão de seu gênero, conduta que enquadra no art. 20 da Lei 7.716/89, não existindo qualquer causa que exclua sua responsabilidade ou o isente de pena”.

O funcionário deve cumprir a pena em regime aberto, com prestação de serviço à comunidade pelo prazo de 1 ano e 6 meses, durante seis horas semanais, além de uma prestação pecuniária no valor de 10 salários mínimos, revertida para grupo ou ONG com atuação em favor da comunidade LGBTQIA+.

A militância de Lanna: “Eu gritei não só por mim”

Até aqui, Lanna Ellen relata ter se sentido contemplada pela decisão judicial. “A sentença do juiz foi muito boa, bem colocada, pelo constrangimento que eu passei, pela discriminação da comunidade, não só LGBTQIA+, mas das meninas trans, onde muitas já passaram e passam por situações de discriminação, preconceito, transfobia e agressões. Muitas infelizmente morreram e nada foi feito”.

Ainda segundo a cabeleleira, embora sua vida não tenha modificado muito desde então, decidiu começar a realizar algumas ações. “Automaticamente consegui uma visibilidade nas redes sociais, como o Instagram e o TikTok, este último onde eu faço uma ação social aqui em Maceió. Após o fato ocorrido no Shopping Pátio, eu vim trazer visibilidade e ajuda. Comecei a fazer um serviço social, o Projeto Lanna Hellen, para levar marmitas para as pessoas em situação de rua. Hoje, com ajuda de Deus e dos seguidores do Instagram e TikTok, ajudamos mais de 800 pessoas por mês, além de dar visibilidade às pessoas trans. O pouco que eu consigo das doações, em dinheiro ou em alimentação, eu transformo em marmitas. Cozinho 200 marmitas por semana, para alimentar as pessoas em situação de rua”.

Lanna reforça o quanto sua reação e todas as ações posteriores vêm sendo fundamentadas na busca por direitos. “Por ser um estabelecimento público, ou privado, temos o direito de ir e vir. Ninguém é obrigado a nos aceitar, mas sim a nos respeitar. Temos leis que nos protegem, nos defendem e, por eu conhecer um pouquinho dessas leis, como usar o nome social, usar o banheiro de acordo com a sua idealidade de gênero, eu lutei e fiz a manifestação. Eu gritei não só por mim”.

É neste sentido que acredita que todos os desdobramentos precisam ser educativos e evitar que situações como esta voltem a acontecer. “Quantas não foram as meninas trans e pessoas LGBTQIA+ que passaram por isso e o caso não foi para frente? Foi e está sendo uma grande vitória, por a gente ser um dos primeiros casos do Estado onde a Justiça condenou o caso de transfobia, para ele não acontecer mais. Eu espero que sirva de lição, para quando essas pessoas forem cometer um ato preconceituoso ou transfóbico, pensar duas vezes antes. Somos pessoas e só queremos respeito, dignidade e oportunidade de trabalho”.

Apoie a Mídia Caeté: Você pode participar no crescimento do jornalismo independente. Seja um apoiador clicando aqui.

Recentes