Marisqueiras, pescadores e o impasse do Centro Pesqueiro

Confira a primeira matéria da nossa série; quase cinco anos após a expulsão, agora conflito é pelo local de trabalho.
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A primeira vez que escrevi sobre a Vila dos Pescadores de Jaraguá foi quando entendi minha função enquanto jornalista – e nem tinha lá tanta perspectiva crítica. Foi também quando deparei com a instrumentalização da desinformação, bem antes dessa palavra sonhar se vincular às redes sociais, ou de ser denominada ‘fake news’.

Na segunda vez que escrevi sobre a luta das marisqueiras e dos pescadores, não estava trabalhando como jornalista. Após distâncias (inclusive geográficas) e dissertação, a ameaça de expulsão iminente da Vila dos Pescadores de Jaraguá me reaproximou da comunidade. 

Depois das demolições de 2015, a história continua e a labuta também. Esta é a terceira vez que escrevo sobre a Vila. Quase cinco anos depois, de volta ao jornalismo e junto à Mídia Caeté, voltei à comunidade para saber detalhes sobre a situação atual: as memórias, a família, as crianças, o trabalho, a locomoção, as possibilidades e impossibilidades de viver da pesca e, claro, o Centro Pesqueiro. 

Em respeito à transparência de nossas reportagens, que também inclui a transparência sobre quem as escreve, fiz um artigo à parte em que retrato com maiores detalhes meu vínculo com a Comunidade. Clique aqui para ler. 

A partir de agora, segue a primeira matéria de uma série contendo quatro reportagens sobre a Vila. Desta vez, remonta uma situação atual e urgente. Hoje o Centro Pesqueiro é o grande objeto de controvérsia entre marisqueiras e pescadores e a Prefeitura. “A gente sente como se estivéssemos expulsos de novo”, falam constantemente.  Fizemos uma entrevista com a marisqueira e presidente da AMAJAR, Francineide Oliveira, durante visita ao local, cujas portas das instalações ainda estão fechadas. Confere aqui!

 

Parte I – Onde estão os Pescadores do Centro Pesqueiro de Jaraguá? Entendendo as recusas

 

 

Em cada metro quadrado que hoje comporta o Centro Pesqueiro de Jaraguá, a marisqueira Francineide Oliveira reconhece uma morada, uma memória da infância, ou dos escombros deixados após a expulsão da comunidade da Vila dos Pescadores de Jaraguá. Ainda é vívida a lembrança do despejo resultante de decisão judicial em favor da Prefeitura de Maceió, ocorrida no dia 17 de junho de 2015, sob ostensivo aparato militar. A conclusão da 1ª Turma do TRF da 5ª Região era de que o local deveria ser transformado em espaço de trabalho – mas não de morada.

Quase cinco anos depois, o prometido Centro Pesqueiro em que a Prefeitura alegava urgência para construir foi inaugurado simbolicamente- e ainda com obra incompleta. A comunidade pesqueira denuncia ter sido excluída de todo o processo decisório sobre o Centro, e declara que até mesmo para trabalho o local é inviável.  No bojo das reclamações, reforçam a estrutura inadequada ao tratamento de peixes, o desconhecimento da gestão em relação à realidade e dinâmica da pesca, e o estabelecimento de taxas abusivas e indefinidas por parte da Prefeitura e da OSCIP em que firmou parceria, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Sustentabilidade (IABS).

Hoje presidente da Associação de Moradores e Amigos de Jaraguá, entidade que protagonizou a luta pela permanência da comunidade pesqueira em Jaraguá, Francineide Oliveira diz não conseguir evitar a conclusão de que o resultado ‘final’ do empreendimento e a dinâmica estabelecida pela gestão representam mais esforços da Prefeitura para a retirada absoluta dos pescadores.

Ocorre que, judicialmente, o Município não pode dar outra finalidade àquele território, que não em benefício das marisqueiras e dos pescadores. Na sentença judicial que culminou no despejo da comunidade, o desembargador Manoel Erhardt relatou que “a desocupação está sendo determinada em favor não dos autores [Prefeitura], mas dos moradores da comunidade em nome dos quais eles agiram. Consequentemente, nem o Município de Maceió, nem a União poderão dar ao terreno desocupado destinação diversa daquela à qual ele se encontra afetado, agora, também, por decisão judicial”, descreveu.

