Sonho que virou pesadelo: a realocação ao Centro Pesqueiro

Comunidade foi retirada dos depósitos e da balança, sob pressão da Prefeitura e força policial; a Mídia Caeté acompanhou
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Por Wanessa Oliveira e Lucas Leite

Ato 1.

A novidade veio dar à praia
Na qualidade rara de sereia
metade o busto de uma deusa Maia
Metade um grande rabo de baleia

(Gilberto Gil – A Novidade)

Foto: Lucas Leite

Cinco horas da manhã. A movimentação começa vagarosamente no bairro de Jaraguá, em Maceió. Pouco a pouco, pescadores e marisqueiras começam a chegar na Balança de Peixe e se preparam para o pior: a retirada dos trabalhadores do seu local de trabalho por parte da Prefeitura de Maceió.

As horas passam e as queixas aumentam. O motivo não é a falta de lugar para eles trabalharem, já que a Prefeitura construiu um Centro Pesqueiro. O problema é que eles alegam que o local não tem estrutura mínima para suportar o fluxo de trabalhadores e materiais de pesca, além do próprio pescado.

Além disso, outra preocupação ronda no ar: as taxas cobradas pela prefeitura para a utilização do local – tendo em vista que a renda provinda da pesca artesanal, de acordo com os próprios pescadores e marisqueiras, é muito incerta, dependendo de diversos fatores.

A Mídia Caeté publicou uma matéria e um vídeo com o relato dos trabalhadores e com a falta de resposta da Prefeitura de Maceió. Para conferir, clique aqui 

Ato 2.

Foto: Lucas Leite

E a situação não se alonga muito para repetirmos a música do Gil. A novidade até seria um sonho, se não fossem todos esses problemas. E, assim como diz a canção, virou um pesadelo tão medonho ali naquela praia.

As forças de segurança passavam, desde o início da manhã, sem parar as viaturas, apenas filmando as pessoas que estavam mobilizadas. Por volta das 8h, a primeira viatura para. Fogo nos pneus e o clima fica mais quente ainda. Em pouco tempo, estavam presentes no local o Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar; a Secretaria Municipal de Controle e Convívio Urbano (SMCCU); a Guarda Municipal de Maceió; O Centro de Gerenciamento de Crises, Direitos Humanos e Polícia Comunitária (CGCDHPC); a Equatorial Alagoas; entre outros órgãos de controle.

Ato 3.

A novidade era a guerra
Entre o feliz poeta e o esfomeado
Estraçalhando uma sereia bonita
Despedaçando o sonho pra cada lado

Foto: Lucas Leite

E houve um pescador que faleceu. Os relatos da comunidade são de que Marcos José Batista já tinha problemas cardíacos. Às vésperas da demolição da balança, lembrava o que já tinha passado em 2015, quando demoliram sua morada na Vila dos Pescadores. Passou mal e foi internado na segunda-feira, 03. O Hospital Geral do Estado (HGE) confirmou o falecimento na madrugada do dia 04.

O dia, que começou com luto e apreensão para a luta, foi se moldando de acordo com a aproximação do aparato estatal e das diversas “negociações” sobre como se daria a retirada. O pleito de condições de trabalho adequadas já havia sido descartado. Na primeira reunião realizada com o Centro de Gerenciamento de Crises, o recado já havia sido dado com toda civilidade: a demolição aconteceria com ou sem reação da comunidade. A despeito do diálogo pacífico, viaturas do BOPE e da Cavalaria, no estacionamento de Jaraguá, aguardavam as ordens para o caso de resistência à demolição dos depósitos.

Não havia chances para os pescadores desde o início. As cessões foram mínimas. A preocupação para que se evitassem as perdas de mercadorias dos pescadores, uma vez que já chegavam barcos e, em alguns depósitos, já tinham pescados congelados. Para funcionários da Prefeitura, a ideia era desligar toda a energia junto à Equatorial. Agilizar o processo era a ordem. Pescadores, desesperados, atentavam para a perda de material. E foi a Polícia Militar quem abrandou a situação de animosidade que a Prefeitura queria interpor: “vamos fazer o que foi acordado. Não faz sentido desligar a energia de todos os depósitos de uma vez”, respondiam os PMs do Gerenciamento de Crises aos funcionários da Prefeitura.

