Degradação e racismo ambiental asfaltam o percurso da Rota Ecológica dos Milagres

POR WANESSA OLIVEIRA

MÍDIA CAETÉ

A reportagem da Mídia Caeté chega a Rota Ecológica dos Milagres pela primeira vez e, sem ainda  falar com ninguém, muitas informações já são captadas pelas lentes e olhares. Desmatamento, aterramento de mangue, soterramento de restingas. Do alto do morro que – sendo região de Área de Preservação Permanente (APP), não poderia ser desmatado – a terra lisa e escavada quebra o tom do verde que se esperava de um lugar propagandeado enquanto “Ecológico”. Mais embaixo, já na pista: lama, barro, tijolos, e placas, muitas placas. Metade delas propagandeando construções. Outra metade é do Instituto do Meio Ambiente (IMA) carimbando o licenciamento de todas aquelas novidades. 

Tratores percorrem a rota entre os buggys de passeio a todo o tempo. Os barulhos das máquinas se misturam à poeira levantada para quem está nas margens da rodovia. A pista, ao longo da rota, geralmente tomada por barro retirado dos morros, é constantemente bloqueada por sinalizadores: uma situação ainda mais intensificada na cidade de Porto de Pedras, última cidade da rota para quem parte da capital alagoana. Tampouco perto do mar há sossego: são construções e mais construções de condomínios “pé-de-areia” e sons de furadeira e outras máquinas que já iniciam por volta das 7 horas da manhã, todos os dias. 

Para quem conhece áreas degradadas e, o seu oposto, territórios absolutamente preservados, chegar na Rota Ecológica dos Milagres é ser perturbado por todos os sentidos que alcançam o estágio em que aquele lugar se encontra: um processo de degradação em pleno curso, e aparentemente sem obstáculos para sua continuidade. 

Acreditando ou não em Milagres, ainda não tínhamos falado com ninguém e já percebíamos que havia algo errado neste paraíso.

Trator passa por morro desmatado em área da Rota Ecológica. Foto: Wanessa Oliveira

De matas densas nos morros às praias quase desertas – até então voltadas à pesca e ao convívio da comunidade local- as cidades de Passo do Camaragibe, São Miguel dos Milagres e Porto de Pedras  quase não podem mais ser reconhecidas em seu cenário de cinco anos atrás. Sofrendo uma alteração devastadora, em um ritmo reconhecidamente frenético, os litorais destes municípios inseridos na chamada “Rota Ecológica dos Milagres” vêm sendo reconfigurados pela intensa exploração turística e especulação imobiliária. Os profundos impactos ambientais sentidos pelas comunidades locais impressionam: pessoas diversas que se identificam como “nativos”, de três cidades diferentes, utilizam palavras comuns em seus relatos, ao se sentirem “expulsas” ou “imprensadas” entre os muros que se erguem em benefício das pessoas “de fora”. 

Embora não exista uma demarcação exata de como este trecho do litoral alagoano se tornou alvo da exploração dos segmentos turísticos e imobiliários, há uma série de indícios que compunham nosso quadro de pistas. Alguns portais turísticos, como o “Milagresse”, determinam que o nome da Rota Ecológica iniciou ainda nos anos 1990, pelo então secretário de Turismo de São Miguel dos Milagres, e foi institucionalizada pelo Governo do Estado. Sendo a cidade condutora, até então, do turismo na região, o termo “Milagres” teria se reunido ao título na sequência por turistas, empresários locais, e jornalistas que escreviam a respeito. Esta é uma das histórias.

Já informações alguns moradores mais antigos e pesquisadores convergem na ideia de que o termo completo começou a partir do “Reveillon de Milagres”, produzido pelo grupo Tamojunto. – produtora que conglomera uma série de empresas nas áreas de entretenimento, gastronomia, e até casamento. Como a festa não acontecia efetivamente em Milagres, a inclusão do nome na Rota Ecológica veio a calhar. 