 

Na prática, porém, Francineide começa registrando a ausência de diálogo com o Município. “Eles dizem que tudo foi feito com consentimento da comunidade, como sempre. Como sempre a prefeitura trabalha muito sujo. Teve condições. Fez comissões com a comunidade, e sempre dizíamos o que era importante que fizessem para que a gente pudesse trabalhar e nunca acataram”.

SEMTEL diz que processo de transição será gradual e participativo

Questionada sobre o conflito, a Secretaria Municipal de Turismo Esporte e Lazer (SEMTEL) emitiu inicialmente a seguinte nota:

“A Prefeitura de Maceió já iniciou a implantação do projeto de desenvolvimento econômico e social do Centro Pesqueiro de Jaraguá por meio de um termo de parceria firmado com o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Sustentabilidade (IABS) – organização social com experiência em projetos similares em diversas partes do Brasil.

Obedecendo ao cronograma de transição para ocupação definitiva do equipamento, foram realizados cursos, oficinas, plantões sociais, reuniões com cada um dos segmentos e visitas guiadas aos espaços de uso coletivo e individual.

Uma das etapas principais passa pela formalização dos beneficiários e agendamento para relocação. Os encargos, proporcionais a cada um dos segmentos (estaleiros, depósitos, oficinas, boxes, tarimba, etc.), serão definidos em 2020, a partir da experiência e funcionamento do Centro Pesqueiro. Até lá, nenhum beneficiário apto será cobrado pelo uso de seu respectivo espaço.

Alguns equipamentos específicos presentes na infraestrutura do espaço passarão a ser operados após a realização de capacitações e treinamentos para uso desses, a fim de zelar e garantir a boa utilização, com cuidados de higiene e manuseio adequado.

O processo de transição gradual e participativa é premissa da Prefeitura de Maceió, que tem como objetivo ordenar, da melhor forma possível, a ocupação dos espaços do Centro Pesqueiro Jaraguá, de modo que atenda às expectativas dos beneficiários e da população da capital. Um espaço com garantia de segurança alimentar, tratamento, manipulação, procedimentos e protocolos, que serão rigorosamente seguidos.”

Atas de reuniões não comprovam fala da Prefeitura

Para além das alegações da Prefeitura, a Mídia Caeté solicitou, via Lei de Acesso à Informaçã, todas as atas das reuniões relacionadas ao Centro Pesqueiro de Jaraguá, – antes, durante e depois da obra, e contemplando reuniões com a participação da população pesqueira. Apenas após recurso a solicitação foi atendida, e ainda assim de forma incompleta. Das únicas seis atas enviadas, a primeira datada de 19 de outubro de 2019, nenhuma possuía assinatura de participação de marisqueiras ou pescadores. A incompletude das informações por parte do Município, afetando a transparência, impossibilita qualquer comprovação de que houve um espaço real de participação da comunidade ou até que ponto as demandas das marisqueiras e dos pescadores foram atendidas. Por fim, também foi questionada à assessoria qual a razão do Centro Pesqueiro se encontrar sob responsabilidade de uma pasta de Turismo, Esporte e Lazer – o que também não houve respostas.

“Nunca tivemos acesso a nada durante as obras. Quando chegávamos lá, diziam que era proibido que entrássemos. Eu dizia ‘como assim é proibido? Morei aqui por mais de 30 anos. Só deixaram a gente entrar na entrega simbólica”, conta.

Segundo Francineide, foi apenas na solenidade de entrega simbólica que os pescadores e marisqueiras de fato conheceram o local construído para que trabalhassem. “Quando a gente viu, logo a gente confirmou que não era para a gente. Do jeito que foi feito, pelo tempo que foi feito, pelo modo como nunca ouviram o que a comunidade dizia, desde o começo a gente tinha certeza de que não era feito para a gente. Não é de jeito nenhum para pescador artesanal. Ele se baseou em indústria e nenhum barco desse é industrial, e tudo artesanal”.

Estrutura

Foram vários os problemas de inadequação da estrutura à dinâmica do trabalho da pesca artesanal. Começa pela sala de filetagem. “A filetagem não tem serventia para a gente, porque temos nosso depósito. Sem contar que eles vieram, viram como trabalhávamos, explicamos o dia a dia e a gente estava fazendo filetagem nessas mesas e banquinho o dia todo. Lá somos obrigados a trabalhar em pé com a altura da mesa que eles fizeram. Imagine o dia todo fazendo isso em pé. Querem que e gente seja escravo da gente mesmo”, relata.