Durante a retirada do primeiro depósito, de Maria Lúcia, o funcionário da Prefeitura,  assessor de Planejamento de Políticas de Segurança Pública da Secretaria Municipal de Segurança Comunitária e Convívio Social (SEMSCS), Louvercy Monteiro, mostrou-se apressado com a inconveniência que era o desespero dos pescadores. Falou em bom som e quem estava lá ouviu: “qualquer coisa chama a cavalaria e o BOPE e passa por cima deles”. Fomos lá saber o porquê. O tom de Louvercy mudou, mas não muito.

“Isso é o terceiro momento da intervenção, que vai ser intervenção policial, com apoio do BOPE e Cavalaria. É apoio e não utilização. Quem vai determinar se vai ser preciso uso da força policial vai ser eles, devido a resistência, porque eles disseram que não iam sair de jeito nenhum”.

Foto: Lucas Leite

A “resistência” que aborreceu Louvercy e outros funcionários da Prefeitura, nesse momento, eram os gritos de denúncia, de indignação, desespero e choro. Foi comum ouvir “somos trabalhadores e não vagabundos”, como se pronunciar essa distinção pudesse fornecer a quem nasceu e viveu da pesca algum tipo de livramento em relação ao tratamento dispensado. Não importava: trabalhadores ou não, eles eram empecilho para o fim da operação de demolição do lugar. Desculpa, Gil, mas até aí nenhuma novidade.

“O Centro Pesqueiro é instrumento em que o grande princípio é a inserção social e que visa a redução da desigualdade social que neste ambiente existe, onde lá vai se garantir pescado de qualidade e com certificação de qualidade pela ANVISA  e pela vigilância sanitária do Município”, conta. Louvercy Monteiro também alegou saber sobre as inadequações do Centro. No entanto, no dia anterior, os pescadores levaram ao Ministério Público um documento contendo uma lista de problemas na estrutura do Centro Pesqueiro, que comprometiam inclusive questões sanitárias. O documento pode ser visualizado aqui.

Apesar disso, Louvercy prosseguiu: “Se diz que tem questionamento de vigilância sanitária posso dizer que desconheço, pois estamos na empreitada desde o ano passado para atender as melhorias solicitadas por eles. O grande quê é que eles dizem que não tem espaço para acomodar a todos. O sistema do Centro Pesqueiro de gerenciamento que é inserção social e convívio em comunidade, quem faz isso é o órgão contratado pela Prefeitura, o IABS, e tem o porque disso aí é que o convívio de todos em comunidade. A pesca artesanal continuaria da mesma forma. O que estamos aqui é a forma de vender o pescado. A venda seria mais organizada onde todos comercializarão seus produtos em pé de igualdade”.

Foto: Wanessa Oliveira

Monteiro também afirmou que o IABS só estaria atuando no gerenciamento em um primeiro momento. “Depois o IABS sai e deixa a administração do Centro Pesqueiro para os pescadores exclusivamente”. Para ele, a resistência se trata por duas razões. “Uma seria porque não conhecem o que vai acontecer. Foi apresentado mas a resistência é normal do ser humano. E estão em situação de conforto e agora vão para um lugar onde vão compartilhar com pessoas que não conhecem. É nessa filosofia que é o Centro Pesqueiro”

E apesar de toda a pressa que constituiu o processo de remoção da balança, e da filosofia de organização preconizada pelo assessor municipal do SEMSC, na manhã desta quinta-feira, 05, pescadores registraram as condições de recepção diferentes do que foi declarado, em vídeo:

 

O pescador Gilson da Costa, que ouvia de perto a entrevista, pediu para rebater. “O que eu acho é que ele não tem argumento. Ele falou sobre a empresa que entrou para o Estado, que seria provisório, mas isso é conversa. Não acreditamos mais. Nesse termo que está falando, o que acontece? É para que o povo venha a apoiar a Prefeitura, porque, se você parar para fazer pergunta a qualquer um que está trabalhando aqui, não vão apoiar a gente”, diz. ”Nosso plano é fazer o que ele quer. Fazer o que?”.

Ato final (?)