A pesquisadora Doutoura de Rede em Desenvolvimento e Meio Ambiente  da Universidade Federal de Pernambuco, Rennisy Rodrigues, debruçou sobre essa história. “Em 2002 não havia ianda nada. Tinha um turismo incipiente, numa área precária com uma outra pousada em potencial desenvolvimento”, conta. Apenas em janeiro de 2011, quando o Governo do Estado institui a Lei nº 7231, que dispõe sobre a Política de Desenvolvimento do Turismo Sustentável em Alagoas, são criadas as chamadas Áreas Especiais de Interesse Turístico (AEIT) . 

Embora o discurso da sustentabilidade estivesse presente ao longo da normativa, na prática, o que se viu, foi diferente. “Vai se construindo processo e dando oportunidade dos empresários se apropriarem desse local. Boa parte desses empresários estão nas secretarias, nas prefeituras”, conta.  Foi neste resgate histórico, que a pesquisadora constatou que o termo da Rota Ecológica iniciou no circuito das chamadas pousadas de charme. A partir do marketing do Tamojunto, se foi difundido o reveillon que não é só para chamado de festas, mas também para atrair compradores para os empreendimentos imobiliários e negócios que o grupo que está tocando”, explica. 

Dessa forma, além de barzinhos, da Capela de Milagres – que fica em Passo do Camaragibe – são construídas pousadas dentro das áras de mata atlântica com dificuldade de acesso e intensificação desse perfil de singularidades e particularidades que atraem as pessoas para o território, mas apenas dentro de uma narrativa publicitária específica e não necessariamente atrelada à realidade local. 

Moradora da primeira casa no povoado de Capoeira, em Porto de Pedras, a enfermeira e técnica de turismo, e hoje também dona do restaurante na própria Capoeira Cantinho Nordestino, Marta Maria da Silva também acompanhou essas mudanças. 

“A mídia trabalha com marketing e, com o surgimento do Reveillon de Milagres, se criou um fake principalmente para as pessoas que vem do sul. A Rota surgiu por conta disso. Já que todo mundo acha que é Milagres, vamos fazer tudo como Rota porque aí dá menos trabalho e uma divulgação maior”, conta. “O surgimento do reveillon deu uma visibilidade muito grande porque 80% das pousadas, casas de veraneio, pensão, vieram tudo depois. Para aproveitar esse boom. E a parte mais engraçada é que é a festa não é em Milagres, mas em Marceneiro, que faz parte da cidade de Passo. Ele na conseguiria usar o nome Milagres se não tivesse em milagres. Qual a forma mais fácil disso acontecer? Inserindo dentro da Rota”, diz.

No total, a Rota, percorre um trecho de 30km destacando os pontos da Barra de Camaragibe, Praia do Marceneiro, Praia do Riacho, Praia de São Miguel dos Milagres, Praia do Toque, Praia de Tatuamunha, Praia de Lages, Farol do Porto de Pedra, Túnel Verde e a “bandeira azul” Praia do Patacho. 

Mapa do Turismo de Alagoas. Crédito: Secretaria do Turismo

A partir da chegada do que a Marta identifica como “boom” das pousadas, é possível verificar o que a pesquisadora Rennisy define sobre a atual configuração da exploração econômica na região. 

“Existem conflitos entre especuladores e outros agentes ricos dos meios alternativos. Ambos querem acumular riqueza, especulando a terra a partir dos recursos naturais, só que uns usam para destruir e construir empreendimentos imobiliários, ou fazer festas. Outros o objetivo não é destruir, mas se apropriar exaltando as particularidades, patrocinando e promovendo a pousada de charme, que depende deste valor da exclusividade. Não se trata necessariamente de proteção à natureza, mas de se apropriar mais”, explica. 

“Assim, percebi que a maioria das pousadas de empreendimento imobiliário atrela aspecto natural e dos modos de vida. Usam os modos de vida e a unidade de conservação, a cor e temperatura do mar. A proximidade com alguns locais que garantem tudo mais exclusivo. E agora chegam em um grande conflito, que é como manter a apropriação dessa estética tropical sem tem outro grupo que não quer manter estas características, e constrói condomínios cinzas que nem dialogam com a paisagem. Afinal, embora tenha acontecido muita mudança, ainda há traços naturais marcantes”, acrescenta. 

