Encurralados: expulsão de pescadores, cercamentos e mudanças de ofício

POR WANESSA OLIVEIRA

Construções que barram acesso à praia vêm escalado expulsão de pescadores e comunidade local. Foto: Pesquisa de Rennisy Rodrigues.

Em 6 de fevereiro deste ano, pescadores da Colônia Z-25 da área situada no povoado de Tatuamunha, em Porto de Pedras, foram surpreendidos com a chegada de uma retroescavadeira, destruindo a palhoça que abrigava todo o material de trabalho do grupo, em uma área pertencente à Marinha. A ação foi acompanhada por funcionários fardados do Instituto do Meio Ambiente (IMA) fardados, mas não identificados, junto a representantes de um condomínio pé-de-areia, que atualmente segue em construção, no mesmo local, além de supostos policiais militares.

Estarrecidos com a ação truculenta, e sem lugar para a guarda do material desde então, os pescadores percorreram diversos órgãos demonstrando que a derrubada das barracas não levou em conta que os trabalhadores tradicionais possuíam, inclusive, o Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUZ), emitido pela Superintendência de Patrimônio da União (SPU), garantindo o direito aos ranchos de pesca. O Boletim de Ocorrência foi registrado, mas até o momento não há qualquer informação sobre indiciamentos.

Sete meses depois, os pescadores seguem sem a palhoça, e convivem com perdas constantes de material, pelo desgaste do sol ou mesmo por furtos.

Com palhoças destruídas sob determinação do IMA, até agora pescadores aguardam criação de novo espaço para guardar material. Foto: Wanessa Oliveira

Paulo Bandeira, o Babalo, é um dos pescadores da área e estava no local no momento do ataque Desde então, relata que os pescadores seguem aguardando a reconstrução das palhoças, ao tempo em que convivem com a falta de responsabilização sobre a ocorrência, e com ausência de qualquer órgão público para auxiliar e fato os pescadores na reconstrução da palhoça e na proteção do território.

A Mídia Caeté buscou o contato com a Citecon, responsável pela construção do empreendimento, mas não houve atendimento da ligação nos telefones disponíveis.

Longe das respostas efetivas, o cercamento da praia por proprietários de condomínios ou terrenos pé-de-areia, segue comprimindo os territórios pesqueiros em áreas cada vez mais extensivas e sem obstáculos à vista. Mais a frente, em um outro ponto da mesma região, conhecida como Área 7, os pescadores contam como o dono de um terreno não só estendeu a cerca para uma área da União, como “espremeu” os pescadores que colocavam a guarda de material, dificultando ainda a passagem e o acesso à praia.

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O pescador Marcel Fernandes dos Santos relata: “Essa aqui é uma das áreas liberadas pelo TAUZ e, até agora, estamos esperando a prefeitura pra fazer nossas palhoças. Tem mais ou menos uns 15 pescadores nessa área, que também faz parte da Z25. O problema é que, mesmo com a liberação, até agora não tivemos nenhuma solução definitiva de construir as palhoças”, explica. “Esse sítio é do Mano Walter, e está cada vez mais ‘imprensando’ os pescadores. Depois que começar a construir, vai implicar ainda mais e não vai querer mais esse material de pescador perto do terreno dele”.

Mesmo com receio por saber que o dono do terreno tratava-se do cantor famoso, os pescadores decidiram quebrar as cercas e colocar os arames de volta para dentro do terreno.

“Tem luta, tem pessoas que apoiam a gente. A gente tem medo de fazer isso, mas a gente faz, porque é muito difícil para a gente. O acesso também está sempre apertando mais. Só dá pra entrar de bicicleta ou moto. Não dá para chegar de carro que é preciso para trazer material já que não temos também lugar de guarda. Ele imprensou tudo. Quando foi medida a área do TAUS não tinha. 60 x30 da praia para lá. E agora é que tem menos de 50”, conta.

Marcel Fernandes é pescador há mais de 20 anos. Tem pai pescador e irmãos também, mas conta ser o único da família que permanece no ofício. “Eles desistiram por conta da dificuldade que é ser pescador. Você só fica na atividade aquele que ama mesmo a pesca. Porque está cada vez mais difícil pescar. O acesso à praia agora é cheio de proprietários e pousadeiros fechando. Temos dificuldade de guardar nosso material de pesca. Fica tudo desse jeito. A boa parte fica em casa, então é dificuldade pra trazer porque moramos longe. Eu mesmo moro a uns quatro quilômetros”.

Segundo Marcel, antes havia rancho para guarda naquele mesmo local. “Agora os pousadeiros não querem mais que faça. Meu pai tinha uma palhoça bem aqui. Na época caiu. O pai estava de idade e não fizemos. Quando fomos fazer não deixaram mais. Mey pai morreu com 80 e tantos anos, eu já tenho 39, então tem mais de 100 anos que tem palhoças por aqui. Mais de 100 anos era área de pescador, e agora é do Mano Walter. Mas não é só Mano Walter. Todos que passaram aqui antes implicavam também”, diz.

