Quando tudo era mato e mata: a Marta nascida e criada na Capoeira

POR WANESSA OLIVEIRA

Marta Maria: “não me considero uma liderança, me considero uma resistente”.

Marta Maria da Silva é uma das poucas de sua geração que nasceu na região, a uns quatro a cinco quilômetros da Capoeira, povoado de Porto de Pedras. Nasceu em casa. Até já existia maternidade na época, mas também havia as parteiras tradicionais que atendiam em casa. “Hoje a parteira não está mais viva. Morreu há poucos anos, e todo mundo vai para a maternidade, mas na minha época quem não tinha complicação podia ter essa opção de nascer em casa”, conta.

Filha de agricultores, a mãe pernambucana e pai alagoano viviam em Murici cortando cana. “Uma irmã da minha mãe tinha vindo ‘para a praia’. Usam esse termo já que tem gente de lá que nunca viu o mar de perto. Então minha mãe veio, e eu nasci aqui. Antes de completar dois anos de idade, os pais de Marta mudaram-se para o sítio em Capoeira. Chegaram quando, literalmente, tudo era mato: o que faz com que ela já venha explicando como o território foi nomeado.

“Aqui a gente chama de Capoeira porque toda área onde só tem mato e mata, o pessoal chama de capoeira. Algumas pessoas acham que é em razão da luta, mas tanto pode ser a luta, como é a forma como as pessoas do interior chamam área que só tem mata e mato. Nessa época, minha mãe veio para cá porque o dono do terreno cedeu um espaço para ela construir a casa dela, que era de taipa, para ela tomar conta do sítio dele, manter limpo. Era uma área que tinha mata atlântica, e muito plantio de coco. Hoje você não vê muito coqueiro porque tem muita casa. Nessa época construíram a casa. Tem 36 anos. Só era a nossa casa. Não tinha outra casa. As outras surgiram depois da nossa. Somos os primeiros moradores de Capoeira”, orgulha-se. “A casa da minha mãe continua no mesmo lugar. Não é mais de pau-a-pique, mas é no mesmo lugar”.

Marta cresceu acompanhando o início do povoamento de Capoeira. “Teve época que até encontramos guará, que é um dos lobos que hoje não identificamos mais. Era muito protegida naquela época. Era só mato, coqueiro, e reserva da mata e a única casa que tinha era a gente.. Não tinha asfalto, luz elétrica, nem água. Nessa época não tinha nada”.

O povoamento foi intensificando na proximidade da rodovia, na pista principal. Poucas pessoas viviam mesmo mais perto do mar, mas tinham todo o acesso a ele. “Na rodovia, conseguia ter acesso à luz, na Boca do Rio só se usava gerador ou vela. Além disso, mais perto da pista tinha acesso à ambulância. O acesso à água também passou primeiro por lá. Ninguém queria morar onde a gente morava. Aqui em Capoeira só conseguiu vir ambulância há uns 12 anos, mas antes era maior dificuldade”.

Na época, a pesca, o cultivo de coco e a cana-de-açúcar eram as principais formas de sustento das famílias. “Hoje a cana praticamente desapareceu, porque os donos de fazendas e sítios que plantavam e vendiam para usinas não fazem mais isso. E de uns dois anos para cá, daqui a pouco, não tem mais coqueiro. E era um coqueiro grudado com outro”

Mudanças e Impactos

A mudança, além de grande, não foi gradativa. “É como você chegar em uma comunidade de pescadores do zero, e quando voltar encontrar um monte de resorts. Nem tinha uma única pousada naquela época. Essas pousadas são recentes, por incrível que pareça, apesar de você ver essa quantidade absurda. Acho que surgiram duas há 18 anos. Depois demorou muito para vir as próximas”.

Os impactos foram crescendo junto à construção de mais e mais casas, associando não só a relação conflituosa com a natureza como, ainda, o aprofundamento da  segmentação de classes. Começa a privatização do acesso ao mar.