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Construções de 'caixas cinzentas' distoam da estética local. Foto: Wanessa Oliveira

Em 2017, estimava-se um total de 80 pousadas de charme na Rota. Atualmente, entretanto, não há como mensurar este número e os órgãos públicos não visibilizam também as informações a respeito. Além do mais, ao invés de necessariamente foco em hotelaria, as novas construções vêm dado maior espaço para condomínios de luxo e pé-de-areia, além das residências para especulação. 

Poluição visual: anúncios são frequentes em todo o percurso da Rota. Foto: Wanessa Oliveira

Já existia gente aqui antes disso tudo

O racismo ambiental é um segmento do racismo institucional definido ainda na década de 1980, como uma imposição desproporcional, seja intencional ou não, de rejeitos perigosos às comunidades étnico-raciais. A partir de pesquisas que comprovavam este padrão, até então, nos Estados Unidos, surgiu a formação de movimentos de Justiça Ambiental que buscavam visibilizar o quanto forças mercadológicas e governamentais agiam em articulação para produzir ou aprofundar desigualdades ambientais”. As definições podem ser encontradas em pesquisas como esta aqui.

A partir do racismo ambiental, vão se desenvolvendo diversas tecnologias para expulsar comunidades dos lugares onde originalmente habitam. Ao associar a uma conjuntura de exploração econômica com base em especulação e turismo, decidem ainda selecionar quais as características locais são pertinentes aos fins desta exploração econômica.

O fato é que, antes de ser Rota, Área de Interesse Turístico, eixo de especulação, e agora canteiro de obras – os litorais da Rota Ecológica já existiam enquanto territórios habitados por comunidades com seus modos de vida, trabalho, convivência e vivência com a natureza. As memórias são nítidas. Em cada uma delas, é incutida também a forma como o sentimento de “expulsão”, “imprensamento”, se faz presente.

A empresária Marta Maria, que reside próximo à localidade que mais vêm acontecendo construções, em Tatuamunha, conta como tudo era literalmente “mato e mata”. “Aqui a gente chama de Capoeira toda área onde só tem mato e mata. Algumas pessoas acham que é em razão da luta, mas tanto pode ser a luta, como é a forma como as pessoas do interior chamam área que só tem mata e mato”, reforça.

“Era uma área grande, com muitos animais da flora. Teve época que até encontramos Guará, que é um dos lobos que hoje não identificamos mais. Era muito protegida naquela época. Era só mato, coqueiro, e reserva da mata atlântica, e a única casa que tinha era a da gente. Não tinha asfalto, luz elétrica, nem água. Nessa época não tinha nada”, diz.

A técnica em Turismo identifica que as grandes mudanças aconteceram há cerca de sete anos, mas o que identifica como o crescimento mais avassalador surgiu nos últimos cinco. ‘A mudança que veio a partir daí foi muito grande. É como você chegar para uma comunidade de pescador do zero e vir de novo e encontrar um monte de resort. Essas pousadas são recente, por incrível que pareça, apesar de você ver essa quantidade absurda”, conta.

O pescador Adelmo Bento, do povoado da Lage, também tem algumas lembranças. “As casas eram salteadas. Era esta, outra ali. Uma ali. Já não tinha aquelas ali nem as outras de lá. Não tinha pista. Tinha coqueiro. E a mata mais para cima. Era coqueiro e mangue. E tem manguezal ali. Aqui não tinha pista, era barro. Derrubaram os coqueiros e foi que fizeram a pista. Melhorou um pouco, porque quando chovia era maior lameira”, conversa.

As transformações foram identificadas de imediato. “Derrubaram as mangueira, cajueiro, para vender a lenha. Quem tem sitiozinho, tinha mangueira, derrubaram tudo. Para botar lenha para vender na cerâmica. Aí como é que vai a frente? Porque aqui ninguém comprava manga, banana. E só come quem planta”.