 

As dimensões dos boxes também surpreenderam negativamente. “Eles falaram na reunião que seria um espaço de 3x4m ou 4x5m, em um vão só, e que bateriam a laje para que a gente pudesse guardar as caixas de forma organizada, mas fizeram errado. O teto é uma tele dentro do mercado. Qual a segurança que teremos para colocar a mercadoria lá? Qualquer pessoa pode entrar e pegar” revela.

O problema da insegurança se estende, ainda, aos depósitos. “Nós temos um total de 100 depósitos no provisório, e tinham mais 30, então são cerca de 130 depósitos, mas já sabemos que lá eles fizeram menos do que isso. Então querem que fiquem três pessoas em um tamanho que muito mal cabe uma. E agora pergunto: vai dar certo misturar as mercadorias de todo mundo no mesmo depósito? Eles tinham falado inicialmente que cada um teria o seu, mas como nunca cumprem o que falam, fica tudo só prometido na palavra”.

Nos balcões para tratamento do pescado, mais um problema. “Fizeram um balcão de mármore para tratar peixes. Isso não existe. Se ela quebra em uma cozinha normal, imagine batendo todos os dias os peixes ali. Quando retiraram a gente, eram 280 dias para concluir esse lugar. Foram três anos e fizeram uma obra mal feita. Se fosse para a pesca artesanal, tinham se baseado nesse provisório, mas não. Não tem nada a ver com a gente esse Centro”, desabafa.”Não há rampas para cadeirantes, não poderão comprar peixe não? Não tem dimensões como a gente esperava. É tudo muito estreito”, reclama.

Se falta espaço para o trabalho do pescador, por outro lado, sobra espaço no estacionamento. “Vaga para estacionar é o que mais tem. Nunca vi tanto estacionamento. A câmara de frigorífico também é gigantesca, é para mercadorias que vêm em barco grande e nós não temos nenhum barco grande aqui. Nove milhões de reais em uma obra e tudo mal distribuído”, comenta.

Os pescadores e as marisqueiras também queixam-se da negligência da gestão do Centro Pesqueiro em relação à dinâmica de trabalho. Através de licitação, a Prefeitura de Maceió realizou um termo de parceria com a IABS para elaboração de projeto de desenvolvimento econômico. A entidade foi acionada ainda para gerir, despertando estranhamento por parte da população pesqueira, que não foi contemplada para assumir o processo de organização do espaço de trabalho. O incômodo acentuou quando a gestão estabeleceu um horário de funcionamento para abertura e fechamento do Mercado – de 7h às 17h, o que não condiz com a dinâmica de serviços pesqueiros.

“Nunca vi pescador artesanal ter hora para chegar e para sair. Existem pescarias de arrastão em que saem de madrugada, com gelo, e passam três ou quatro dias no mar. Tem a pescaria de caceia, que os meninos saem a tarde e voltam 22h. Como vão guardar a mercadoria se o mercado estiver fechado? Eles querem fazer um padrão para a gente, ignorando que há mais de 80 anos existe essa comunidade de pescadores. Eu, pelo menos, estou aqui há mais de 30 anos e nunca vi esses horários”.

Taxas

A maior preocupação, no entanto, trata-se dos custos do trabalho para os permissionários. A IABS estabeleceu uma série de taxas para o uso das instalações, resultando em um valor que os pescadores calculam em torno de R$ 800. “São taxas absurdas. Muitas vezes nem o salário mínimo o pescador consegue no mês, como vai custear isso para trabalhar?”, questiona. “Nós que estamos no dia a dia, sabemos o que é sofrer na beira da praia, precisar consertar um barco, e não há assistência de órgão nenhum, mas para tirar do pescador eles existem. Pescador não ganha verba de gabinete. A gente vive do próprio suor”.

De acordo com Francineide, nas diversas reuniões acionadas pela Prefeitura, divididas por grupos, a Prefeitura se recusava a dizer o valor. “Foi em novembro que eles finalmente colocaram todas as taxas: bombeiros, energia, solo, uso de instalações. Somando tudo deu mais de R$ 800. Além de não podermos pagar esse valor ainda podemos perder a previdência, porque se pagamos taxas tão altas, não vão acreditar que somos pescadores artesanais”, reclama.