“Quanto maior o número de casas, mais próximos de rua e mais próximos de mar, mais poluição e destruição da natureza a gente vê. Hoje a gente não consegue ter acesso ao manguezal em todas as áreas porque terminou privatizando. Hoje a gente não consegue acessar o mar em todas as áreas porque privatizou também. Compram um lote e fecham tudo. Então você tem que andar 500m até 1km para chegar lá, porque fecharam”, conta.

Este é só um sinal do que Marta Maria identifica como resultante de um crescimento que chegou rápido demais para a realidade das pessoas que sempre viveram em ritmo de vida e trabalho extremamente diferente. Há algo mais além da velocidade, entretanto: a voracidade e a desigualdade com que essa situação impacta sua comunidade

“Em cinco anos cresceu 20 na região. É muito ruim. O pessoal tem impressão de que as construções são muito voltadas ao concreto. Não preservam o verde. Se tiver uma área dentro de um terreno, a prioridade dele é derrubar. Não vai tentar construir e se adequar ao que já estava la. Isso é muito ruim porque vai ter aquecimento da temperatura. Os animais começam a se afastar e migrar para uma área e tem muitos acidentes. Há, ainda, a alimentação, porque antes a quantidade de peixe e marisco eram absurdas. Hoje você não consegue. A pessoa ia para o rio e saía com um carro de mão de marisco. Hoje se eu for com um baldinho de 5 litros, eu não consigo trazer cheio. Então é diferença muito grande de uma década para essa”.

Com áreas de rio aterradas, e o mar seguindo para outros lugares, há ainda a perda das casas. “Teve área que o mar invadiu tanto que levou a casa completa, nem tem mais vestígio de que tinha casa lá. E tinha. Só nessa área foram duas e eram longe do mar, não era beira mar na minha infância”, conta. “Minha mãe disse que o mar sempre vai pegar o que é dele. Se você tenta invadir, ele vai invadir de volta. Se não for naquele espaço que você invadiu vai ser em outro, mas não tem jeito, A água é uma das coisas que você não pode conter. Você faz contenção aqui, ela invade o próximo”.

Construção de casa tem muro encontrando o mar. Foto: Wanessa Oliveira

Se a natureza busca o que é dela de volta, o formato com que as construções vêm se configurando resultam, ainda, em quem tem sofrido as consequências destas devastações. “Hoje a maior parte das construções, nas áreas vizinhas, são irregulares. Então muitos lugares que chamamos de brejo ou alagados, eles aterraram para construir empreendimentos. É nesse lugar onde a água da chuva acumula. Se não tem esse espaço, a água arruma outro lugar para se acumular. Então tem muita inundação nas casas, que na minha infância não tinha de jeito nenhum. Nos últimos anos, muitas casas forma perdidas. Famílias desabrigadas”.

Onde estão as famílias que vão sofrer e nem sabem o porquê

E quem são as famílias desabrigadas? “A maioria das pessoas que são afetadas são simples e humildes. Por outro lado, a maioria dos lugares que foi aterrado foi por pessoas que tem poder aquisitivo muito grande. Elas compram grandes áreas, aterram, fazem piscina, lago, o que for, e não estão nem aí. Automaticamente as pessoas que moram na parte baixa, com poder aquisitivo menor, é quem mais vai sofrer, porque a tendência é que a água escoe justamente para a parte mais baixa. É onde estão as famílias que vão sofrer e nem sabem porquê. Para elas será uma ação da natureza, e não por influência do ser humano e da construção irregular”.

Marta conta que sua família teve privilegio grande por estar numa localização que sofreu menos com os impactos, tanto em questão ambiental como social, mas não comemora totalmente: “ Aqui não tem enchente porque é mais alta. A parte mais baixa próxima ao manguezal também não tem enchente. No máximo forma poça”.