A Mídia Caeté entrou em contato com a assessoria de comunicação do cantor Mano Walter e solicitou respostas sobre a situação, mas até o momento de fechamento da reportagem, a resposta não foi enviada.

Pescador Marcel Fernandes fala sobre as dificuldades para persistir na pesca. Foto: Wanessa Oliveira

Sem lugar para guarda, os pescadores têm ainda mais dificuldade de manter o trabalho. “Essa é a dificuldade que temos enfrentado. A gente deixa a rede, muitas roubam, outras se acabam no sol quente. Eu acho assim. Eles sabiam que aqui era área de pescador, porque querem nos expulsar agora? O turismo é bom, mas é ruim, porque gera muito emprego mas também a gente perde muito. Eu creio que, se for nesse ritmo, daqui a dois anos, os nativos não tem acesso mais à praia não. E nem à pesca. O turismo avança e a maioria vira jangadeiro e não sabe mais arriscar a vida no alto mar, ainda mais quando pode fazer turismo”, conta.

Para Marcel Fernandes, o acesso ao mar para os pescadores seria benéfico para a comunidade local de modo geral. “Se o pescador ganha área para ele utilizar para guardar material, é um acesso garantido também par aos moradores irem à praia. Então não é uma briga só de pescador, é da comunidade inteira. Do contrário, vão fechar e tornar a área da praia toda particular”.

Diante desse fechamento, os pescadores relatam que a SPU chegou a passar pelo local e tirar fotos, mas depois não obtiveram mais notícias. Já o Instituto do Meio Ambiente, segundo os relatos, ainda que acionado por aterramento de mangue ou restinga, não aparece – ou aparece para derrubar as palhoças dos pescadores.

“O IMA é um órgão que não poderia nem existir se ele não faz bem para a natureza, faz só o mal”, começa Marcel. Já Paulo continua. “Um homem aqui cavou uma draga, encheu de pedra e cobriu para ninguém ver. A maré foi avançando e encostou na pedra e está lá, o paredão de pedra. Veio todo tipo de órgão Nós vimos porque estávamos lá nos preparando para pescar. O dono é um juiz que estava se balançando na rede e lá ficou. Depois vi os fiscais ambientais comendo lagosta lá dentro. Se fosse a gente já estávamos presos” relata Babalo.

“A gente não pode fazer uma barraca numa área que é da gente, mesmo com documento em mãos. Já ele está invadindo o que é dos outros. Uma palhoça nem é um prejuízo assim para a natureza ou para o meio ambiente. Já o que eles fazem é um prejuízo que não tem nem volta. Um aterro desse não tem como a restinga recuperar. E uma jangadinha que a gente coloca aqui não causa”, conta. “E o engraçado é que liberam tudo. Tem placa de paredão de pedra com liberação do IMA”.

A Mídia Caeté procurou o IMA. Em reposta, o coordenador de gerenciamento costeiro do órgão, Ricardo César, relatou, sobre estes pontos, que:

“Para o licenciamento ambiental é necessária a apresentação comprobatória da regularidade do imóvel, seja junto à Superintendência do Patrimônio da União (SPU) (terrenos de marinha) ou da Prefeitura Municipal, como também a declaração de que o empreendimento proposto esteja de acordo com o uso do solo do município. As legislações ambientais em relação às Áreas de Preservação Ambiental (APP) são sempre observadas. Também são exigidos estudos ambientais compatíveis com a tipologia, porte e potencial degradador da intervenção, sempre observando as legislações ambientais pertinentes. Como também todos os projetos técnicos com seus respectivos descritivos, incluindo topografia, drenagens e tratamento de esgotos.

Os processos de licenciamento no IMA-AL são analisados por uma equipe multidisciplinar de vários setores de competências e ainda passam pela deliberação do Conselho de Administração do IMA. Em casos de estudos mais complexos com EIA-RIMA, seguem para análises e deliberações do Conselho Estadual de Proteção Ambiental -CEPRAM.

Não existem autorizações ambientais do IMA-AL para supressão ou aterros de vegetações consideradas de APP, conforme o Código Florestal Lei 12.651/2012. Como também é respeitada a faixa de praia legal, Lei 7.661/88 e Decreto 5.300/2004. O que, caso ocorresse, configuraria em crime ambiental.

Em relação à definição de vias de acessibilidade perpendiculares à praia, é ação primordial dos municípios costeiros. Cabendo ao IMA-AL agir supletivamente caso haja omissão do município”.

Sobre o episódio de derrubada das palhoças, o IMA afirmou que:

“Em relação à ação desenvolvida em Porto de Pedras com alguns equipamentos instalados na faixa de praia legal, decorreu de atendimento a denúncias de depredação da vegetação de praia e acúmulo de lixo em áreas adjacentes. Houve a retirada dos equipamentos e posterior requalificação destes em conformidade com a preservação da área e em acordo firmado com os permissionários dos equipamentos. A Secretária de Patrimônio da União (SPU) concedeu Termo de Autorização de Uso Sustentável (TAUS) em trechos da Zona Costeira de Alagoas e o IMA-AL já incorporou no seu sistema de geoprocessamento com fins de preservar esses ambientes evitando conflitos com outros usos”.

