Pescadores denunciam condições de trabalho no Centro Pesqueiro

Trabalhadores da pesca artesanal exibem vídeos expondo condições insalubres, dinâmica de trabalho desordenada e estrutura precária.
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Do lado de trás do balcão de vendas, onde os sorrisos e a prontidão aos clientes precisam estar em dia, os trabalhadores da pesca, hoje denominados “usufrutuários” do Centro Pesqueiro de Jaraguá, têm enfrentado uma série de dificuldades nas condições de trabalho. Entre instalações desordenadas, precárias e insalubres, expõem uma relação frequentemente tensa e de difícil diálogo com a Prefeitura de Maceió e com a empresa escolhida para gerir o espaço, o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Sustentabilidade (IABS). A situação tem se agravado ainda mais nas últimas semanas, em meio à pandemia do novo coronavírus, em contextos de aglomeração em meio à ausência de saneamento.

Construído sobre um longo conflito territorial que até hoje perdura, o novo Centro Pesqueiro de Jaraguá era o que restava de expectativa de melhoria de condições para a comunidade. Mesmo esta esperança caiu mar adentro diante do que os pescadores denunciam como constante recusa em serem envolvidos nos processos decisórios relativos à organização do local em que iriam atuar.

Com o prazo no limite, a obra foi inaugurada antes mesmo de ser concluída, e a comunidade denunciou uma série de problemas que prejudicavam o cotidiano da pesca artesanal. Meses depois, sem estabelecer qualquer situação de consenso, a Prefeitura prosseguiu com a demolição da balança, forçando trabalhadores a seguir para o Centro Pesqueiro, e deixando muitos outros fora da “lista”, sem local de trabalho – em mais uma situação de conflito que você pode conferir os detalhes clicando aqui.

A demolição aconteceu semanas antes da pandemia chegar em Alagoas. Contamos detalhes da expulsão da balança nesta reportagem. De lá para cá, a comunidade relata que a rotina tem sido permeada de dificuldades condicionadas pela falta de diálogo com o Instituto e pela falta de estrutura do próprio local.

“A frente, como se vê, está uma beleza, atendendo bem aos clientes. Em compensação, do lado de trás está um absurdo. A gente disse que não ia dar certo, que não ia aceitar”, rememorou a marisqueira Francineide Oliveira, ao salientar que “o que a gente vê são eles [a Prefeitura de Maceió e o Instituto] tentando nos convencer a viver uma situação que não é boa pra gente. Qualquer pessoa pode ver a situação. Diziam que antes era inadequado, que não tinha dignidade, mas antes ninguém via a sujeira que hoje a gente vê por aqui”.

A sujeira relatada por Francineide também foi exposta pelo trabalhador da pesca Carlos Jorge. Em alguns vídeos, é possível verificar um trajeto de esgoto persistente se formando atrás do mercado. Sem local para escoamento, a água suja também se acumula dentro da sala de filetagem.

“Essa é a situação da área de filetagem. A água não tem para onde descer. Fica acumulada. O pessoal trabalhando só de sandália na água podre, com larva de mosca. Só conseguimos manter a higiene dos alimentos, porque mantemos eles armazenados ou estão no tratamento na mesa, que a gente está sempre limpando. Mas a gente mesmo fica nesse transtorno o tempo inteiro. Mesmo a gente varrendo o tempo inteiro, os objetos que caem no chão para colocar nos tonéis, muitas vezes pedaços pequenos, acabam entrando no cano e já entope, porque ele ficou muito pequeno. O lugar que ia ser tão especial, melhor para todo mundo trabalhar, que fizeram propaganda pra sociedade, está aí. A verdade nua e crua”, expôs.

Os pescadores e marisqueiras registraram, ainda, que o encanamento da sala de filetagem foi construído após a mudança do Centro Pesqueiro. “Eles estavam com pressa para fazer essa mudança e só depois de demolirem a balança é que fizeram, de última hora, essa encanação”, relatou.

Segundo os trabalhadores da pesca, a situação se intensifica ainda mais com as situações de falta de água. “A água um dia tem e no outro não. Sempre está faltando. Nos depósitos de madeira, que a gente tinha, não faltava água para gente trabalhar. Nunca faltou. A gente está gelando camarão sem lavar porque não tem. Ou usa para gelar ou para lavar. Do jeito que vem, a gente tem que colocar no gelo. A situação piorou cem por cento para gente. Na capa está bonita, mas quando abre o conteúdo é horrível. É preciso ver para crer”, afirmou Carlos Jorge.