Marta conta como o ritmo do crescimento de construções impactou na natureza e nas comunidades locais. “Quanto maior o número de casas, mais próximos de rua e mais próximos de mar, mais poluição, mais destruição da natureza que a gente vê e, hoje, a gente não consegue ter acesso ao manguezal em todas as áreas porque terminou privatizando. Hoje a gente não consegue acessar o mar em todas as áreas porque privatizou também. Compram um lote e fecham tudo. Então você tem que andar 500 metros até 1 quilômetro para chegar lá, porque fecharam”, conta.

O desmatamento e aterramento e as outras formas de destruição vão, portanto, asfaltando o projeto em curso da Rota Ecológica. “Quando o crescimento vem muito rápido – e em cinco anos cresceu 20 em nossa região, é muito ruim. As construções vão sendo muito voltadas ao concreto. Não preservam o verde. Se tiver uma árvore dentro de um terreno, a prioridade dele é derrubar. Não vai tentar construir e se adequar ao que já estava lá. Isso é muito ruim porque vai ter aquecimento da temperatura. Os animais começam a se afastar e migrar para uma área e aí acontecem ainda muitos acidentes”, diz.

A degradação ambiental e falta de acessibilidade são algumas das formas de expulsão das comunidades, mas não são as únicas que inviabilizam a continuidade da vivência das pessoas no local.

“A alimentação também é impctada, porque antes a quantidade de peixe e marisco eram absurdas. Hoje você não consegue. A pessoa ia para o rio e saía com um carro de mão de marisco. Hoje se eu for com um baldinho de cinco litros, eu não consigo trazer cheio. Então a diferença muito grande de uma década para esta. A árrea de rio está muito aterrada, área de mar estão invadindo um espaço onde não tinha invasão. Teve área que o mar invadiu tanto que levou a casa completa, nem tem mais vestígio de que tinha casa lá. E tinha casa. Só nesta área foram duas e eram longe do mar”, diz.

Minha mãe disse que o mar sempre vai pegar o que é dele. Se você tenta invadir, ele vai invadir de volta. Se não for naquele espaço que você invadiu vai ser em outro, mas não tem jeito.

É neste sentido que a desigualdade social demonstra quem sofre o castigo pelo desmatamento. Diante dos aterramentos e da falta de escoamento da água, os alagamentos passam a ser uma realidade constante nas regiões da Rota – embora estas consequências sejam sofridas necessariamente pelas comunidades. 

“Minha mãe disse que o mar sempre vai pegar o que é dele. Se você tenta invadir, ele vai invadir de volta. Se não for naquele espaço que você invadiu vai ser em outro, mas não tem jeito. A água é uma das únicas coisas que você não pode conter. Você contém aqui, ela invade o próximo. E hoje a maior parte das construções, nas áreas vizinhas, são irregulares. Então muito lugar que chamamos de brejo ou alagado, eles aterraram para construir. É nesse lugar onde a água da chuva acumula. Se não tem esse espaço, a água arruma outro lugar para se acumular. Então tem muita inundação nas casas, que na minha infância não tinha de jeito nenhum.  Nos últimos anos muitas casas foram perdidas e famílias desabrigadas”, diz.

A questão é que, ainda que essas situações de alagamentos nas casas tenha iniciado apenas após o início das construções, nem todas as pessoas da comunidade relacionam os desastres à ação dos empreendimentos. 

“A maioria das pessoas que são afetadas são simples e humildes. E a maioria dos lugares que foi aterrado foi por pessoas que tem poder aquisitivo muito grande. Elas compram grandes áreas, aterram, fazem piscina, lago, o que for, e não estão nem aí. Automaticamente as pessoas que moram na parte baixa, com poder aquisitivo menor, é quem mais vai sofrer, porque a tendência é que a água escoe justamente para a parte mais baixa, que é onde estão as famílias que vão sofrer e nem sabem o porquê. Para elas será uma ação da natureza, e não por influência do ser humano e da construção irregular”. 

Para a moradora da Capoeira, esta é uma das problemáticas que mais atrapalham o real desenvolvimento da comunidade. “Para eles não vai fazer diferença, mas para quem tem pouco e perde o pouco que tem, a diferença é grande”. 