Por fim, o órgão nega tratamento desigual. “Ressaltamos que não existe esse tipo de relação com medidas diferentes entre IMA, pescadores e imobiliárias. Tanto é assim que o IMA participa de várias ações e projetos em parceria com as colônias de pescadores e a Federação dos Pescadores há várias décadas.”

 

FOTOS PLACA IMA

A diretora executiva do Instituto Yandê – que realiza trabalhos de educação ambiental e cultura na região da Rota – Bárbara Pinheiro, é também pesquisadora da Universidade Federal de Alagoas, e vem se debruçado em seu pós-doutorado sobre as mudanças climática, com foco na elevação do nível do mar.

Pernambucana, Bárbara convive na Rota desde 2018 em meio às pesquisas e trabalhos na região, e vem confirmado os problemas percebidos pela comunidade local. “Se não tem gestão costeira eficiente, principalmente na Rota, quando chega a especulação não consegue frear com instrumentos como o Plano Diretor”, avalia.

“O principal problema da especulação imobiliária é tirar das populações locais o acesso à beira da praia, principalmente os pescadores artesanais. Tanto que foi um caso sério a destruição dos ranchos, que agora vão ser obrigados a reconstruir. Mas também desmatam restingas, promovem crimes ambientais na mata ciliar, tudo em vegetação permanente. Em Tatuamunha, na frente da base do ICMBio, há um manguezal denso, com rio assoreado e várias questões ambientais. Visivelmente já se consegue perceber o impacto e isso vai ter implicações muito graves para mitigação e em como a população vai sofrer com as mudanças climáticas”.

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Não bastasse a dificuldade de acesso à praia e o prejuízo sem espaço para guarda de material, os pescadores convivem ainda com a situação de incerteza crescente na pesca. São constantes os relatos de que os peixes estão diminuindo, seja por situações de poluição, ou porque os cardumes se assustam com os sons dos motores de barcos de turismo. O fato é que, ainda que as motivações sejam as mais diversas, é unânime o fato de que os mar não anda mais para peixe como antes.

. “A pesca é bom, mas nem toda hora consegue o suficiente para a família. Mas eu mesmo nunca deixo de pescar. A pesca faço todos os dias. Amo pescar. Já fui três horas e a tarde vou lá colocar de novo a rede. Cheguei até um tempo a ter carteira assinada, mas só vivia estressada. Quando chego no mar, não. Quando chego no mar…”, reflete Marcel.

No que diz respeito à pesca, a situação também não vem sendo animadora. “Existe estudo da pesca por gestores da APA Costa dos Corais que levanta que a sobrepesca está grande, porque faltam peixes. Na Rota isso intensifica justamente porque é mais fácil trabalhar com turismo já que se ganha mais dinheiro, com menos horas no mar. Enquanto a falta de peixes aumenta e é preciso ir cada vez mais para longe do mar para voltar com a mesma quantidade de antes”. Então os pescadores do mar de dentro, que não vão para o alto mar, estão trocando e vendo que é economicamente mais rentável o turismo na alta estação. Agora, quando chega a baixa estação, voltam a pescar para ter a fonte de renda”.

Além do mais, se o ofício era passado de pai para filho, hoje é cada vez menos comum. “Há menos interesse nos jovens de trabalhar com a pesca. O Yandê faz parte do Conselho Gestor da APACC hoje e, nas reuniões, cada vez mais percebemos que os mais novos não estão chegando para tomar posse nas secretarias da colônica. São pessoas cada vez mais antigas”, comenta.

As Prefeituras de Porto de Pedras, Passo do Camaragibe e São Miguel dos Milagres, foram exaustivamente procuradas pela Mídia Caeté, para obtenção de respostas sobre todos os pontos elencados. Até o momento da publicação desta reportagem, nenhuma delas nos respondeu.

Essa reportagem foi contemplada pelo edital Bolsas de Reportagem Justiça Climática – AJOR e iCS: Justiça Climática e o Enfrentamento ao Racismo Ambiental no Brasil”, promovido pela Ajor, Associação de Jornalismo Digital e o iCS, Instituto Clima e Sociedade, no âmbito do The Climate Justice Pilot Project. 

MÍDIA CAETÉ – Plataforma multimidiática sem fins lucrativos voltada a reportagens especiais e investigativas, com independência editorial.

Reportagens: Wanessa Oliveira Apoio/Entrevistas: Vivia Campos. Revisão: Marcel Leite. Webdesigner: Leonardo Reis. Fotografias: Wanessa Oliveira e Vivia Campos. Ilustração: Jacqueline Aldabalde Redes Sociais: Marcel Leite