Em uma das ocasiões de falta de água, no início de junho, a trabalhadora da pesca Maria Adriana desabafou: “Já estamos há três dias sem água. Só tem água nos banheiros.  A gente enche dois ou três baldes de água no banheiro para colocar no camarão ou lavar uma vasilha. Já falei para eles que se chegar mais um dia e não tiver água, vamos chamar a imprensa ou ir para rua, porque só assim a gente consegue chamar atenção, para aprenderem a respeitar a gente. Somos seres humanos. Já basta o sofrimento de não ter água nos boxes. Cheguei hoje lá e estavam mostrando esses bichos andando porque não tem água para limpar”, relatou. “Ali na frente é só ‘mídia’ porque atrás é um horror”.

Recomendações mudam a todo o tempo sobre o uso de cada área, segundo a comunidade; falta de escoamento gera acúmulo de água em espaço usado em tratamento de pescado e frutos do mar (Foto: Wanessa Oliveira)

A falta de escoamento se soma ainda à situação do piso que, segundo eles, é escorregadio e propicia frequentes quedas.  “Parece que tudo aqui foi construído por pessoas que não tinham a menor noção de como é o trabalho da pesca, de como a gente trabalha. E eles ficam discutindo o tempo todo querendo que a gente se adeque a isso, ao invés de tentar achar uma solução que dê fato dê para gente trabalhar”, explicou a marisqueira Francinete Oliveira.

Francineide também pontua outros problemas que já haviam sido prenunciadas pela comunidade pesqueira antes mesmo da entrega do Centro, como a situação dos boxes e depósitos. “Os depósitos divididos para duas pessoas torna impossível que a gente consiga deixá-lo organizado, porque é material de barco. O boxe também é apertado. Tudo demarcado por uma linha no chão, deixando nossos materiais todos desorganizados. Para conseguirmos buscar algo que a gente precisa de dia a dia é sempre uma dificuldade. Eles fizeram todo espaço amplo do lado de fora, e os espaços de trabalho da gente mesmo é sempre um aperto”.

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Outra condição agravada são as regras interpostas pelo IABS para o cotidiano de trabalho dos pescadores. “Eles disseram que iriam administrar aqui, que era para tornar tudo mais organizado, mas é um caos enorme. A gente chega vai trabalhar desanimado. Inventaram horário para chegar, horário para sair, quando o trabalho da gente não funciona assim, e tem que ser o horário deles. A gente vai tirar um camarão para o cliente, e não pode passar pelo boxe tem que andar pelo outro lado, dar várias voltas para concluir um trabalho. São várias distâncias e ficou muito mais cansativo pra gente”, disse Francineide.

“Sem contar com a desorganização entre eles mesmos. Uma hora pode tirar em um canto, em outra hora não pode mais. Ficam discutindo com a gente, muitos ficam querendo debater, ensinar como o trabalho deve ser feito. Que empresa é essa em que eles fazem o que querem e a gente só tem a opção de aceitar? Isso sem contar os prejuízos materiais, como eu que fiquei sem meu freezer. Perdi um monte de coisas”, relatou.

Em nota, a Prefeitura de Maceió desmentiu as informações – e vídeos – exibidos pelas marisqueiras e pescadores afirmando estar “construindo um modelo de governança participativa, como foco na inclusão social e produtiva de seus beneficiários diretos e indiretos”.

O órgão negou também os problemas estruturais na sala de filetagem, alegando que os entupimentos se davam em decorrência dos resíduos de alimentos no chão. Sobre os problemas na energia elétrica, a Prefeitura também apontou que o problema é desencadeado pelos pescadores e seus “freezeres antigos”.

Segue a nota oficial:

O Centro Pesqueiro Jaraguá (CPJ) foi construído para acomodar marisqueiras, pescadores e vendedores de peixe da antiga balança de pescados de Jaraguá. Após sua ocupação definitiva, vem evoluindo em um processo constante de melhorias, contando inclusive com a participação do MPE, MPF e DPU nas discussões, para que se torne um dos principais pontos de comercialização de pescado de Maceió.

A partir do projeto de sustentabilidade econômica e social do CPJ, cuja entidade parceira é o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Sustentabilidade (Iabs), o equipamento conta com sede administrativa, plantão de atendimento, sistema de videomonitoramento, controle e monitoramento de dados e indicadores, profissionais de áreas relevantes como Assistência Social e Oceanografia, por exemplo, de modo a garantir o bom funcionamento de todos os segmentos que fazem parte de sua estrutura.