Comunidades pesqueiras e privatização da praia

Embora nem todos os impactos socioambientais tenham suas causas e conjunturas interpretadas pelas comunidades, muitos deles são percebidos sem muita dificuldade. Entre os principais, está a expulsão sistemática das comunidades pesqueiras das áreas marítimas.

De Passo a Porto de Pedras, a confirmação de que os pescadores artesanais atuam em número cada vez mais reduzidos na região é unânime. Paulo Bandeira de Mello, conhecido como Babalo, veio de uma família pescadora e hoje tem como as principais fontes de renda a ONG do Projeto Peixe-Boi, e a atuação como jangadeiro. “Vim de uma família pobre, mas sempre trabalhadora, né? Vivi muito de pesca. Há anos atrás, a minha vida era pescado em alto mar. Eu saía e passava sete, oito dias lá dentro no mar, pescando. Agora creio que vai aumentar o número de turismo aqui e diminuir pescadores. Já está diminuindo. Os pescadores estão diminuindo porque estão lá na área da pesca e vindo para trabalhar no turismo”.

Para Babalo, a oferta constante de empregos que vem das construções e do turismo, ao ser comparada à incerteza do mar, acaba atraindo a população pesqueira também. “ Hoje as pessoas daqui, elas vivem basicamente de trabalho das obras. Nas construções, nas jangadas, no turismo. É muito turismo e muita gente trabalhando nas pousadas. Um na Associação Peixe Bois, o outro é bugueiro também, e o outro já faz passeio de bicicleta também na praia, que é turismo também. Então, virou o foco daqui”.

O jangadeiro e pescador da Praia do Patacho, João Maria, acrescenta: “O cardume enfraqueceu bastante, com o barulho dos motores das embarcações. Todos os pescadores agora estão na parte do passeio. Aí enfraqueceu porque muitos fazem passeio, ai fazem uso do motor, e não querem pescar. E a gente tem a época de pescar aqui, que a gente gosta mais na parte do verão. Na parte do inverno, no alto mar, a água corre demais. A gente põe uma chumbada de 9 quilos e ela fica flutuando por causa da carreira da água embaixo”, conta.

Apesar dos atrativos proporcionados pelos “empregos vindos do turismo”, a desmobilização para continuar com a pesca, segundo os pescadores, está mais voltada à inviabilidade de continuidade no ofício. Sem políticas públicas específicas para a pesca, o problema se agrava diante do acirramento das expulsões produzidas pelos grandes empreendimentos, e das frequentes declarações relacionadas ao tratamento desigual de órgãos fiscalizadores.

Na área que o pescador Marcel Fernandes atua não é muito diferente. Sou pescador há mais de 20 anos, meu pai e irmãos também, mas sou o único que ainda está na pesca. Eles desistiram por conta da dificuldade que é ser pescador. Só fica na atividade aquele que ama mesmo”, começa. “O acesso à praia, agora que está cheia de proprietários e pousadeiros, está se fechando. E aí temos dificuldade de guardar nosso material de pesca. Fica tudo desse jeito. A boa parte fica em casa, então é dificuldade para trazer porque moramos longe. Eu moro a uns quatro quilômetro”, diz.

Segundo Marcel Fernandes, os depósitos ou palhoças para guarda de material também estão sendo cada vez mais proibidas aos pescadores, inviabilizando o trabalho. “Antes tinha depósito para guarda, mas agora não querem mais os pousadeiros, os proprietários da beira da praia não querem mais que a gente faça. Meu pai tinha uma palhoça bem aqui, que caiu. Não fizemos outra no período porque ele estava de idade. Quando fomos construir, não deixaram mais, porque passou a ter dono. Então deixamos a rede, muitas são roubadas, ou o material é acabado com sol quente. Essa é a dificuldade que a gente tem enfrentado”, reforça.