A presidente da AMAJAR ressaltou, ainda, a imprevisão no trabalho da pesca. “A gente trabalha como loteria. Só três meses é que conseguimos uma safra mais pesada de camarão, depois é sofrer. Vivemos na ideia de que se não conseguimos tirar em um dia, vamos tirar no outro. Não sabemos o que vamos pegar, só que estamos indo”, diz.

Além da imprecisão habitual, o vazamento do óleo no nordeste também trouxe consequências por um certo tempo, embora não tenha atingido diretamente o mar de Jaraguá. “Aqui no Jaraguá e na Pajuçara não teve óleo, mas teve o problema das vendas que caiu. As pessoas não queriam comprar o peixe, porque tinham medo. Só quem confiava mais que perguntou para a gente, comprou”.

Ao ter noção do valor das taxas, a comunidade de trabalhadores da pesca recusou a se transferir para o Centro Pesqueiro. Apesar do impasse, a Prefeitura sustentava nas reuniões – cujas atas foram enviadas à MC – o intento de manter a data da realocação.

Mais uma vez, expulsão?

Por parte da Prefeitura, a demolição da balança de peixe teria ocorrido no dia 7 de janeiro, mesmo sob todas as indefinições quanto ao Centro Pesqueiro. Diversos órgãos, como Polícia Militar, Equatorial, foram acionados para efetuar a operação. Não há como não associar a situação aos episódios de 17 de junho de 2015, para Francineide.

“A gente só pode concluir que o que eles querem é banir os pescadores”, conta. “Eles não querem os pescadores na praia de jeito nenhum. Quando houve o despejo da Vila, me agarrei a um fio de esperança que ainda restava com esse Centro Pesqueiro. Na luta por moradia, a saída foi brusca, mas a gente tinha para onde ir. A gente estava lutando para permanecer aqui porque é um direito nosso. Mas o trabalho, se a gente sair, a gente vai para onde? Onde vamos colocar nosso material de pesca? Com que renda vamos viver?”.

Preocupados, os pescadores e marisqueiras buscaram o Ministério Público Estadual no dia anterior e, após diversas reuniões, a realocação foi temporariamente suspensa.

A Mídia Caeté procurou a Secretaria Municipal de Turismo de Maceió e o IABS. A SEMTEL respondeu, por meio de assessoria,  que mantém o diálogo com a comunidade junto ao Ministério Público Estadual, mas que permanece a indefinição sobre o valor das taxas, o que só deverá ocorrer de fato após a realocação.

“A partir da formalização e realocação dos beneficiários em cada um dos segmentos (estaleiros, depósitos, oficinas, boxes, tarimba, etc.), os encargos proporcionais serão definidos de forma participativa, com valores adequados à realidade dos permissionários e que gerem condições econômicas de sustentabilidade do Centro Pesqueiro de Jaraguá. Todas as reivindicações dos beneficiários passarão por análise da equipe técnica da Prefeitura de Maceió, que visa ordenar, da melhor forma possível, a ocupação dos espaços do equipamento, de modo que atenda às expectativas dos beneficiários e da população da capital”.

Diante da insegurança sobre prazos ou mudança da obra, a preocupação para pescadores e marisqueiras, portanto, continua. “Eles não podem demolir esse lugar provisório enquanto tudo estiver resolvido, porque a gente não pode ir para esse Centro Pesqueiro e ficar refém do que eles decidirem só depois sobre quanto a gente vai pagar ou se eles vão mesmo mudar tudo o que precisam lá para que a gente consiga trabalhar. Quem já viu a pessoa chegar em um lugar e só depois saber quanto custa?”.

“Eles ainda não conhecem a força da comunidade”

 

 

Embora sinta que haja algumas semelhanças em relação à expulsão da Vila dos Pescadores, Francineide diz perceber que há grandes diferenças em relação à situação anterior: sobretudo quanto à postura mais unida dos trabalhadores da pesca. “Agora todos sabem que precisamos nos unir mais do que nunca. Ou todo mundo ganha ou perde, mas ou vai ser bom para todo mundo ou não vai ser para ninguém. A comunidade aprendeu muito com a retirada. Aprendemos com as falcatruas cometidas pela Prefeitura, com o disse-me-disse, aprendemos com eles enganando o povo nas diversas gestões. Eles ainda não conhecem a força da comunidade, mas precisam nos respeitar. Baniram a gente lá várias vezes, e agora querem nos banir do mapa”.

Confira as imagens externas e de instalações abertas do Centro Pesqueiro de Jaraguá, cujas obras foram orçadas na ordem de R$ 10 milhões: 

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