O Comitê Gestor também acompanhou as recentes medidas de combate e prevenção à Covid-19, adotadas pelo Governo do Estado e Prefeitura de Maceió, restringindo horário de funcionamento, obrigando uso de EPIs com distribuição gratuita de máscaras aos permissionários, controle de acesso, instalação de lavatório externo, disponibilização de álcool, limpeza semanal dos espaços e desinfecção das áreas comuns, além de outras ações.

A Prefeitura de Maceió continua investindo no Centro Pesqueiro Jaraguá e construindo um modelo de governança participativa, como foco na inclusão social e produtiva de seus beneficiários diretos e indiretos, de modo que se torne um equipamento referência de valorização e fortalecimento da cadeia produtiva da pesca.

SALA DE FILETAGEM

A rede de drenagem passa por manutenção nas caixas de inspeção a cada dois dias e atualmente não foram identificados problemas nessas estruturas. O acúmulo de água foi observado neste intervalo de tempo entre os serviços de manutenção realizados pela equipe de limpeza. Esse acúmulo se deve aos resíduos da filetagem derramados no piso, que acabam causando um entupimento nos ralos e reduzindo a drenagem da água. Os beneficiários são orientados a usar os tonéis coletores disponíveis em cada mesa para o manuseio adequado dos pescados e resíduos.

BALDES DE ÁGUA NOS BOXES

O Centro Pesqueiro de Jaraguá foi planejado para atendimento de padrões sanitários na manipulação do pescado, por isso possui áreas apropriadas para o beneficiamento. Os boxes não são as áreas adequadas para essa atividade e, por isso, não possuem torneira com acesso à água.

Os boxes são destinados apenas para o armazenamento do pescado em freezers ou isopores, não sendo permitido o beneficiamento do pescado nesses locais. Portanto, o transporte de água para dentro dos boxes vai contra as regras sanitárias constantemente reforçadas junto aos beneficiários.

ENERGIA

O sistema elétrico do Centro Pesqueiro foi planejado para evitar acidentes aos usuários e, por isso, quando há a constatação de sobrecarga de energia ele desliga automaticamente. Esse problema está relacionado a alguns freezers antigos dos beneficiários, que não estão em condições ideais de conservação. Para garantir o fornecimento de energia, foram adotadas medidas como o reforço do circuito elétrico de entrada do mercado do peixe.

 

“Governança participativa” é questionada pelos trabalhadores das águas: novos aspectos de antigos conflitos

Após tentar contato, sem sucesso, diretamente com o IABS pelo telefone, a Mídia Caeté buscou a Prefeitura de Maceió mais uma vez, na busca de resposta sobre os tensionamentos constantes com o Instituto. A assessoria encaminhou nota conjunta da gestão e do Instituto, onde expunham que:

O diálogo é um dos princípios que norteiam o trabalho da Prefeitura e do parceiro Iabs, especialmente quando o propósito for a construção de soluções. Todas as demandas advindas dos permissionários são registradas e, desde que dentro das possibilidades, atendidas.  As regras são a base para orientar o trabalho no Centro Pesqueiro para que ele se torne referência de profissionalismo e valorização da cadeia pesqueira. Todos os espaços estão sendo utilizados conforme foram pensados e projetados, ajustes são feitos excepcionalmente para melhor atender o fluxo de produção. O Centro Pesqueiro é um equipamento cujo funcionamento pleno é recente. A busca pela superação dos desafios é constante de forma a melhor atender e aprimorar o trabalho de todos seus beneficiários.

Representantes do IABS registram área da frente, no mercado do Centro Pesqueiro (Foto: Wanessa Oliveira)

As marisqueiras e os pescadores, entretanto, reafirmam que o dito diálogo apresentado pelo Instituto é inexistente, que não conseguem qualquer acesso à participação nas decisões sobre local, e que os conflitos constantes com IABS e Prefeitura são, inclusive, um dos maiores problemas no cotidiano do trabalho.

“A gente tem ficado cada vez mais desanimado, porque tentamos ser ouvidos de todas as formas e sempre eles que ficam com a palavra final. Na época em que vimos o Centro Pesqueiro, que falamos tudo o que precisava ser mudado, eles fingiam que ouviam, que anotavam tudo, mas no fim não fizeram quase nada. Depois tentamos ser ouvidos pelas instituições, no Ministério Público, mas a Prefeitura e esse Instituto conseguem chegar muito mais fácil neles. As coisas que eles falam valem mais do que a realidade da gente, que está nessa batalha todo dia, mesmo a gente mostrando, contando, filmando. O nosso trabalho da pesca não funciona assim, quiseram fazer um modelo de pesca industrial, e colocar trabalhador da pesca artesanal para estar em uma rotina de pesca industrial. Isso tudo só está piorando”, contou Francineide.