No entanto, ela conta que não dá para comemorar tanto assim. “Infelizmente a comunidade não pode contar com essa sorte. Temos dois anos de uma obra de saneamento que nunca termina. Vem um e quebra, depois vem outro e quebra. Não é feito e dado continuidade. Fazem um buraco, para depois de um mês vir colocar um cano. Sempre abrindo e fechando. É área de terra então muitas casas estão danificadas”, conta.

Capoeira: obra que não finaliza vem prejudicando a vida de moradores

“A tendência é que, cada vez mais, as casas comecem a ceder, porque não foram construídas com o pensamento de que iam ficar abrindo 4 metros de terra na frente da sua casa. Além do mais, a areia move, se você tira uma parte grande em excesso move. Aqui, 80% das casas estão com rachaduras. Quer dizer, sabemos que é muito importante, e se a obra der certo vai diminuir a chance de impacto ambiental pela questão de poluição que hoje temos com as fossas. Se fizerem a obra da forma correta, vai diminuir porque a fossa vai ser longe da área próxima a manguezal. Diferente de hoje, que as casas são muito próximas dos mangues e rios, então com as fossas, mesmo que venha o carro para retirar, sempre vaza alguma coisa”, conta.

Para além do saneamento, ainda há a questão da água. Recentemente, o município decidiu privatizar com a empresa Verde, sob promessa de melhoria da qualidade. “E vive faltando água, inclusive nem todas as casas eles conseguiram ligar”, relata.

Quando chega o boom

Se tem algo que moradores das cidades que compõem a Rota Ecológica celebram é que, com o advento das construções, emprego não faltou mais. E com trabalhos em abundância, a fome também deixou de ser uma realidade. E outros acessos também foram facilitados.

“Tem parte boa, também, que é a geração de trabalho e renda, a geração de educação, não tinha como ir para a faculdade. Hoje sou enfermeira, técnica em Turismo e Hotelaria, e estou cursando gastronomia. Antes seria muito mais difícil estudar, conta. “Era só de agricultura e pesca, então muitas pessoas passavam fome. Tinha o coco de três em três meses, a pesca se desse. Agora não”.

Entretanto, outras situações também têm sido alvo de preocupação na comunidade. “Veio aumento de violência, aumento de drogas. Quando você vê as drogas aumentarem, normalmente não é porque a área está cheia de pobre. Com certeza não é, porque pobre numa área de pobre não tem a quem vender, e nem tem como comprar. Droga e violência vêm de lugar que está crescendo muito e não por pessoas da região, mas pessoas de fora. É muito ruim porque minha infância e adolescência nunca vi um crime. Dormia na frente de casa a noite toda, com portas abertas. Hoje, na minha casa, vai ter cadeado e vai ter câmera”, explica.

Para Marta Maria, esta é, de longe, a maior apreensão. “Uma comunidade consegue sobreviver a tudo, menos à violência e à droga. A fome é muito difícil que continue porque hoje pela quantidade de empreendimento tem mão de obra. E além do mais, num local pequeno como o nosso, vizinho sempre ajuda”, diz.

“Tenho dois filhos. O filho é adolescente e a filha está chegando lá. Hoje conseguimos estudar, ter transporte para Maceió, mas não há a mesma liberdade que eu tinha. Jovens, que eu vi bebê, hoje fico sabendo que foram assassinados. Então não deixo meu filho, por exemplo, sair para qualquer lugar. Só dentro da Capoeira. Sair da Capoeira não. Tenho medo de se tornar uma Barra de São Miguel, onde seis horas da noite ninguém sai e fica um deserto a cidade.”.

Além do mais, Marta se reúne a diversas outros moradores locais que afirmam que não há fiscalização que detenha a destruição massiva ao meio ambiente no local. “Os órgãos trabalham com as pessoas que têm dinheiro e não com quem não tem dinheiro. Se você vê aqui hoje, o cara veio fiscalizar e a noite estará jantando com a pessoa que veio fiscalizar”, exemplifica. “Então vai estar no governo chamando a pessoa para almoçar junto. Se você chegar na beira das praias dos rios, são construções matematicamente impossíveis de acontecer. Desde 1999 há proibição de construções em áreas que a gente vê que está errado. E estão lá”.