Para ele, o acesso à praia é uma das piores consequências dos empreendimentos que se instalam na região. “O turismo é bom, mas é ruim. Gera muito emprego, mas também a gente perde muito. Eu creio que se for nesse ritmo, daqui a 2 anos, os nativos não têm acesso maias à praia não. E nem para a pesca. O turismo avança e a maioria agora são jangadeiros, vão deixando de aprender a estar o alto-mar, e não vão querer arriscar a vida no alto-mar quando pode fazer turismo”, conta.

Problematizações sobre o papel do Estado: Os donos da Rota

A garantia de tantos poderes e disparidade de permissões para determinados segmentos em detrimento da comunidade local pode ser explicada pela própria configuração socioeconômica dessas localidades, que por sua vez integram a própria história de Alagoas.

Assim, Rennisy cita como as mudanças de atividades, antes focadas na Usina, e na monocultura de açúcar, dão lugar à eucaliptocultura; ou como empresários que deixavam seus terrenos ocupados com plantio de coco e cana-de-açúcar, passaram a ocupar cargos estratégicos nas Prefeituras e outros órgãos, assegurando também seus abocanhados no que viria a ser, mais adiante, a especulação.

A partir de então, a Mídia Caeté iniciou um desenho de uma espécie de “mapa político” na região, a partir de uma série de pesquisas relacionadas às principais construtoras que ostentam empreendimentos na Rota, e que possuíam uma relação intrínseca com poderes públicos locais. Esse ‘desenho’ se construiu com maior evidência e, inclusive, complexidade em Porto de Pedras.

Ainda em maio deste ano, a Mídia Caeté veiculou a notícia sobre um intenso desmatamento em topo de morro – uma Área de Preservação Permanente – no conhecido Morro Nossa Senhora da Piedade, onde está o Farol de Porto de Pedras. O desmatamento ocorreu numa área comprada pelo empresário local, Henrique Vital, proprietário da Be Incorporadora. Outro trecho da área foi desmatado pela própria Prefeitura, sob a justificativa do prefeito de que se trataria de uma estação de tratamento de água – no topo do morro.

Na reportagem, o empresário chegou a explicar à Mídia Caeté que a área em questão “não possuía vegetação nativa. Apenas mato pequeno”, o que foi desmentido por moradores da região. O Instituto do Meio Ambiente, por sua vez, silenciou sobre o caso. Veja aqui.

Até então, havia uma série de especulações em torno de um possível apoio do atual prefeito à candidatura de Vital, diante da iminência dos pleitos municipais que se aproximam.. Entretanto, nos últimos meses, as demonstrações de articulação político-eleitoral passaram a focar em outro empresário, cunhado de Vital e também sócio, Caio Uchoa, que atualmente participa de uma série de atividades, inclusive da agenda pública junto a Henrique Vilela.

A relação se mantém também em Brasília, onde o filho de Henrique Vilela – Marcelo Vilela – e o próprio Henrique Vital, são ainda assessores do senador Fernando Farias, suplente de Renan Filho.

Relação de construtoras com Prefeituras. Na imagem: prefeito Henrique Vilela com Caio Uchoa em agenda pública na Câmara dos Deputados Foto: Redes Sociais/Caio Uchoa

Já em Patacho, grande parte do território foi comprado pelo empresário e ex-prefeito Amaro Junior, conhecido como ‘Boi Lambão’. Já seu filho, Caio Burgheti, é vereador e deve concorrer à prefeitura de Porto de Pedras contra Caio Uchoa.

Em Marceneiro, situado na cidade de Passo do Camaragibe, outra incorporadora vem se destacando na localidade, seja com a construção de condomínios pé-de-areia, seja com placas de retirada de areia de morro e aterramento de mangue, trata-se da Podium Engenharia. Com as construções das famosas “caixas cinzas”, como moradores costumam chamar os empreendimentos produzidos, a Podium tem garantidas as placas de licenciamento do IMA em suas construções.