Outros compartimentos do Centro Pesqueiro (Foto: Wanessa Oliveira)

Ela conta ainda que passou mais de dois meses sem local definido para alocar seu material “Eu pedi pelo menos o direito de dividir o depósito com meu companheiro, e só de pirraça ficaram deixando para depois. Agora finalmente consegui”, conta Francineide.

Carlos Jorge prosseguiu: “Eles fazem propaganda bonita de que estão valorizando o pescador artesanal, essa sustentabilidade, mas eles nem sabem onde começa o mar e onde termina a terra, não querem também ter contato direito com a gente. A gente tem visto os acertos e erros  e vive da pesca artesanal desde sempre. Eles nunca vão saber o que é isso e nem querem, pelo visto”.

A distribuição espacial do novo Centro Pesqueiro é reclamada pela comunidade em razão de segmentar em várias “fases” o trabalho, em espaços coletivizados – remetendo a um formato industrial de trabalho – impondo ainda mais dificuldades e sobrecarga de trabalho nas rotinas dos que usufrutuários, uma vez que os compartimentos também são distantes um do outro.

Pesca Artesanal – A pesca artesanal é definida pela Lei 11.959  como “uma atividade comercial praticada diretamente por pescador profissional, de forma autônoma ou em regime de economia familiar, com meios de produção próprios ou mediante contrato de parceria, desembarcado, podendo utilizar embarcações de pequeno porte”.

As condições de conflito em territórios pesqueiros não são particulares de Jaraguá, ou mesmo de Alagoas.  A Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA) caracterizou a complexidade da pesca artesanal, em um boletim que caracteriza como, no Brasil, “a atividade se encontra historicamente atrasada no que diz respeito às tecnologias e políticas mais adequadas aos anseios dos usuários, que ainda sofrem por serem pouco considerados nos processos de tomada de decisão”.

Ainda segundo o órgão, o Nordeste possui a maior população pesqueira – e  também a mais pobre – e a pesca artesanal marinha tem sido a principal provedora. Dos cerca de 1 milhão de pescadores do país, mais de 90% são pescadores artesanais –  segundo dados da Embrapa de 2011, o contingente chegava a 99%.

A atividade perdura como estratégica para manutenção da biodiversidade, o que é simbólico em um contexto onde muito se debate a situação de esgotamento dos recursos naturais. Na prática, porém, segundo o Boletim, são exatamente os pescadores e marisqueiras artesanais que sofrem o atravessamento da crise pesqueira gerada por uma série de situações, desde a degradação ambiental costeira aos conflitos por território.

Os pescadores e as marisqueiras de Jaraguá perpassam por todas estas questões. A poluição gerada no município e escoada no mar pela ausência de saneamento básico já foi, inclusive, utilizada pela própria Prefeitura de Maceió para responsabilizar e desqualificar a comunidade da antiga Vila dos Pescadores de Jaraguá, sendo uma de suas justificativas de expulsão. Mesmo alcançando o objetivo almejado, a relação conflituosa se mantém, com a recente formação de um espaço que seria destinado à atividade da cadeia de pesca, mas que torna-se cada vez mais “estranho” à comunidade que ali trabalha.

Esgoto conduzido para a praia de Jaraguá intensifica situação de insalubridade (Foto: Wanessa Oliveira).

A situação intensifica ainda mais diferença entre a realidade dos trabalhadores da pesca de Jaraguá e os propagandeados modelos de gestão participativa, deixando a comunidade em uma condição cada vez mais distante da perspectiva apresentada, por exemplo, por Adriano Prysthon da Silva no caderno da EMBRAPA que trata sobre o assunto,  quando ele lembra que:  “Preservar a atividade pesqueira artesanal exige, também, uma reflexão profunda sobre como o Brasil se acostumou a marginalizar o pescador, criando uma imagem de “indolência” perante a sociedade civil. Do lado do Estado, levará tempo para que se encontre uma forma justa de compensar os trabalhadores das águas pelas muitas décadas de instabilidade institucional. A gestão participativa surge como uma oportunidade, não apenas de valorizar o conhecimento dos ribeirinhos, mas de resgatar a auto-estima e a cidadania de indivíduos inseridos numa realidade própria, despertando no pescador a consciência de sua racionalidade para o desenvolvimento territorial e sustentável de sua atividade. “.  Clique aqui para acessar a pesquisa. 

 

 

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