Na cultura, já se percebe também um apagamento dos costumes e festas típicas da região. “Antes no nosso carnaval tínhamos as alaussas. São João tinha quadrilha em todos os lugares e, hoje, não tem mais isso. Praticamente se perdeu. Outras festas, como pastoril, coco de roda, tudo vai se perdendo. Uma das coisas que acontece quando chega o boom é que faz com que se perca a cultura”.

Para eles não importa

Lidar com todas essas mudanças e impactos na comunidade local, para a moradora da primeira casa da Capoeira, é ainda mais difícil quando se percebe que os que estão operando estas mudanças não atentam para as necessidades, das mais objetivas ou mais sutis, da população que sempre esteve lá.

“Não adianta você ter emprego e não ter um local sadio para viver. Para os empresários, não importa porque, da mesma forma que eles vieram, vão para outro lugar. Muitos que investem aqui nunca vieram e, mesmo os que vieram, têm investimento em dois ou três outros lugares como este. Então sair daqui não faz diferença. Mas quem é daqui, e que não tem dinheiro, vai pra onde?”, questiona.

“São vários famosos que vemos por aqui, que sabemos que têm empreendimento. Eles podem estar em qualquer lugar do mundo inclusive, mas a gente vai estar aqui do mesmo jeito”, diz. “Eles pegam áreas muito grandes, que são em locais mais baratos, e aterram. Fecham cercas e dificultam o acesso à praia. É uma das coisas que mais vem atrapalhando o desenvolvimento da comunidade. Para eles não vai fazer diferença, mas para quem tem pouco e perde o pouco que tem, a diferença é grande”.

Assim, para além do ritmo e do formato, o “quem decide” também importa: a ausência de participação da população se torna a marca do tipo de crescimento na Rota. “Quando é um crescimento que vem gradativo, você tem controle dos impactos. Aqui não foi feito dessa forma. Tudo de repente e sem participação da população. Quem tem dinheiro não vai perguntar nada para a comunidade, vai pelo lucro que vai ter, e não pelo impacto da comunidade”, conclui.

As Prefeituras de Porto de Pedras, Passo do Camaragibe e São Miguel dos Milagres, foram exaustivamente procuradas pela Mídia Caeté, para obtenção de respostas sobre todos os pontos elencados. Até o momento da publicação desta reportagem, nenhuma delas nos respondeu.

Esta reportagem foi contemplada pelo edital Bolsas de Reportagem Justiça Climática – AJOR e iCS: Justiça Climática e o Enfrentamento ao Racismo Ambiental no Brasil”, promovido pela Ajor, Associação de Jornalismo Digital e o iCS, Instituto Clima e Sociedade, no âmbito do The Climate Justice Pilot Project”

As Prefeituras de Porto de Pedras, Passo do Camaragibe e São Miguel dos Milagres, foram exaustivamente procuradas pela Mídia Caeté, para obtenção de respostas sobre todos os pontos elencados. Até o momento da publicação desta reportagem, nenhuma delas nos respondeu.

Essa reportagem foi contemplada pelo edital Bolsas de Reportagem Justiça Climática – AJOR e iCS: Justiça Climática e o Enfrentamento ao Racismo Ambiental no Brasil”, promovido pela Ajor, Associação de Jornalismo Digital e o iCS, Instituto Clima e Sociedade, no âmbito do The Climate Justice Pilot Project. 

MÍDIA CAETÉ – Plataforma multimidiática sem fins lucrativos voltada a reportagens especiais e investigativas, com independência editorial.

Reportagens: Wanessa Oliveira Apoio/Entrevistas: Vivia Campos. Revisão: Marcel Leite. Webdesigner: Leonardo Reis. Fotografias: Wanessa Oliveira e Vivia Campos. Ilustração: Jacqueline Aldabalde Redes Sociais: Marcel Leite