O CNPJ da empresa em questão está vinculado aos empresários Jose Roberto Martins Barbosa Junior e Fernando Lyra de Carvalho Filho. Ambos já foram sócios em uma oportunidade anterior, na empresa Lima Araújo Agropecuária Ltda, que foi alvo de ações judiciais por trabalho análogo à escravidão. Em outubro de 2003, a Procuradoria do Trabalho do Pará ingressou com ação civil pública por sua reincidência na prática de submeter funcionários das empresas Estrela das Alagoas e Estrela de Maceió à uma dinâmica de servidão por dívidas, até o momento em que trabalhavam por alimentação, ou para ter instrumentos de trabalho, por exemplo. À época, os empresários negaram ter cometido o crime, afirmando que os funcionários estavam ‘só irregulares’.

Construções da Podium nas duas áreas. Foto: Wanessa Oliveira

A Podium tem cadastro ativo desde 2008. Com escritório em Maceió, propagandeia os empreendimentos da OKA , a Morada dos Milagres (situada na Praia de Marceneiro), o condomínio pé-de-areia Huna, Kaak,

A Citecon Engenharia, que exibe os empreendimentos pé-de-areia Naay Villas Boutique, Oceana Villas Boutique, e o Villa Naluri, aparece pela primeira vez no conflito em que pescadores de Tatuamunha tiveram suas palhoças de guarda destruídos por tratores contratados pela empresa, com a participação de funcionários do IMA. O caso foi abordado em reportagem específica.

Com trator, palhoças de pescadores são destruídas com anuência do IMA, a pedido de construtora. Citecon foi procurada, mas não respondeu à Mídia Caeté. Imagem: Reprodução

Entre estes casos ilustrativos e as diversas outras relações possíveis ao longo de toda a Rota Ecológica, os vínculos vão confirmando as relações de poder entre o segmento e os órgãos ou agentes públicos. Neste sentido, as famílias pescadoras e agricultoras do até então pacato litoral norte, ainda que arrebatadas sem qualquer prévio aviso, para este projeto confuso de poder, conseguem captar bem o que lhes desponta para o futuro, e também as perdas que lhes são proveniente.

Marta Maria traz uma interpretação ainda mais profunda da situação, ao focar na própria mudança de vida da comunidade, diante desses impactos.

“É muito difícil é uma luta. Luto para segurar meus preços não é por conta do turista, mas por ser uma coisa justa e para ter acesso da comunidade. Do mesmo jeito que o turista vai poder vir comer, qualquer pessoa da comunidade vai poder vir comer. Quando você só monta empreendimentos em um local para quem tem dinheiro e vem de fora, você escraviza o pessoal da região e faveliza eles. Porque é o que está acontecendo. Os nativos estão sendo expulsos. Expulsos do lugar deles. Não conseguem comer num restaurante bom, ter acesso a um local que gere paz, que tenha alimentação boa. Sua área de lazer é privatizada”, reflete.

“Ninguém consegue ter mente boa onde só trabalhe e não tem sua área de lazer e hoje a maioria dos espaços não é para ser feito para pessoas da comunidade. É feito para quem vem de fora. O resultado é que 99% do que vem sendo construído aqui é para quem vem de fora e não acho isso justo”.

As Prefeituras de Porto de Pedras, Passo do Camaragibe e São Miguel dos Milagres, foram exaustivamente procuradas pela Mídia Caeté, para obtenção de respostas sobre todos os pontos elencados. Até o momento da publicação desta reportagem, nenhuma delas nos respondeu.

Essa reportagem foi contemplada pelo edital Bolsas de Reportagem Justiça Climática – AJOR e iCS: Justiça Climática e o Enfrentamento ao Racismo Ambiental no Brasil”, promovido pela Ajor, Associação de Jornalismo Digital e o iCS, Instituto Clima e Sociedade, no âmbito do The Climate Justice Pilot Project. 

MÍDIA CAETÉ – Plataforma multimidiática sem fins lucrativos voltada a reportagens especiais e investigativas, com independência editorial.

Reportagens: Wanessa Oliveira Apoio/Entrevistas: Vivia Campos. Revisão: Marcel Leite. Webdesigner: Leonardo Reis. Fotografias: Wanessa Oliveira e Vivia Campos. Ilustração: Jacqueline Aldabalde Redes Sociais: Marcel Leite