A novidade era o máximo
Do paradoxo estendido na areia
Alguns a desejar seus beijos de deusa
Alguns a desejar seu rabo pra ceia

Foto: Lucas Leite

Questionamos a comunidade. Ninguém duvidava que seria melhor trabalhar em um Centro Pesqueiro “novinho em folha”. Por outro lado, também não acreditaram que esse Centro Pesqueiro possa ser melhor, principalmente pela recusa constante de incluir a comunidade na construção, nas decisões sobre suas próprias dinâmicas de trabalho, perpassadas por gerações. No mais, alertam que a Prefeitura teria evitado dinheiro gasto em vão, por exemplo, com as estruturas para secagem do pescado; ou com uma câmara frigorífica que a comunidade não acredita que irá utilizar. Teria menos espaço aberto e mais local de trabalho. “Hoje era para ser um dia lindo, com a mudança para esse Centro, mas olha o que estão fazendo com a gente”, dizia o pescador Carlos Jorge, quase sem voz.

Mais do que tudo, defendem que, se houvesse diálogo, teria espaço para todo mundo. No entanto, afirmam que desorganização já começou desde o início do pleito da retirada dos moradores da Vila. Houve um excesso de listas, mas nenhuma definitiva. Tira nome e põe nome. E dezenas de pescadores e marisqueiras, que dedicaram a vida à beira do mar, não foram contemplados.

Danilo Paulo Lins dos Santos é um deles. “No meu caso, a Prefeitura vai me desocupar da minha própria peixaria, que tem 2×6 metros. Vai pegar meu material e jogar no depósito e não vou ter mais como trabalhar. E não tem espaço para minha venda. Primeiro tiraram meu nome na lista, que estava antes, e eu não fui contemplado’, conta. “A gente nem sabe como foi isso. O nome foi dado, tenho comprovante de depósito da lista de 2014, mas meu nome saiu da lista. Por conta disso, tenho 23 anos de beira de praia, no Jaraguá, e hoje não tenho onde trabalhar. Não tenho onde colocar freezer, onde atender meus clientes. Essa é a minha situação”, relata. “É um atentado contra a categoria de pescadores. Uma falta de respeito, porque somos nós quem levamos o peixe para a cidade. E o peixe é tirado diretamente do mar e comercializamos no ponto, inclusive quem está indo, é a pulso, sem condições de trabalho”.

“Tenho 57 anos de beira de praia. Minhas coisas estão todas na barraca. Eu não tenho mais moradia nem local de trabalho mais, até hoje. Já é a terceira geração aqui, minha avó, minha mãe e depois a gente”, relatou o pescador José Cícero. “Primeiro eles tinham que construir um local que coubesse a gente, tem gente que vai para lá e as coisas não cabem. E, outra coisa, estamos cheios de mercadoria. Onde vai colocar? O tratamento é ridículo, pior possível, desde a demolição das moradias em 2015, para agora o trabalho”.

José Luiz também foi prejudicado. “Acho tudo errado. O certo era do jeito que encontrou fazer lá. Se ele encontrou cada um no seu espaço, tem que fazer assim. Eles estão fazendo do jeito que ele quer. Cortando energia, mercadoria que tiver pode ficar ruim e ninguém fica responsável por isso e muitas coisas inadequadas.

Foto: Wanessa Oliveira

A advogada Thiene de Araújo tentou recolher a lista utilizada pelo Ministério Público (MP), mas não obteve sucesso. “Foi feito estudo. Deram entrada no processo na justiça, com a lista primeira oficial, com 153 pessoas. Está dividido entre pessoas aptas e não aptas, mas não sei ainda quais critérios que utilizaram para decidir quem era apta ou inapta. Na sentença, o juiz disse que quem não estiver na lista tem que entrar com ação individualmente. No fim, tem uma quantidade maior de famílias para o número reduzido de espaços de trabalho”.

A consternação começa com a distância entre o papel e a realidade. “Como um juiz pode assinar para que algo como isso aconteça, prejudicando nosso trabalho? Ele não sabe o que é feito aqui e não quer saber”, diz a marisqueira Francineide Oliveira, presidenta da Associação de Moradores e Amigos do Jaraguá (AMAJAR).

O cansaço extrapola a confusão de listas, perpassa pelo descrédito na Justiça após contínuos “nãos”, finaliza com a percepção de uma população que percebe estar ausente de qualquer campo de ótica quando se trata de direitos, incluindo o próprio território. “Como é possível que, aqui ao lado da gente, eles permitam um prédio para lanchas e iates e, logo ao lado, construam um centro pesqueiro para colocar uma empresa para administrar e nos cobrar pelo trabalho; e só a gente fique sem um pedaço dessa praia para trabalhar em paz?”, pergunta também Maria Lúcia, como quem está cansada de saber dessa novidade que é “o mundo tão desigual, tudo é tão desigual”.

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